segunda-feira, 30 de junho de 2014

Cogitações de um jegue abandonado

Primeiro de tudo, regra número um, questão de sobrevivência, jamais engolir essas folhas brancas que voam pelo ar, os tais sacos plásticos, lixo espalhado nos cantos distantes da cidade, aqui aonde vim trocando patas, depois que me largaram nas quebradas, animal de tração de segunda, destituído das qualidades industriais de depois dos açudes, barragens  e s estradas asfaltadas. Triste não servir a mais nada.

Sei, sim, que quando chove aparece babugem nas beiras das estradas e alimento nunca falta, contudo, nos meses secos, a peleja vem de novo e aumenta; meninos vadios enchem a paciência da gente quando querem; sobem no meu lombo e futucam lá atrás com pedaços amolados de madeira, pegando corrida uns com os outros, coisa de gente desocupada. Tudo acostuma, o que é ruim, o que é bom. Perdem-se os caprichos de andar parecido como os burros ou os cavalos, primos ricos pretensiosos conservados nas reservas, a fim de serem explorados em trabalhos forçados ou nas pegas apostadas dos finais de semana.

Homens, esses animais imprevisíveis; agora eles acharam de corre montados latas coloridas, que enchem estradas forradas de preto, vez em quando trombando pernas, focinhos dos bichos agoniados, jogados nas pistas de velocidade. Respeito, esqueceram até consigo mesmos; conosco nem pensar. Uns ingratos; embriagados, então, viram sádicos, arrancam pedaços, machucam e esquecem fácil, fácil, as missões que nos confiaram nos momentos de trabalho do passado.


Meio monótona continuar isso tudo, andar à busca de surpresas quase sempre desagradáveis, na monotonia de ocupar lugares inexistentes e campos que, indiferentes, vida de estrangeiro, pois viemos da Ásia e nessa terra nos largaram.


Há notícias de, um dia, transportarmos a Família Sagrada, na fuga ao Egito, mas isso lá nos tempos envelhecidos, palavras guardadas só em livro; e sermos restos de civilização pouco preservados entre as dobras do sentimento. Longe, bem longe, aconteceu a viagem do Oriente, enquanto ainda hoje quase ninguém lembra mais a aventura de transportar o Príncipe das Nações.


Vivemos assim, nas periferias dos lugares, bichos anciões, criados soltos por causa da inutilidade em nos transformaram, semelhantes às garrafas secas que chutamos no escuro das jornadas.

Instrumentos de poder

Quando indígenas rodeiam dançando, cantando e sacudindo maracás em volta dos totens, ali reverenciam instrumentos de poder e cruzam a tênue fronteira que une o visível e o invisível da Natureza. 

Avaliamos a importância de centralizar em um instrumento de poder a força que todos somos e, às vezes, nem sabemos. No íntimo do ser, dispomos da pura subjetividade, e com ela saboreamos a prática da realidade objetiva sob os princípios da dicotomia entre o objeto e o sujeito, à qual a essa realidade obedece. Numa das peças de que se compõe o todo universal, objeto é energia condensada, enquanto sujeito, a menor parcela das individualidades, é energia em constante processamento. 

Noutras palavras, equivalem ao chão e à semente, no processo de atividade permanente de existir. E o que dá significado à existência do mundo nas consciências individuais. 

Diante desse quadro, há necessidade  dos instrumentos de poder, que são os meios usados pela consciência no trabalho de conduzir a força bruta a um fim útil. Isto é, usar objetos de centralização da própria energia dentro de si e a ela dá sentido, com isso, transforma força em poder, através da condução da individualidade a um objetivo final, o que, de comum, resume o sentimento da fé. 

Tais instrumentos de poder significam, pois, o sentido de viver de que fala Viktor Frankl, psiquiatra austríaco autor da Logoterapia, ou terapia do sentido. Diz que há de se ter um sentido na vida qual motivo de sobrevivência e significado da existência.

Instrumentos de poder, tanto abstratos ou materiais, servem de base a encaminhar o potencial humano pelas formas das místicas culturais, religiosas, políticas, filosóficas de modo geral, visíveis ou invisíveis, sólidas ou imaginárias, a preencher o potencial das personalidades.

Face aos tantos aspectos desse valor de cunho pessoal, a história caracteriza as aquisições das raças e da Civilização nos inúmeros símbolos disseminados pela face da Terra, onde pessoas, famílias, nações, instituições multiformes, preservam os credos, públicos e privados, profanos e sagrados, instrumentos valiosos da convergência infinita da força latente nos indivíduos e nas multidões, isto no efeito de domar o Caos na Ordem e chegar à Perfeição Absoluta, sonho das coletividades.  

sábado, 28 de junho de 2014

Página da vida

Via a flor toda manhã. Abria a janela, avistava o canteiro. Não sabia se o mesmo exemplar da noite passada, porém flor de fisionomia airosa, inteira.

Um dia mais, amanhecera. Lançou olhar ao viço vegetal, enquanto escutava no rádio plantão noticioso. Outra guerra explodira nos lados orientais, no Iraque; bases bombardeadas, homens-bomba, Bagdá. Soldados estrangeiros perseguiam e eram perseguidos. Armas localizadas embaixo de ruínas. Apelos de paz das instituições representativas e sem qualquer poder político.

Levado pelos sentimentos, arquitetou na imaginação de quem buscava a beleza da flor um suposto diálogo entre ela, o mimo do jardim, e a guerra do mundo, monstro devorador.

Seria a guerra quem iniciaria a conversa:

- Como andas, companheira deste planeta obtuso?

- Vou tangendo a minha vida. Não tão vermelha de sangue quanto a tua, mas rósea como nascem ad manhãs – meio tímida, pudica, respondeu a pequena flor.

- Tu eternamente orgulhosa! Sou encarnada por que me tingem os heróis no líquido viscoso que corre dos vasos e veias abertos nas batalhas magistrais, na luta. A ti jamais dirigirão tanta glória e feitos estratégicos, futuro construído nas dores do parto.

- Também não pretendo tamanha burrice. Os homens nunca procuram a beleza quando querem matar ou morrer. São eles uns egoístas azedos, endurecidos, animais ferozes, de caracteres pouco elaborados.

- Deixa disso, frágil criança. Continuas a deter o homem titânico. Para ti, grandes são os bobos que passam pela vida a vagabundear e fazer versos inúteis, imprestáveis. Esses são quem mais aprecio durante o meu repasto de pó e fumaça.

- Poetas são os poucos que forjam homens verdadeiros, no sonho dos conceitos e palavras. Se todos agissem como eles, viveríamos em novo universo que não habitarias assassina!

- Contudo, graças à matéria infamante, esses cabeças-de-vento não mandam nos meus domínios. Não confiaria neles um só minuto, e estou a eliminar suas vidas através das hecatombes e seus efeitos monumentais e castigos, principalmente nos países atrasados, longe das conquistas esplendorosas do desenvolvimento, onde impero com êxito e dela comando a festa da morte.

- Tu és das piores pragas. Se soubesses alcançar com teus arroubos hipócritas e canalhas a ti mesma, desaparecerias com eles. A natureza recusa que existas. Quem sabe olhar a pureza dos momentos originais, domina o amor. A ti, amor é máquina, fuzilamento, granadas, que adora qual a deuses fatídicos.

- Eis por que existo – a guerra respondeu, enquanto lambia feridas sem conta espalhadas no corpo oleoso da Terra. No meu reinado não admito que falem no amor. Meu maior sonho é ver o dia em que o Sol desapareça, dia que vai chegar, assim aguardo confiante. Paz não existe, é abstração doentia. Os meus inimigos são fracos amorosos a que breve dizimarei.

- Pusilânime! Nojenta! - gritou sobressaltada a pequena flor. - Existissem homens de coração verdadeiro e não dominarias! O horror que prometes não virá, pois defenderei a vida e os seres de boa-vontade.

