quarta-feira, 30 de julho de 2014

Um clássico dos nossos dias

Aprendi do tempo que nunca se perca a chance de ser sincero, sobretudo quando isto vier do senso da justiça e lhe permita a satisfação de cumprir com o dever. Por tal motivo, quero falar um pouco desse clássico dos nossos dias, Dimas Macedo, nascido em Lavras da Mangabeira, jurista, poeta, historiador e ensaísta das letras cearenses. Ao modo desses costumes imediatos a que nos sujeitamos, na velocidade contemporânea, resenharei nalgumas poucas palavras o perfil de pessoa impar, devoto das artes e letras, respeitado nos rincões acadêmicos das nações do mundo ocidental.

Vida intensa, magnânimo naquilo que exerce na vida pública, se destaca no âmbito profissional das hostes jurídicas do Ceará, além de produzir poemas inspirados e definitivos, de subscrever vasta obra crítica, destaque no afã de testemunhar a escritura nacional e internacional com maestria dos clássicos.

Dimas conta na sua bagagem com os livros de poemas: A Distância de Todas as Coisas, Lavoura Úmida, Estrela de Pedra, Liturgia do Caos, Vozes do Silêncio, Sintaxe do Desejo, O Rumor e a Concha e Guadalupe. E livros de crítica literária ou ensaios: Leitura e Conjuntura, A Metáfora do Sol, Ossos do Ofício, Crítica Imperfeita, Crítica Dispersa, Ensaios e Perfis, A Letra e o Discurso, Crítica e Literatura, A Brisa do Salgado e.

 Afonso Banhos: Ensaios de Filosofia

Sua participação em publicações inúmeras, associações, movimentos culturais, missões e conferências pelo mundo; poemas e textos traduzidos em vários idiomas, com divulgação em órgãos de conceito nos tantos países que frequenta com naturalidade; exercício da cátedra nos campos da Literatura, do Direito e da Filosofia; fazem desse autor personalidade exponencial da cultura brasileira, gigante da sapiência de nossa gente durante história de êxito por muitos bem respeitada e aceita.


Nisso, me valho dos ditames da consciência da verdade quando ora dedico estas palavras no intuito de enfatizar a inestimável presença do professor Dimas Macedo, culto defensor da melhor produção dos pensadores desta época, prazer  de quem aprecia buscar a calma do dever cumprido qual razão de apaziguar o espírito de meu próprio tempo.

Tributo a uma liderança

Conheci Benvindo da Costa Melo no início dos anos 80. Ele viera a Crato representando a Comunhão Espírita Cearense no I Encontro dos Espíritas Caririenses. Desenvolveu trabalho digno de nota, prenúncio do crescimento regional que hoje representam os centros espíritas em atividade no Cariri.

Daí se formou amizade duradoura, consolidada muitas vezes nas chances de um relacionamento promissor. Desde cedo percebi o valor que possuía essa figura humana. Baiano de Guanambi, Estado da Bahia, jovem ainda moraria no Ceará, que amou como seu natural, aqui pontificando uma obra de vasta solidez. 

Realizou o trabalho de instalação definitiva do Espiritismo, por meio de atitudes tais como a fundação do Clube do Livro Espírita de Fortaleza – CLEF; a manutenção, por várias décadas, da Comunhão Espírita Cearense, ao lado de outros e laboriosos companheiros; a criação da Federação Espírita do Estado do Ceará; a edição do jornal Fortaleza Espírita, depois transformado em Ceará Espírita; a fundação das livrarias espíritas Roteiro e Sinal Verde; e a divulgação, através da palavra e da mediunidade de cura e do aconselhamento, nos centros da Capital e dos municípios cearenses. 

Homem dotado de inteligência brilhante e espírito simples, Irmão Benvindo, deferência carinhosa que lhe damos, possuía o carisma próprio do líder mais sapiente. Orador objetivo, fluente, jamais mediu esforços para atender aos convites para visitas e palestras, inclusive noutros estados distantes. Autor de muitos artigos doutrinários, escrevia em estilo elegante, comunicativo, acessível a todos. Essas qualidades caracterizam a força de sua personalidade; no entanto, detalhe precioso resta acrescentar, o seu talento de conselheiro, bom pai de família e esposo, que exercitou de modo persistente na vida, com ânimo e cultura.

Vejo-me, portanto, no dever de trazer estas palavras sobre Benvindo Melo, num reconhecimento público do trabalho que desenvolveu, dando de si, sem pensar em si, o que bem pode reafirmado através de muitos testemunhos. Entusiasta, persistente, buscou se pautar, com alegria e boa disposição, os compromissos que desenvolveu com maestria. 

