Um ermitão, que vivia longe desse burburinho de vilas e cidades, certa feita, abordado por perigoso salteador de estradas, dele ouviu essas palavras:
- Sei que o senhor é
homem de fé e que tem merecimento perante os olhos de Deus. Por tal razão, peço
que reze para eu deixar a vida errante em que me habituei. Quando isso
conseguir, fará de mim um grande amigo. Mas, no caso de seu pedido não surtir
os efeitos que desejo, virei aqui para tirar a sua vida. Fique ciente disso.
Depois, o bandido
seguiu na mesma vereda em que se perdia, sumindo por longo tempo.
Transcorridos meses,
voltou ao reduto daquele religioso, à busca de conselhos, o que ouvia com
atenção. A visita terminava, quando se lembrou do que antes dissera:
- Continuo esperando
pelas suas orações para que escape da vida criminosa e dos desmandos que tenho
praticado; senão, o senhor é que pagará quando eu aqui vier, na próxima
oportunidade. Destruirei tudo que achar e, de quebra, lhe matarei.
Muitos dias passados, e
outro dia o marginal reapareceu no refúgio do ermitão. Trazia muito aflorados
seus perversos instintos e chegou no propósito de executar a sentença contra
aquele que lhe recebia com bons modos.
À presença do
importuno, o santo percebeu a gravidade dos acontecimentos. O salteador,
embriagado, manifestava soberba agressividade, destruindo o que via ao seu
alcance.
- Quero cobrar nosso
compromisso – garantiu. – Nada melhorou para mim nesse meio tempo, desde que
lhe avistei na derradeira vez. Coisa nenhuma diferente com suas rezas, e chego
disposto a receber a conta do desinteresse para me tirar dessa vida perversa.
Falou e avançou contra
o ermitão em gestos de intensa brutalidade, roubando quaisquer chances de fuga.
Em vista da iminência de responder pela maldade do facínora, o religioso argumentou: - Antes me permita que eu proponha um acordo -- , e foi dizendo: - Próximo daqui, cavei minha sepultura. Caso consigamos juntos remover a pedra que deixei fechando a sua entrada, pode me atirar lá dentro e, assim, ficará tudo resolvido. Porém, se não conseguirmos, em definitivo me deixará livre de toda perseguição.
O agressor pensou
qualquer coisa e aceitou a proposta. Daí, ambos se dirigiram ao local
estabelecido, iniciando o esforço de retirar a pedra. Enquanto o salteador
buscava com todo empenho deslocá-la, a todo custo o ermitão resistia buscando
evitar a remoção. Os dois se demoram algum tempo na peleja, até o marginal
perceber a atitude contrária do parceiro e dizer:
- Como posso afastar
essa pedra enorme, se o senhor aplica suas forças para impedir que eu alcance o
objetivo? – indagou revoltado.
- Bom, eis o que venho
fazendo, desde que lhe conheci –, retrucou o ermitão. – Enquanto rogo a Deus
por sua transformação, o senhor em nada contribui, mantendo-se na perdição,
esquecido de exercitar a virtude. Para se modificar os equívocos, torna-se
necessário mostrar serviço, produzir frutos. Há que se agir em sentido adverso
às tendências inferiores, contrapondo, aos atos negativos, resultados
positivos.
Naquela hora, o saltador viu-se tocado pelas orientações do amigo e tratou de enxergar a realidade, transformando-se, desde então, numa pessoa honesta e ordeira.
(Original de Gonçalo Trancoso).
(Ilustração: Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve).
Nenhum comentário:
Postar um comentário