- Vamos parar com isto - exclamou contrafeita, impaciente, a guerra. - Tu não mereces viver. Vou te arrancar pela raiz e silenciar tuas audácias.

Pelo sim, pelo não, olhei o jardim, no dia seguinte, e a flor jazia esmagada. Tudo que sobrara dela se resumia em pétalas murchas de corpo inerte, despedaçado.

sexta-feira, 27 de junho de 2014

A ciência do próximo passo II

Nisso de confiar em um poder maior do que nós que acompanha cada acontecimento em tudo que ocorre, adotamos aceitar os limites da condição humana e buscar se render às evidências, sob o esforço de cumprir as fases preliminares da responsabilidade que me diz respeito. Aguardar de Deus sustentação, mas agir do jeito que disse uma lameira de caminhão que, certa vez, avistei: Venha sorrindo, mas limpe os pés.

Alguns chegam a imaginar que bastaria pedir, e pronto. Imagino assim parecido. Que a confiança deva ser incondicional, bem nos moldes da fé pura e verdadeira das pessoas simples. Outros até consideram que o Poder conhecerá o de que necessitamos antes mesmo que tenhamos vontade de pedir. No entanto há que se haver plantado na intenção de suprir os petitórios, e colher nas necessidades urgentes, porquanto a Justiça prevalecerá nas ações da natureza com base no equilíbrio universal. Querer, porém antes que se mereça, eis o pressuposto que norteia as ações e oferece bases à confiança na certeza do querer com sucesso.

Trabalhar motivado na pequenez dos menores, contudo de olhos abertos aos infinitos mistérios da Criação que labora sob igualdade, bondade e harmonia, exercício matemático da perfeição.


Essa entrega incondicional dos ditames da bondade superior bem significaria a sonhada convicção ensinada pelas escolas espirituais, Faze por ti, que os céus de ajudarão. O excesso de racionalidade dificultaria, pois, a compreensão dos fatores da rendição absoluta aos valores da Eternidade.



O passo seguinte dos aflitos apresenta isto, o peso das dúvidas, ausência de juízo suficiente a orientar o desvalido nas pedras rudes da estrada. Nalguns momentos de interrogação, perante lágrimas e angústias, a vida continuará, e as flores haverão de brotar, o Sol nascerá dentro das almas, nas luzes da esperança, ocasiões de levantar os pés e seguir em frente, força viva e essência dos movimentos. Eis o de que mais necessitam os fiéis, aceitos nos braços amáveis do Criador.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Alcoolismo

Nas primeiras vezes, se acha divertido. Envolve-se. Alegra-se. Facilita participar de grupos sociais com mais satisfação, um passaporte de novas amizades. Fácil encontrar a bebida, que se oferecem nos variados cantos deste mundo, algo semelhante a sonhar de olhos abertos devido a tontura que acarreta e à euforia que provoca.

Mas que só fica nisso mesmo. Depois de algum tempo, qual dragão indomável, o vício toma conta da vida, e o que antes era sonho se torna pesadelo despropositado, a desafiar a capacidade humana de reagir e se libertar. 

Eis o alcoolismo, flagelo indescritível dos dias atuais. Monstro devorador da personalidade, intruso destruidor de famílias, jovens e adultos, homens e mulheres, ricos e pobres, esperanças, ideais. Tudo sob a permissão das instituições, fonte de lucros e origem de receitas tributárias.

Hoje, o alcoolismo vem sendo analisado sob outros prismas e passa a ser considerado um mal de solução difícil, agente nocivo desagregador de graves riscos à saúde pública.

Quando termina o dia de trabalho, começam os litígios. Pais de família saem pelos bares e casas de espetáculos a satisfazer o instinto da sede alcoólica, expostos à sanha perversa de piores consequências, porquanto portas se abrem fácil a quem busca as malhas do vício. 

A aceitação social, a falta de prevenção e as publicidades enganosas são fontes que explicam o porquê da quantidade de pessoas que abusam do álcool. A falta de conscientização e o desconhecimento dos efeitos do uso do álcool de forma descontrolada levam muitos, jovens e mulheres grávidas, a que se transformem em grupos de risco. 

A isso podemos somar o vazio que gira em torno das pessoas que sofrem dessa doença. O problema, sobretudo com os adolescentes, é o alto grau de violência que o excesso de álcool ocasiona, como também a quantidade de acidentes de trânsito que eles produzem quando em grau de alteração do comportamento motivado pela ingestão de bebida alcoólica. Às vezes, costuma acontecer, também, que um adolescente beba até chegar a limites perigosos, simplesmente para agradar o grupo de amigos. 

No caso das mulheres em período de gestação, o abuso de álcool nas primeiras semanas de gravidez pode produzir uma formação defeituosa no crânio, no rosto e deficiência mental no feto. É por causa disso que normalmente se aconselha às grávidas se absterem de beber durante os primeiros três meses de gravidez, e que depois, se houver vontade de beber, que o faça com moderação. Como normalmente a mulher fica sabendo do seu estado de gravidez algum tempo da concepção, é muito perigoso que ela beba em demasia. O outro grupo de risco são os desempregados e aqueles trabalhadores denominados não qualificados, pois se dedicam ao consumo do álcool em excesso por causa das condições sociais que se veem obrigados a viver. 

Abrir os olhos o quanto antes, eis uma forma de se garantir uma vida saudável e livre dessas mazelas suicidas a que muitos se submetem por inadvertência e maiores zelos consigo próprios.   

terça-feira, 24 de junho de 2014

Flagrantes da memória II

Do espaço nebuloso das lembranças, consigo reconstituir a primeira imagem que gravei do Seminário São José, vista de baixo, da Rua José de Alencar, entre as ruas Pedro II e José Carvalho, trecho onde primeiro morei em Crato quando chegara de Lavras da Mangabeira, em l953, ano do Centenário da Cidade.

O tradicional estabelecimento católico lá em cima se afigurava qual prédio sombrio, enegrecido pelas marcas do tempo escorrido na pintura a cal amarelecida, com manchas de lodo pela parede fronteira, meio encoberto por cortina de eucaliptos depois cortados. Destas árvores, quais frutos insólitos, balançavam ao vento urubus friorentos, vindos das imediações onde ficava o antigo matadouro público, lá nas bandas do Alto da Independência.



Outro aspecto nítido, que não me esqueço desse Crato de algumas décadas, o footing da Praça Siqueira Campos, desfile das pessoas a circular o passeio onde afluía surpreendente multidão aos sábados e domingos à noite.

Uma expectativa quase incontida perpassava a semana inteira, sobretudo de rapazes e moças. Tão logo se punha o Sol, movimento inusitado ativava a população. De todos os lados, nos melhores trajes, jovens e adultos preenchiam as ruas do centro.


O logradouro não demorava a fervilhar de gente, qual numa quermesse mágica. Luzes fortes, jardins bem cuidados, dezenas de carros parados em volta, o Cine Cassino movimentado e o som da Amplificadora Cratense, a envolver dramas e comédias, desencontros e encontros, numa algazarra multiforme.


As mocinhas, de braços dados, principiavam a girar; grupos de três, quatro, ou até mais, num animado carrossel, enquanto os homens, atentos e conversadores, se postavam em torno, nas laterais do circuito humano, olhos acesos na beleza feminina.


Da observação espontânea que se estabelecia, se davam as trocas de interesses, nos chamados flertes, aos primeiros toques de simpatia.


Só depois, com as mudanças trazidas pelo progresso, princípios dos anos 70, junto dos sinais de televisão que chegavam, sumiria essa festa interiorana, após deixar rastro de uniões feitas ou desfeitas, nas histórias familiares dos que ali se conheceram em momentos inesquecíveis. De se olharem, confirmadas as preferências, os rapazes acompanhavam a escolhida em mais outra volta da praça, seguindo ambos, depois, no sentido da Praça da Sé, onde quase sempre havia bancos vagos para o início dos namoros, umas vezes, fugazes; outras, prenúncio de casamento.