Além da esfinge

Fora aquela decerto a terceira vez que lia o mito de Édipo. Persistia nos meus pensamentos o mesmo travo das coisas inacabadas continuarem rondando os dias, horas a fio, nalgumas perguntas teimosas. Que decifrar, ou devorar maroto, interesseiro, totalitário, da esfinge colossal, metade gente, metade fera.

Volta e meia, nas margens de qualquer estrada, nem que fosse dessas variantes sertanejas de cancelas e cerca de faxina, postada na pose clássica do quase bote iminente, lá surgia nos olhos do pensamento a milenar mulher, misto de suçuarana indomável, a lançar a interrogação astuciosa:

- Decifra-me ou te devoro, seu animal inferior!

Não que inexistisse coerência no drama grego do monstro de estrada, não. Longe de eu questionar a esse ponto. Também pudera, moço, querer tanto e tão distante. Pensava no espaço aceso da consciência o que seria, na verdade, a resposta de Édipo, que, no meu entender, seria insuficiente para cumprir em cheio a exigência do terror de Tebas, que, nem por isso, ao receber a resposta, satisfeita no desencanto, jogou-se no abismo, libertando a todos do medo que causara longo tempo.

Explico melhor, pois diz a lenda que Édipo decifrou como sendo o ser humano o tal bicho do enigma, de qual o animal que de manhã anda com quatro patas, à tarde, com duas, e à noite, com três. Daí nascendo um enigma ainda maior, o de que seria o homem. Só ser é pouco. Quem é o homem, enfim, essa carcaça elaborada em queda livre no abismo do infinito?

E a esfinge correu para a morte, ela própria sendo morte. Com isso libertava os tebanos para seguirem vivos, expostos à própria sorte, esfinges vivas no trilho da eternidade. Enigma dos enigmas, de longe instransponível, raça de homens no caminho da Tebas celeste.

É isto, bem isto, a persistir na interrogação do enigma que considero mais definitivo e cruel, aos tantos aventureiros da jornada do que apenas aquele das quebradas do oriente grego.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Os três cavalos

Num apólogo exemplar, o escritor cearense Gustavo Barroso conta que viajavam por estrada desconhecida três animais bravios, um cavalo velho e dois potros fogosos. Andaram que andaram até chegar numa bifurcação de caminho onde ninguém identificou o destino a continuar.

Sem que bem soubessem qual alternativa escolher com segurança, ali iniciaram discussão demorada em torno da via correta de levar adiante o roteiro da jornada. 

Cada potro escolhia convicta opção de um dos lados, enquanto o cavalo velho, experiente, passado na casca do alho, reconhecia também não ter consigo a certeza de coisa nenhuma, naquele e em tantos outros assuntos. Aprofundava a visão no longo do horizonte e imaginava melhor jeito de aconselhar os jovens companheiros da viagem. 

Pensou que pensou e se achou disposto a não tomar partido. Permaneceria naquele lugar, na sombra de árvore próxima, enquanto os oponentes,  provariam suas teses na prática, e aguardaria o retorno do que tomasse o lado que fosse errado de continuar a viagem.

Assim aconteceu. Depois de horas, voltava o potro que falhara, todo latanhado de espinhos, suado, sujo de barro, ofegante.

- Ele estava certo, - falou humilde ao se aproximar. - Sigamos, pois, a outra perna de estrada que é o lado correto.

O cavalo velho, nessa hora convidou o amigo a que descansasse, e daí prosseguiriam a caminhada, sentenciando:

- Os que erram ensinam duas vezes. Uma, quando escolhem e agem sem comprovação. Outra, ao responder pelas consequências de recomeçar a tarefa em fracassam. Mostram como não fazer. Já quem acerta jamais passará no mesmo lugar de onde veio, porque seguiu à certeza do objetivo que escolheu. 

domingo, 27 de julho de 2014

Domínio de si mesmo

Certa feita, indagado o que quis significar com a cena derradeira de seu filme Ran,  de dois clãs se defrontando em cruenta batalha campal numa bela colina de verde intenso, e o plano vai afastando a ação para distante, lá no alto, até o silêncio absoluto, o diretor japonês Akira Kurosawa respondeu que assim imaginava representar a visão de Deus em relação a mero acaso do Infinito das eras que quase nada representaria quanto aos valores eternos.


