quarta-feira, 10 de julho de 2024

O título rasgado


No que pesem esforços continuados de tantas vezes, nem sempre recordo os detalhes mínimos de pequenos acontecimentos que restaram espalhados na memória, resquícios da infância. Como exemplo, quero agora lembrar que levou minha mãe a ter de tirar um novo título de eleitor naquele ano, em Crato, nos inícios dos anos 60.

Transferia o domicílio anterior, pois vivera em Lavras da Mangabeira, onde residiu na fazenda do meu avô paterno desde o casamento. No intuito de resolver o assunto, indo algumas vezes ao cartório eleitoral, por fim receberia o novo documento.

Para nós filhos pré-adolescentes, tudo servia de munição à curiosidade doméstica. Dessa vez, ao presenciarmos nossa mãe chegar do centro da cidade, sempre motivo de novidades, Lydia e eu lhe seguimos os movimentos, à cata de informações preciosas. Quiséramos conhecer de perto o produto da missão.

Logo que deixara o cartão com a fotografia em cima da mesa da copa, os dois, em disparada, avançamos a fim de ver quem seria o primeiro a examinar o estranho objeto. Um deus nos acuda de peleja.

Chegamos de igual para igual. Cada concorrente sustentou seu lado, definindo bem o vinco da dobradura central. Força vai, força vem, emoções de crianças impertinentes à flor da pele, cada qual dos extremos recusando abrir mão do propósito, eis que ocorreu o inevitável. Por mais resistente que fosse o papel, o título de eleitor novinho em folha, que nossa mãe recebera há poucas horas, rompeu-se ao meio, transformado em dois, sendo essa justificativa de sobra para a sabugada que receberíamos, naquele mesmo dia, de nosso pai enfurecido com a proeza do ocorrido.

Diante daquilo, cedo no dia seguinte, minha mãe buscaria de novo a repartição e durante muito tempo esse foi o instrumento, ainda que remendado de fita “durex”, a solução praticada pelo cartório após o incidente, que viria lhe permitir o cumprimento cívico do dever do voto nas lides eleitorais posteriores, sob o olhar cúmplices dos filhos desconfiados.

Hoje observo, mudado o que deve ser mudado, a correspondência daquele incidente da infância com a gana feroz dos atuais candidatos nas refregas políticas, querendo a qualquer custo dominar eleitores, onde os instintos brutais afloram, desnorteando as fúrias dos interesses em jogo, levando a cúmulos de explorar consciências, no uso condenável de táticas cujos fins particulares jamais justificam tamanhas providências. 

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