Presença

Às vezes me pego avaliando posições diante dos acontecimentos diários deste chão, na busca incessante das razões válidas de agir da forma coerente no que considero a individualidade sedimentada até aqui, fruto do tempo e do espaço dessa história que já vivi e hoje serei. Estudo o modo de exercitar os direitos e as obrigações perante os demais personagens que envolvem o cenário das horas em mim. Escuto, observo, examino com o cuidado insistente dos relojoeiros as práticas possíveis e imagináveis face aos elementos sociais, emocionais, financeiros, essas situações constantes que exigem definição e posicionamentos. Se em tais desafios, quais respostas por em campo, já que o começo dos roteiros particulares, individuais, significa o nascer, e o término, o desaparecer. São essas as valas comuns a todos os viventes, na existência temporal, que disso ninguém foge. No entanto há distinção nas reações pessoais perante os dias de vida que pulsam e somem. 


Aonde quero chegar? À vontade larga, aberta, de ser neste mundo, que, por si, alimenta o desejo de viver, produzir o bem, a ordem diante do caos que nalguns momentos parece querer dominar tudo em volta, segundo as civilizações trazidas até hoje.

Querer sonhar e sonhar no que apresenta o melhor jeito de acalmar a angústia dos dias que passam, na sequência natural dos acontecimentos, e simplesmente não deixar só escorrer no vazio a indiferença crônica que sujeita dominar pessoas e objetos, testemunhos dos vícios e costumes.

Supervisionar o trajeto dos instantes ao modo de quem admitirá haver saída honrosa às interrogações humanas, isso de maneira válida, justa e positiva, sem rejeitar o processo vida qual acidente natural de equívocos aleatórios.

Contrapor aos equívocos circunstanciais das gerações atitudes que cheguem logo, invés de abraçar a desistência e sumir vitimas das engrenagens trituradoras do sofrimento e desmandos, na interpretação lúcida, urgentes, a título de Salvação.

O novo modelo de sobrevivência decerto indicará a possibilidade da presença sagrada no altar das respostas. O que farei do que sou agora, protagonista desse Tudo que caberá só a mim responder, portanto.

Inusitado

Há muito que o secretário de Cultura da cidadezinha planejava oferecer ao homem do campo modernas produções do cinema mundial, sobretudo aquelas mais engajadas, comprometidas com o progresso humano, cheias de informação. Afinal o município precisava de umas sacudidelas, e o projeto envolvia abordagem sensível, generalizada, nessa quadra em que a maravilha da eletricidade beneficia também a zona rural.

A primeira experiência contemplou o sítio mais distante da sede, lá onde existiam casa grande, engenho, casa de farinha, localização típica do passado ainda de pé.

Data marcada com antecedência, desde cedo se conferiu o equipamento e arrumou o carro: uma televisão de 29 polegadas, vídeo da última geração, os cabos, as fitas e tudo o necessário para quaisquer emergências. Tão logo escureceu, partiram na missão conscientizadora.

Varrido com zelo, o terreiro estava na medida certa. Cadeiras bem distribuídas e gente muita pelas imediações. Até bandeirolas coloridas tremiam entre árvores, para ilustrar o evento raro.

Maca abaixo, o auxiliar instalou o som e, enquanto se providenciava apoiar os suportes da televisão, o senhor Secretário improvisou palavras preparatórias, justificando a nova programação graças ao ilustre Gestor Municipal, homem dinâmico e inteligente.

Dentro em breve, luzes reduzidas, se iniciava a função. Película de um diretor europeu, ninguém melhor escolhido para aquele momento. Bela história italiana do pós-guerra, Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini. É verdade que ainda em preto-e-branco, porém acessível ao público leigo. As atenções confirmavam a escolha, visto o silêncio que só foi rompido pelo guincho estridente do telefone celular. O secretário e seu auxiliar deveriam voltar à cidade, pois assunto urgente os solicitava junto à Prefeitura.                            

Com retorno garantido para daí a pouco, zarparam sem desfazer a exibição, que rodaria até o fim, quando chegariam a tempo de recolher o material.

Já quase inteirado o compromisso, o assessor municipal lembrou ter gravado na mesma fita que deixara rodando, logo após o filme principal, um pornô desses incendiários; fatalidade atroz. Visto o relógio, restava pouco tempo para acabar o primeiro filme em andamento. 

Por maior que fosse, o impulso de chegar se mostrou insuficiente para desfazer o choque cultural em andamento, no que pesem os estragos deixados na poeira do caminho. A casa, antes acolhedora, se via agora de portas fechadas, o terreiro quase vazio, sem as cadeiras, nem vivalma no silêncio noturno; e a peleja libidinosa troava no mundo lá na telinha (filmezinho sujo chegara ali mesmo), com quase ninguém a testemunhar, não fosse o abilolado Zé Sabugo, que, meio escondido num escuro, esticava o pescoço feito galo indiano em fim de briga, assistindo as cenas por detrás de goiabeira distante, a expor só um olho de cada vez, indiferente à baba que lhe descia pelos extremos da boca.

Reunidos os destroços, terminava de modo melancólico a primeira, e, talvez, derradeira, sessão de cinema de arte daquelas bandas do município.   

domingo, 22 de junho de 2014

Flagrantes de memória I

Foi naquele ano que presenciei um dos quadros que aqui descritos. Descia a Rua Bárbara de Alencar, em Crato, quando, no cruzamento da Tristão Gonçalves (antiga Rua da Vala), avistei surpreso um grupo de mais ou menos 200 homens, os flagelados, agricultores famintos. Todos eles, pacíficos, traziam consigo sacos vazios enrolados da mão para o pulso, à procura de alimentos.

Qual pelotão em ordem unida, o grupo passou silencioso, rumando às bandas da Praça da Sé, direção da Prefeitura, que à época funcionava nos altos da Cadeia Pública, hoje ocupado pelo Museu de Arte Vicente Leite.

A cena me causou espanto dada a presença forte daquela gente, homens esquálidos, sinceros, evadidos da cruel intempérie, embrenhados na sede do município quais corajosos soldados da sobrevivência.

Também da mesma fase recordo a prisão, nas matas da Serra, de um homem esquisito, de cabelos longos e desgrenhados, unhas recurvas, grandes e escuras tais garras, bigode e barba de anos a lhe encobrir a fisionomia selvagem. Denominaram-no Pai da Mata.

Por vários dias permanecera exposto à visitação popular, nas grades da cadeia, na rua Senador Pompeu, para onde acorria constante multidão. Muitas histórias circularam a seu respeito. Desconfiado e soturno, a ninguém respondia, quando interrogado, apenas fixava o vazio dos olhos enigmáticos.

Depois de uma ou duas semanas, transferiram-no para outro canto, nada mais sendo divulgado a respeito.

E quase em frente ao mesmo prédio, esquina da Praça da Sé, já nos começos da década de 60, quando instalavam a rede de água, outro fato se me gravou na memória.

Vi dali ser desenterrada uma igaçaba (urna funerária de barro, com riscos de vermelho amarelado). Na avaliação dos professores que a examinaram, servira para acondicionar despojos de chefe indígena das antigas tribos regionais.

Apenas os cacos permaneceram guardados durante algum tempo, no museu histórico da cidade, onde pude avistar algumas vezes mais.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Doces recordações

A gente se torna cativo do que ama, dizem os sábios. E que não existe saudade maior do que a ausência de quem a gente ama, também querem e consideram os filósofos do sentimento.

Vezes sem conta, lembro momentos dos tempos de criança, ali por volta dos três, quatro anos. Numa varanda do sítio em que vivíamos, revejo a cena de minha mãe costurando, eu sentado no chão, entretido com brincadeiras de menino, e escutava sua voz limpa a cantar canções daquela época (o peixe o pro fundo da renda, / segredo é pra quatro paredes. / Não deixe que males pequeninos / venham transformar os nossos destinos). Olhos fixos na profundidade do silêncio que metálico vagava no vento morno do sertão, tudo que podia de mim representava olhar as formas que as raras nuvens desenhavam no céu azul e borbulhava de imaginação as possibilidades do momento. Viajava lá por dentro de paisagens interiores. Bichos, gente, objetos, animação ininterrupta a manusear as imagens que, do barro de fiapo dos algodões soltos, compunha e recompunha mil histórias fantásticas nascidas nos verdes sentimentos que ferviam na percepção infantil. 

Depois, aqueles acontecimentos de figuras livres reapareceriam nos abstratos dos lápis coloridos que encontraria na escola, dando chance à criação inconsciente através dos traços de tintas soltas, na superfície ilustrada. 

Daquilo restou as possibilidades do gesto das recordações a fugir do desconhecido e encontrar os dedos que querem reter, nas palavras, nas fotografias, o fluir natural dos tais desenhos que escorrem nas gerações e se sucedem infinitamente, enquanto o valor do sentimento persistir, a coordenar tampos do que vivemos e preservar feitos nas relíquias de nós mesmos.

No espaço aberto das rotinas monótonas e burocráticas, depois obteria esses raros instantes de trabalhar o saldo bom daquelas horas inesquecíveis. Através da sombra de intensas lembranças, agora construo os antigos trajetos rumo aos santuários eternos, inesgotáveis, das tradições que conheci, celebrando assim rituais do sagrado que retive com a força da saudade, subindo as escadas de torres abissais das nuvens de criança e chegando fiel às moradas de belezas originais e puras.     

Os peixinhos

A sabedoria oriental busca, na simplicidade, os mistérios da alma humana. Estuda a natureza através da observação dos acontecimentos e considera os fenômenos quais instrumentos válidos de consideração dos elementos vivos que existem fora e dentro da pessoa que observar. O princípio que de tudo flui, por isso, nos sentimentos ativados pelos sentidos, ativa nos observadores a capacidade que permite ultrapassar as limitações impostas nas indagações de cada um dos acontecimentos naturais.


Nada melhor, no entanto, do que narrar esse episódio das histórias do sábio chinês Chuang Tzu quanto ao que denomina a felicidade dos peixes. 


Numa bela manhã de primavera, passeavam Chuang Tzu e Huei Tzu pelas paisagens luminosas de verdes campos, quando, ao cruzar a ponte sobre o rio Hao, notaram o movimento dos peixinhos nas águas claras logo abaixo deles, e o primeiro comentou: 

 – Veja como os peixinhos nadam! Nisso consiste a felicidade do peixe. 

 O outro parou alguns instantes e trouxe à baila pronta indagação:

– Você não é peixe, como pode, então, querer saber o que seja a felicidade de um peixe?

Isto foi o suficiente a que o diálogo seguisse adiante: 

– E você não sou eu, - disse Chuang Tzu - como pode, então, saber que eu não sei da felicidade dos peixes? 

– Se eu, não sendo você, não posso saber o que sabe, - insistiu Huei Tzu - se deduz que você, não sendo um peixe, não pode saber em que consiste a felicidade dos peixes.

Chuang Tzu, calmo, manteve o silêncio pensativo, mas ainda acrescentou:  

– Voltemos à nossa questão inicial. Perguntou-me como podia saber qual a felicidade de um peixe. Só essa pergunta prova que você sabia que eu sabia. Sei-o pelo que sinto aqui, agora, sobre esta ponte onde estamos.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Crato heroico, 250 anos

Em 21 de junho de 1764, há, portanto, 250 anos, assinava a criação da Vila Real do Crato o ouvidor Vitorino Pinto Soares Barbosa, segundo consta para homenagear ao lugarejo homônimo do Alentejo português.

E há 151 anos, no dia de 17 de outubro de 1853, era o Crato elevado à categoria de cidade, através da lei 623, num reconhecimento ao progresso conquistado em sua história de ocorrências indeléveis. Fora fundada pelos capuchinhos, dentre eles o frade italiano Carlos Maria de Ferrara, bem no início da colonização portuguesa desta parte de chão, tangidos no Ciclo do Couro pelos passos da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, desde o norte da Bahia.

Seus antigos habitantes, os índios Cariús, viram-se submetidos aos cravos da civilização européia, naqueles tempos remotos da Missão do Miranda, sítio original localizado onde hoje se elevam o Estádio Virgílio Távora e os conjuntos habitacionais Miranda; isso por volta de 1660 a 1680, datas que correspondem à vinda dos primeiros colonos.

Adiante um pouco mais, no Ciclo do Açúcar, nos idos de 1750, chegava ao Cariri, conduzido de Pernambuco, o primeiro engenho, a ser somando às práticas da pecuária que imperavam na Região, com a produção de rapadura. A dominação dos sesmeiros instalados guardava ampla abrangência, indo até as áreas atuais dos municípios de Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha, Farias Brito, Milagres, Jardim, Santana do Cariri, Caririaçu, dentre outros.

Outros acontecimentos se sucederam no desenrolar da sua heroica história, quando, em 1817, repercutiam nestas bandas as primeiras manifestações libertárias contra a Coroa portuguesa, originárias do Estado de Pernambuco, das cidades de Olinda e Recife, no primeiro impulso republicano das idéias da Revolução Francesa, abafado em repressão vigorosa. Alguns nomes afloraram à época, com intensidade, dentre eles, o de Bárbara de Alencar e de seus filhos, Tristão Gonçalves e José Martiniano de Alencar, então jovem diácono, e do primo Leonel Pereira de Alencar.

Após a Independência de 1822, focos lusitanos permaneceram a contestar o novo regime estabelecido. Nesse tempo, tropas cearenses foram convocadas pelo Império no sentido de debelar tais resistências, no Piauí e no Maranhão, e consolidar a independência do jugo de Portugal. Seguiram juntos Tristão e Filgueiras, anteriores adversários de 1817, à frente do mesmo exército. Até que, em 23 de janeiro de 1823, Pereira Filgueiras entra em Fortaleza para assumir o comando de Governo Provisório, sob a égide da mais inteira independência brasileira em terras cearenses.

No entanto, logo no ano seguinte, perante o fracasso da Constituinte de 1824, outra vez se ergueram lideranças cratenses, pernambucanas, paraibanas, através do movimento denominado Confederação do Equador, pondo-se em armas, outra vez apoiadas, no Crato, pelas figuras de Bárbara, Tristão e Martiniano, agora somados a José Pereira Filgueiras.

O desdobramento das marchas confederadas criou a República do Equador, sob a Presidência de Tristão Gonçalves, que foi chacinado lutando em plagas sertanejas, no dia 31 de outubro daquele ano, em uma campina do atual município de Jaguaribara, cujo ponto geográfico ver-se-á inundado, em futuro próximo, pelas águas do açude Castanhão.


           

terça-feira, 17 de junho de 2014

Ildefonso Lacerda Leite

Em 1900, dona Fideralina conseguiria materializar sonho acalentado pela família, isto quando Ildefonso, seu primeiro neto, colou grau no Curso de Medicina da Faculdade do Rio de Janeiro, onde desfrutara, na Capital Federal, as benesses dos salões cariocas e se dedicara às luzes da ciência.

O jovem médico escolheria fixar residência e clinicar na distante Princesa, cidade pequenina do solo paraibano, estado onde nascera seu genitor, Luís Leônidas Lacerda Leite, o meu bisavô. 

Consultório montado, também instalara uma farmácia nos moldes da época, com a manipulação das substâncias químicas e aviamento dos medicamentos receitados, longe, longe dos moldes da indústria farmacêutica moderna.

Vivendo o cotidiano da cidadezinha com ideias positivistas trazidas do meio acadêmico, o novo doutor exercitava conceitos de livre pensador, daí nutrindo pouca afinidade com os costumes religiosos dos sertões, razão do desgosto que lhe votava o pároco da freguesia. Enquanto isso, porém, merecera as graças de Dulce Campos, moça distinta, filha do Cel. Erasmo Alves Campos, gente importante da região. 

Demorou pouco até conquistar em definitivo o coração da donzela, que, no entanto, fora notada também pelo delegado da localidade, Manuel Florentino, aparentado próximo.

Sentimentos identificados, e só custariam alguns meses até os dois, Dulce e Ildefonso, se unir em matrimônio, angariando, de tal modo, inimizade figadal na pessoa do outro candidato à mão da bela infante.

Lá uma tarde, indo à farmácia buscar medicação para a esposa, grávida do primeiro filho, Ildefonso teve de passar defronte à residência do rival e, ao regressar, se viu apunhalado pelo antigo pretendente de Dulce e, em seguida, assassinado a tiros com a participação de terceiros.

O trágico ocorrido não demoraria de chegar ao conhecimento de Fideralina. Estarrecida com a brutal fatalidade, ela reuniria grupo de cabras do Tatu, que, municiados e somados aos de outros coronéis amigos, algo por volta de 100 homens, viajaria levando as recomendações da matrona que, da missão, trouxessem as orelhas dos responsáveis pela morte do neto, provindo daí a notícia histórica de que D. Fideralina, ao rezar, desfiava rosário formado pelas orelhas dos algozes do neto, qual dizem algumas lendas que dela circulam mundo afora.     

Geraldo Lobo

Quando criança, em Crato, conheci Geraldo Macedo Lobo, Doutor Geraldo, qual nos acostumamos a chamar, amigo de meu pai, pessoa educada e culta. Residia, nos idos da década de 60, à rua Cel. Raimundo Lobo, cercado da animação dos filhos, família bonita e numerosa. Ali, em volta da casa, havia amplo espaço sombreado de árvores frutíferas, onde reinava sempre clima de fresta. Aos finais de semana, na companhia de convidados, servia refeições realçadas pelo churrasco que ele mesmo cuidava de providenciar, uma das habilidades adquiridas quando vivera em uma fazenda do Sul, a trabalhar como agrônomo, a sua formação universitária. 

Nas manhãs e tardes, das mais agradáveis, se ouvia os acordes do Trio Irakitan, Nat King Cole, Billy Vaughn e sua Orquestra, e demais sucessos do período.

Ele, pessoa distinta, dava o tom das conversas, presença agradável como poucas, de trato hábil e leve nos gestos, argumentação e sorriso nos lábios. Usava uns óculos de lentes grossas, verdes, que destacavam a miopia avançada, curada em fase posterior da vida, pela Medicina, permitindo-lhe conhecer detalhes nunca antes vistos, motivo da enorme satisfação que transmitia a todos. 

Recordo com facilidade do entusiasmo que demonstrava ao ler em voz alta trechos dos Clássicos Jackson e outros livros, que manuseava diante de farta biblioteca. Lia e comentava, demonstrando prazer contagiante, tiradas filosóficas e ricas de conteúdo literário. 

Por tantas vezes, pude privar da salutar educação daquela família e da sabedoria expressiva do seu chefe. Depois, à medida que em tomei gosto pelas letras, vim encontrar os poemas dele, assinados com o pseudônimo de G. Lobo, nas páginas da revista Itaytera, do Instituto Cultural do Cariri, e saber da propensão de poeta inspirado, amante das artes que primava no íntimo. Somadas as peças, compreendi melhor a personalidade refinada de Geraldo Lobo, misto de tabelião e líder comunitário, inclusive candidato a vereador nas eleições municipais de 1950, e intelectual apreciador da boa literatura. 

Pelo decorrer do tempo, solidifiquei amizade aos seus filhos, dos quais fui colega de Samuel, no Colégio Diocesano, revendo muitas vezes Doutor Geraldo e Dona Adamir na faina do cartório, à rua Senador Pompeu. No andar dos acontecimentos e devido os filhos irem estudar em Fortaleza, aos poucos se distanciara do dia a dia cratense. 

Assim, guardo comigo, face ao papel especial que bem desempenhou na sociedade de Crato, as melhores lembranças desta pessoa prestativa e civilizadora de Geraldo Macedo Lobo.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A vontade e o amor

São as duas forças poderosas, as mais poderosas que existem. A primeira, através do pensamento; a segunda, por meio do sentimento. A primeira, na matéria. A segunda, em todo o Universo. A primeira, restrita aos humanos. A segunda, energia que move tudo o que há, sabor dos deuses e Sol das almas.

O querer, ou a força do querer, mesma força da vontade, rege os relacionamentos diante das realidades objetivas, das crises e intenções dos fenômenos provocados pelas pessoas. Ativa os valores e os princípios. Anima as transformações possíveis e imagináveis, fruto das concepções humanas. Razão principal, ocasiona o desenvolvimento das ideias na prática e permite o ansiado progresso das instituições, ativando meios de sobrevivência de países, raças e continentes. A verdade manifesta da vontade advém do que as religiões denominam Fé, força interior de acreditar, respeitar a existência das forças superiores às circunstâncias só visíveis, perceptíveis através dos sentidos físicos.

O amor, a seu modo, que também pode ser Amor (com letra maiúscula), este postulado essencial preenche o visível e o invisível, o possível e o impossível, capaz de mover montanhas e multidões, diante dos processos de crescimento do conceito espiritual da vida.


Um tanto se escreveu quanto ao sentimento mais alto que existe, o consagrado Amor. Personagem dos romances, filmes e novelas, que citam em tudo por tudo que vende milhões de cópias e poucos, pouquíssimos (não fossem as mães e os pais), e jamais saberíamos de verdade o que é o Amor, a alma dos mundos, justificativa de toda presença, ou ausência, no concerto dos acontecimentos imortais.


A vontade, pois, significa coragem de realizar. O amor, ao seu modo, significa o pressuposto que une as existências, causa original. Enquanto a primeira vence o peso da inércia, o segundo acalma, instruir e justifica o sentido de viver e iluminar o caminho dos que andam pelo mundo em forma de gente.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Ao sabor de palavras soltas

Quando se escreve para satisfação pessoal o texto flui do modo mais espontâneo possível, livre da obrigação dos gabinetes de quem teria de cumprir um compromisso, dar de conta de recado profissional, aos rigores do dever e sob condições quiçá adversas, conquanto cumpra o mister de apresentar resultado nas palavras que voam livres pelo ar, escorrem nas paredes da memória feitas resina de pensamentos e sentimentos, à razão intermitente das horas. Caem aos borbotões, que levam tantas vezes ao instinto avassalador de alguns deixarem brotar a rodo páginas e muitas páginas, excessos talvez, qualquer compulsão desenfreada dos que falam para acalmar a ansiedade interna, neuroses, questionamentos matemáticos de dominar o absoluto, pássaros de peitos doridos, movidos a saudade fervilhante, zumbis assustados nas meias noites do sertão, furor dos vendavais da natureza indômita. Escrever. Produzir. Gerar frutos. Parir. Guardar em forma de expressão particular aquilo que recorre ao sair de dentro das cavernas da alma ao sabor das batidas de corações apaixonados pelo pulsar do tempo nas caminhadas eternas dos bichos assustados. Filosofar no assunto, nos assuntos demasiados, o custo apenas do infinito vicejar nas veias, sem, contudo, garantir chegar a pouso certo, definitivo. Temas que não gastariam, em todos os quadrantes, o lugar da nostalgia, alegria, felicidade, afeição, bem ao sabor da vontade acelerada nos gosto de falar, febril alento derradeiro dos condenados, ou concatenando frases de puro efeito formal, ou pipocar de gestos sem nexo, só no prumo das pontes necessárias ao prazer das criaturas humanas se acharem nos seus postos individuais, testemunhas privilegiadas e variadas chances do ato de viver, permutar inevitável de fichas nascidas no útero largo das entranhas existenciais. Frases. Blocos. Botões. Piões que giram na civilização formada ao preço de transformações constantes, moendas e trituração da paz em nações, desde que gente é gente e descobre o poder do verbo partilhado, no meio de praças e mercados. Flanar entre palavras e emoções. Voar perto ou longe das verdades exercitadas nos grupos sociais, ou mergulhar nas cinzas de passados remotos desconhecidos, histórias dormidas de gretas e penhascos distantes, reticências e parágrafos, relevos e tradições da geografia abstrata do ser em floração nos pousos das solitudes nobres exclusivas. Tocar temas atuais, transmitir receitas prontas de comportamentos, coisa fácil de promover quanto significa mandar alguém exercitar o que o bom senso indica, além até do exercício inicial particular dos autores da lição. As dissertações inacabadas dos livros da moda, viagens ao mar desconhecido da teoria acadêmica, enquanto a vida desliza leve solta consistente no íntimo de todos, professores e discípulos, ao fio das oportunidades do moinho. Contar histórias, atitude boa enquanto paciência de organizar os quadros, ritmos e melodia, no humor justo dos andamentos costumeiros da compreensão. E as descrições do palco, onde o transcorrer dos dramas e das comédias alimenta o firmamento aberto dos holofotes intermitentes e suas centenas de detalhes repartidos no convés das circunstâncias. Querer conhecer a base do dizer das palavras, trocar mistérios antes guardados para si. Passar adiante versões comuns, dotadas do brilho único do jamais, convites à atenção dos presságios e nuvens calmas, vindas no vento, trazidas ao poente pelo tempo. Luzes, lápides, canções. Saber assim, nestas épocas mecânicas de versos em profusão. Escarafunchar as gavetas dos papéis desarrumados e trazer ao sol das estradas matinais flores escondidas nas estantes abandonadas dos porões. Fábricas de sonhos, máquinas de plenitude em elaboração.  

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Ilusões de um cachorro

Indagado qual a razão de o cachorro ser o melhor amigo do homem, com propriedade um sábio respondeu: - Porque ainda não conhece o dinheiro. 

Ah! Os bens materiais, quantas cogitações equivocadas podem ocasionar no bloco das vaidades humanas. Talvez, também, os comportamentos animais, acho que nas fases de preparação de outras vivências da natureza. Sei não, pois há tantos mistérios a desvendar, da Terra ao céu, que causa ânsias e vertigem.

O cachorro da minha casa, por exemplo, este apresenta manias bem típicas dos bichos da espécie, com o agravante das arrogâncias dos cachorros de raça, valentões, pretensiosos, dos que olham de cima as pessoas. Sempre que abro a porta para sair na varanda, ali está ele, o verdadeiro dono do pedaço. A segunda coisa que faz depois de balançar o toco do rabo, trazido assim mutilado, segundo explicaram, para manter o padrão da raça, a segunda coisa, mostrar a língua e lamber o focinho, tomando gosto, qual abríssemos a porta toda vez só para lhe levar alimento. 

Acha-se o dono absoluto de toda a extensão territorial da casa e do muro que a cerca. Mija por todo canto, costume estudado pelos especialistas caninos que adotam para demarcar o espaço das suas pertenças. Nesse ponto, mora o título deste comentário, o motivo das ilusões dos cachorros, por pensarem possuir o mundo inteiro onde mijam descaradamente. Caso consiga escapar até a rua, sai mijando tudo que aparece à frente, semelhante ao que providencia cada vez que chego com o carro, renovando mijadas nos pneus, parachoques, lataria, reforçando o instinto que alimenta de proprietário exclusivo do transporte que adquirimos com relativa dificuldade. Ele nem de longe imagina o que de antipatia isso acarreta no dono, essa pretensão de garantir só para si um direito que corresponde à família inteira.

Os passarinhos que pastam pelas imediações em volta da casa, a seu modo, sofrem na pele essa inclinação possessiva do cão alienado em constante vigilância. Corre e late desesperado quando sanhaços, sabiás, anuns, garrinchas, griguilins, pardais, vinvins, lavandeiras, bentivis, aventuram catar insetos e sementes no chão. Vez em quando aparece pássaro morto na varanda, prática parecida com a dos humanos, únicos animais que matam e abandonam a vítima. Os outros assassinam apenas no propósito da sobrevivência.

As ilusões do cachorro chegam ao domínio de causar mais constrangimento aos seus donos. Caso saia a telefonar na varanda, quem aparece, ele, atento na escuta de toda a conversar, quebrando qualquer sigilo, semelhante aos agentes secretos deste mundo. Até hoje, porém, não descobrir de como se beneficia da escuta privilegiada.  

Sua agressividade patrimonial, no entanto, restringe as visitas que de raro recebemos, seleção prévia que ele mesmo estabelece. Resultado, alguém bate no portão e eu corro apressado a prender dito chefe provincial, o que deixa a impressão do tanto de analogia dos bichos com os humanos, tão cheios de ilusões de honras e posses, durante a curta jornada desta vida, surpreendidos, inevitáveis, nas folhas que, secas, voam dos calendários.

O Gueto de Varsóvia

Desde o primeiro dia de setembro de 1939, até meados de outubro de 1940, o exército alemão lutou para consolidar a Polônia invadida, estopim da segunda maior conflagração mundial. Cessados os combates mais cruentos, se iniciava a perseguição aos judeus da Capital, que totalizavam em torno de 400.000, logo confinados pelas tropas da SS numa área de duas milhas de comprimento por uma de largura, bairro denominado depois Gueto de Varsóvia. 

Esse exíguo território submeteu-se a incertas e esporádicas incursões dos nazistas, que pretendiam de tal modo eliminar a população do recinto, transportando-a aos campos de extermínio e de concentração. Independente das agressões temporárias, se registravam uma média de 300 baixas diárias, face às péssimas condições de higiene e habitação que ali imperaram.

De 22 de julho a 03 de outubro de 1942, o governador-geral da ocupação, Hans Frank, promoveu a deportação de 310.322 judeus, na maioria para o campo de Treblinka.

Ao perceber inexistirem perspectivas de libertação, em janeiro do ano seguinte, 1943, os moradores do gueto resolveram conduzir o primeiro levante popular, quando mil judeus, em ato de única contingência, mataram 50 soldados alemães que arrebanhavam novos prisioneiros no bairro.

Restava, nesse período, população em torno de 60 a 70 mil judeus, dizem relatórios oficiais apresentados durante o julgamento dos nazistas verificado depois da guerra, na cidade de Nuremberg. 

No dia 19 de abril daquele ano, sob as ordens do general Stroop, chegaram as tropas alemães munidas de tanques, artilharia pesada, bombas de gás venenoso, lança-chamas e dinamitadores, prontas a varrer por completo o que restava de vida naquela área.

Perdidos, no entanto, os sobreviventes decidiram resistir até o fim, a qualquer custo. Reagiram tornando as galerias subterrâneas e os esgotos do subsolo da praça fortificada, escrevendo com bravura inigualável dos maiores e mais encarniçados capítulos de heroísmo coletivo que oferece a toda a historia das tragédias humanas.

Da superfície, os alemães presenciavam estarrecidos e frios as derradeiras resistências judias. Contrários ao opressor, em vez de se entregarem às câmaras de gás, escolhiam o sacrifício das armas cruéis. Quase nada possuíam de meios de defesa. Montaram estratégias suicidas, valentes, furiosas. O que poderia ser operação rápida, perdurou por quatros semanas de longos e sucessivos atos de coragem nos subterrâneos poloneses.   

Os números dos acontecimentos no Levante de Varsóvia apresentaram saldo equivalente a sete mil judeus assassinados e 50 mil transferidos aos campos de concentração, quando vencida a resistência de um povo intrépido. 

domingo, 8 de junho de 2014

Noites de lua cheia

Passar o tempo neste apartamento de livros, quadros e fotografias me deixa precisando de repouso. Os discos, bons companheiros antigos, se transformaram em trecos repetitivos, lineares e aborrecidos.

- Vida de cidade grande. CIDADE GRANDE, argumentos anêmicos. Razões do passado, quando plástico era elemento curioso, como espelhos e fitas coloridas dos portugueses aos índios.

Hoje, tudo ficou diferente, perdido que está o sonho da combinação artificial das cores. Aquilo de se ser um pouco de humano - de necessitar da natureza - não mais pode ter compensação nas noitadas em frente aos vídeos, jogos de futebol e cinema. Quer-se viver de verdade. Viver de verdade (engraçado, não fosse trágico). Hora de decisão. Onde sobra querer demorar um pouco mais.

É noite de lua cheia. (- Mas hoje não é quarto crescente?).

Pouco importa a lua. Vivemos o expediente. Quinze para as quatro, esquina da Piedade amanhã. Viver. Vegetar. Utopia em antítese. O regresso; a síntese.

As mariposas nunca mais procuraram a luz. Luz artificial industrial. Noites de cidade. As noites de apartamento. Ausência de vida pelo ar. Um cheiro de incenso envelhecido, de mofo. Vidas artificiosas nos jornais, nas revistas. Sonhos andam escassos, esgotados pelos desanos (anos de desenganos). Ausência completa de neologismo. Um mundo de silogismo e sofismas. Saudades amarelecidas, nos varais em volta.

Como dizem os que quebraram a cara: - Do erro nasce a coerência do certo através da dor.

De uma falha burocrática, a máquina tomou o lugar do Homem, dono do Planeta, na ordem natural das coisas. Alguns sacrificaram todos. Cidades em volta das fábricas. Cidades em tudo. Monstros de ferro e fogo. A própria brutalidade envidraçada.

Assim, muitos anos. Assim, em volta espiralada. Sofisticação universal de centros cercados de substâncias apodrecidas. Noites de floresta. O mundo fantasioso dos ancestrais. As histórias de Bradbury. Vida marciana. A beleza em tudo. O amor. A consciência. A justiça. A igualdade. O sonho. A liberdade. A vida. O trabalho. A honestidade. O equilíbrio. O frio. O quente. O açúcar. O sal. O som. As flores. As árvores. A criação. Deus.

A raça se levanta devagar. Levagar. O ovo. O novo. Tempo transcorrendo no vento e uma sensação de calor. Uns descem, outros sobem a Avenida Sete, às 9h de um sábado de primavera, no fervor do comércio. O Sol. A procura do não se sabe o quê. Do não se sabe onde. Preço químico dos acrílicos bocejantes nas encostas dos morros. O rapa expulsou os hippies. Salvador do turismo, como meretriz sorridente, segue pras bandas da Praça da Sé pela Rua Chile. Cheiro baiano de África, de Continente Negro. A manhã - a manha... amores de dendê - de onda do mar - de areia branca - das madrugadas de Itapuã - de sabor de sal na pele o dia todo.

Uma noite a mais pela frente. A Lua crescendo. Os discos nem sempre silenciam. Mesmo porque (de que adiantaria?) carros cobririam o silêncio. Apartamento é como caixa de som, tem vibração, tem de tudo.

Texto escrito em 28.10.76, com pequenas modificações.

sábado, 7 de junho de 2014

Roteiro

Nesta semana, desenvolvi prática de coragem que nunca antes pensara precisar ver acontecer.  Fiz da fraqueza a força e cumpri exercício que agora buscarei contar. 

É que me achei na condição de rever a casa de meus pais depois que eles haviam partido deixando vazio o lugar onde passaram 50 anos, mais um pouco. De cômodo em cômodo, circulei. Sem móveis, o interior das casas aumenta de ressonância, mostrando a carência de preenchimento das paredes afastadas do mundo lá de fora. 

Sozinho, desenvolvia o itinerário sentimental de tantas outras oportunidades que as pensava para sempre, verificando também por dentro de mim momentos vividos, ora espalhados no ar rarefeito da manhã. Vagaram notícias antigas, pensamentos, falas, risos, fisionomias, alegrias, apreensões, ações e reações das pessoas, horas difíceis, instantes felizes no seio da família, tudo no manto da transitoriedade que ficara tão só no instrumento psicológico que somos nós. O carinho de minha mãe. A disposição incansável de trabalhar de meu pai, anos a fio. 

Naquelas circunstâncias, pude resoluto examinar de perto o compromisso de andar o espaço que servira de morada à nossa família por mais de meio século, testemunhando o segredo da existência neste chão prenhe de ausências e presenças que se repetem no fluir das gerações. Algo viajara comigo no tempo deixado em fiapos ocultos das horas reais da família durante missão de receber os filhos e prepará-los na vida, e resistir até onde chegam os frutos do que gerou; às vezes, machucados; outras, sadios, realizados.

Dali, algumas cogitações ainda permanecem escarcaviando por dentro da alma na gente, feitas células, lanternas de sobrevivência da saudade contundente, nas histórias que ganharam formato de árvores imensas, espalhadas nas colinas verdes do Infinito. 

Olho, então, com respeito o mistério da fé, quais dizem os padres na celebração da missa. Há, bem naquele canto, uma fronteira nítida entre dois planos, o visível e o invisível, disposta a receber os que aqui vêm sob leis de mortalidade/imortalidade. A compreensão dos indivíduos representará, nessa hora, o nível de certeza, que cresce na medida em que adquire experiência de superar a dor e mergulhar nas condições dessa temporalidade só e inevitável.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O leão e o macaco

Lá certo dia, o leão vendo o risco de deixar este mundo sem nunca haver experimentado da carne do macaco, resolveu conquistar o sagaz animal e satisfazer seus apetites. Chamou a raposa e, juntos, criaram espécie de plano que correspondia a uma audiência permanente com todos da floresta bem dentro da gruta que lhe servia de esconderijo.

Daí, começou o movimento, vindo bicho de tudo quanto era canto. Os convidados entravam na furna e passavam horas, depois saíam sem revelar o que acontecia entre eles e o Rei.

Naquilo, o macaco, observador por natureza, ficou de butuca em cima das árvores das imediações, desconfiando que alguma tramoia se desenvolvia na área, envolvendo tanta gente.

Tempo vai, tempo vem, e nada dele tomar gosto, acordar a curiosidade característica e também chegar para negociar com o chefe da floresta. 

Nisso, o leão resolveu mudar a tática e ele mesmo veio até a frente da morada no propósito de estabelecer diálogo com o símio ainda pendurado no alto das árvores maiores, longe de suas garras.

- Sim, compadre macaco (que os bichos gostam de tratar uns aos outros desse jeito) – foi falando a fera monumental, enquanto sacudia a juba meio parecido que contrariado. – O senhor vive distante das atividades do meu reinado. Quer contar o que se passa nessa cabeça, meu irmão? – perguntou o soberano, querendo impor autoridade nas palavras.

- Ah, majestade, ando sobrecarregado de compromissos por causa das invasões dos humanos explorando e querendo tudo só pra si – explicou o macaco, já de olhos acesos diante da força do leão.

- Pois, então, amigo velho, entre e venha conversar nos problemas que atravessa, que decerto oferecerei a tranquilidade que procura para suas preocupações.

- É, majestade, mas analisei bem o seu jeito de atender aos súditos. Notei coisa esquisita, e quero salvar minha pele. No chão defronte da porta de sua gruta há muito mais rastros de animal entrando do que saindo – e dizendo isso, mais que ligeiro sumiu desembestado quebrando cipó no eito da floresta, e nunca que quis maiores aproximações com o leão e sua fome de carne de macaco.  

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Uma dor moral

Nas ações solicitando reparação por danos morais a autoridade judiciária haverá de dizer o direito a quem reclamar, isto em face da avaliação da dor moral que o caso em si defina, consideradas as consequências e os prejuízos aquilatáveis no correr do procedimento. Isso que acontece no âmbito da subjetividade, o que requererá profunda sensibilidade ao julgador. Saiba-se, pois, daí o peso das sentenças aos seus autores, diante das inúmeras situações do tipo que a rotina oferece nos tribunais.

Entretanto, os abalos psicológicos representam marcas na caminhada dos humanos, dias, horas e minutos. Quanta dor moral a machucar semelhantes no decorrer das gerações. Os traumas, as torturas, ressaltam valor inestimável e cruento; e viver significa desenvolvermos o sentimento, até chegar à forma divina do aperfeiçoamento das criaturas, na casa maior do perdão. Jamais se fugirá da condição terrena livre de cicatrizes acerbas no íntimo do coração. 

A escola da jornada terrena implica nisso, em respostas às ações por vezes inconscientes ou egoístas, que causam extrema repercussão nos outros, quando quem sabe é quem sente o dano de atitudes por vezes indiferentes, conquanto do tamanho descomunal em relação aos autores escondidos sob vestes intocáveis. Ninguém escapa, igualmente, aos equívocos dos gestos inconvenientes que ocasione. 

Nas relações sociais, esse trem percorre distâncias infinitas, seja no trânsito, nos gabinetes, bares e praças de alimentação. Ainda que só queiram ser pacatos e frios, envernizados e prudentes, atores do drama coletivo praticam e esquecem o motivo das produções pessoais. Em sobejas situações, passam incólumes. Flagrados e descobertos nas fraquezas cotidianas, que, trazidos a responder, revelam facetas até a si ignoradas ao desprezar o brocardo de que agir sujeita ao erro, mas a omissão já representa o próprio erro. E não raras oportunidades, os protagonistas erram pela omissão, momento indicado a revelar respostas certas dos compromissos assumidos perante a condição humana de servir e amar.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

São Gonçalo do Amarante

Consta da tradição popular que, certa feita, vindo Jesus por uma estrada deserta, deparou-se com Gonçalo, músico da cidade portuguesa de Amarante. 

- Mestre, em que lhe posso ser útil para diminuir a tristeza deste mundo? - quis o artista saber e nisso foi perguntando.

- Ora, Gonçalo, por mais que faça, não conseguirá dominar o espírito rebelde dessa gente, e mais ainda desses que se divertem no prostíbulo da vila - respondeu Jesus. -Passei lá e eles se mostram surdos aos ensinos, iguais a outros que preferem continuar na perdição.

- Senhor, haverá, por certo, meio de educar. Quem sabe a música toque os seus corações. - falou Gonçalo, disposto a colaborar na divulgação do caminho do bem.

- Tudo pode acontecer. Já que é violeiro, quer experimentar esse recurso da música? - acrescentou o Mestre divino. Seguiram prosando e, depois desse diálogo, os dois combinaram que, na hipótese de o músico realizar a proeza de transformar os pecadores do prostíbulo da vila de Amarante, receberia em dobro as bênçãos.

Gonçalo seguiu na missão. Quando chegou à comunidade, tratou de acertar, naquela mesma noite, uma festa em que tocaria para quem viesse ao salão de dança. Os frequentadores do lugar aceitaram de bom grado o convite, animados, naquela rara oportunidade. 

Festejaram a noite toda, até de manhã cedo. No cantar do galo, ainda se ouvia o pinicado da viola do músico. Era chegada a hora de trabalhar. Todos deveriam procurar suas obrigações, sabedores, no entanto, de que, mais tarde, de noite, se repetiria a função. Mulheres e homens recebiam de bom grado bem a chance de se alegrar com a música de Gonçalo. 

Enquanto isso, a notícia se espalhava das cercanias aos lugares mais afastados, quando escureceu. Vieram as pessoas interessadas no folguedo que invadiu a madrugada. Antes do fim de cada festa, Gonçalo repetia o convite para a noite seguinte. Não deixava diminuir o ânimo dos frequentadores, e dessa forma continuou dias seguidos. À noite, os bailes animados; de dia, os afazeres duros do trabalho de cada um dos convivas, a fim de manter a sobrevivência.            

À maneira de Gonçalo, todos, sem exceção, tanto as mulheres quanto os amantes, viram a contingência de largar os vícios e a fornicação, por meio da música sadia e da exaustão, nas numerosas festas 

Alguns dias mais, e concluiu a tarefa e se apresentou a Jesus, levando consigo a fieira de almas que havia catequizado. Conta mestre Joaquim Pedro da Silva, o responsável pelo grupo da dança de São Gonçalo que existe na subida do Horto, em Juazeiro do Norte, que Gonçalo, fazendo daquele jeito, adquiriu merecimento de poder socorrer os que lhe procuram, sem precisão de outros intermediários, chegando até Deus com a sua força espiritual, pois dispõe da ciência que recebeu de Jesus quando atendeu ao ofício que Ele determinou.         

domingo, 1 de junho de 2014

Quadros e galerias

Os melhores quadros nunca chegam às galerias. As melhores inspirações nunca passam além do peito, isso porque não conseguem sair e dizer o próprio nome em forma de significado. E aqueles que as encontram, e as recebem em si mesmos, jamais resistiriam dizer de tanta beleza, contar de tanta poesia, porquanto a força incontida do viver impõe a isso condições inestimáveis.

Quantas e quantas vezes sendo assim, pelos séculos intermináveis, de se saber de coisas lindas, nos sonhos, nas manhãs agradáveis, e não saber, hoje, amanhã, nos outros dias, transmiti-las em termos artísticos. Olhar os céus, o mar, a serra, o Sol; sentir a energia do som, da brisa, e não conseguir falar de tais qualidades impossíveis de caber nos pensamentos, nas palavras, nos versos, nos lápis, nas telas, nos filmes, nas fotografias...

Os mais destacados artistas, todavia, insistem e se entregam ao ofício de colher as flores do tempo e oferecê-las em forma de criação, para transmitir de mão em mão, querendo eternizar o fugidio, multiplicar o momento, dizer de tanto mistério, e buscar adquirir o poder das coisas perfeitas, trazê-las em códigos, passá-las de si adiante.

Muitos até que um pouco disso conseguem, mas mesmo sendo desse jeito, poucos são aqueles que se apercebem de tanta beleza, do tanto de poesia que transmitem os maiores artistas, a fim de passar de mão em mão os painéis luminosos da Natureza, no quadro desta vida, querendo através do sonho e da arte eternizar o fugidio, domar o indizível, multiplicar o momento, vencendo a impossibilidade de passar além do peito as maiores inspirações, as fazendo sair quase sem conseguir, lançando além das vagas doces mensagens infinitas das vagas e brisas.

Isso porque os melhores quadros nunca chegam às galerias...

Aqueles que os encontram, silenciam no sentido da beleza tanta da poesia a lhes doer dentro do peito, falando de algo que não podem passar além de si, porque não conseguem transmitir, dominar o momento, dominar o fugidio.

E ficam desse modo, a contar só as notícias daqueles melhores momentos, quadros esses que nascem das folhas soltas dos dias, nas luzes eternas da existência, porém que jamais chegam às galerias. 

Diz o credo taoísmo, religião chinesa de alguns milênios passados, sujeite-se ao efeito, e não busque descobrir a natureza da causa, modo de querer paz em face de tudo que neste mundo aconteça. Feridas pedem tratamento. As palavras adormecem nos livros, almas vivas, nas luzes do sentimento leve das coisas. Ontem, amanhã, cada dia...