De comum, humanos se auto-valorizam a níveis extremos, esquecidos completamente do pouco que importam no Tudo universal. Plantam ilusões nos canteiros de manias e vícios, viajam de peito aberto nas aventuras que praticam, machucam as flores dos caminhos e destroem a natureza mãe quais touros enfezados em lojas de porcelana, feras da fantasia embriagadoras do egoísmo, abismados nas aparentes felicidades em noites de pura agonia.

Quiséssemos aceita de bom grado as transações equivocadas da espécie homo sapiens nos cotidianos da propalada civilização, e ordenaríamos quebra-cabeças do pouco ou nenhum juízo que maquina a raça de mamíferos que estabeleceu o comando da irrealidade.

Isto enquanto lustram o palco das mágoas que plantam no solo do porvir, vândalos do destino ingrato de pobres mortais isolados nas periferias insustentáveis, criadas a título de encher os dias que passam céleres rumo ao desconhecido. Vadeiam nos lugares santos da existência quais personagens inconsequentes de história ingênua.

Porém há meios de reverter os quadros desse filme estéril, conquanto ninguém jamais nem arranha os desígnios da Criação. No máximo, exigir de si próprio melhor desempenho nas próximas vindas a este chão. A semente da coerência e do sonho perfeito habitará os corações amantes da ordem e devotos da obediência dos valores plenos que também integram as almas teimosas e apressadas. A luz da Consciência, eis o foco da transformação por meio do domínio de si que precisa de sabedoria bem mais inteligente a ser desvendada no íntimo do Ser.    

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sombras sobre Gaza

Diante das ameaças dos palestinos às suas populações fronteiriças na Faixa de Gaza, onde habitam refugiados de sucessivas guerras, Israel promove ataque por terra que destroem cidades e causam mortes de civis, com número expressivo de crianças sacrificadas pela destruição em andamento. Este quadro, indicado nas recentes notícias daquelas bandas, por sua vez, ocasionou reunião de emergência do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

Foram as insistentes movimentações dos palestinos, que não se conformam com as condições de vida que lhes sobraram, que geraram a formação de milícias armadas em ações permanentes contra os judeus. Há, com isso, foco de tensão sujeito a explodir a qualquer hora na área conflitada.

Enquanto isto, o resto do mundo observa impotente a relação de luta dos dois povos, e armas seguem sendo produzidas nos diversos parques industriais dos países, instrumentos de negócios e conquistas, numa flagrante contradição aos valores do progresso humano, qual existissem dos universos distintos, o do crescimento das nações ricas e o da miséria dos pobres e deserdados. Quanta enganação que alimenta essa prática diplomática na civilização contemporânea, nuvem sombria de rancores e dúvidas a ferir toda paz dos povos.

Bem ao gosto da espécie dos homens, tais contradições seguem o passo dos caçadores de prazeres e ilusões. Mergulho até de pequena profundidade no sentimento ao íntimo dessa gente, e se verá o quanto de embriaguez inutiliza a cultura reunida de tanto tempo até hoje. Nos praticados dos dias enfumaçados pelo ódio, ninguém dorme de consciência limpa perante ignomínias que ceifam as vidas, ainda que longe de casa, lá do outro lado da Terra. O mínimo de autocrítica indicará ausência de atitude dos que acham só ser com os outros e não consigo a destruição dos iguais a nós que padecem a ira incontida de poderosos nas horas angustiosas de furor, caprichos de poder e domínio.

Então, a dor dos demais, ainda que longe daqui, impõe deixar a barba de molho, conquanto a existência, neste chão de vala comum, faz de todos uma única e indivisível família.   

Madeireiros versus Marina Silva

Quem descrer dos temas apocalípticos não perde por esperar, porquanto a fome da madeira ronda os mercados mundiais com um apetite jamais imaginado, sobretudo nos países ditos ricos, os que têm a goela dilatada pela ganância imperialista e dormem debaixo dos escombros do que eles mesmos destruiriam; acumularam capitais dos botins das vitórias nos séculos sem fim da vileza. 

Falava isto quando saía Marina Silva do governo Luiz Inácio da Silva, logo eu que achava a máquina nacional conivente e as políticas governamentais pálidas para conter a destruição do pouco que resta das florestas, considerando a realidade do que, há poucos anos, presenciei das agressões no serrado maranhense, no Tocantins e no Pará, diante da febre da soja e do nelore. 

Sempre reclamei de que uma administração progressista deveria um tanto na contenção dos desmandos ecológicos, nesta era de pouco respeito ao assunto, quando inúmeros aventureiros se lançam de bandeiras em punho, nos bares e nas praças, a pedir justiça verde, inconformados pelo pouco ou nenhum resultado das campanhas editoriais encetadas nos gabinetes de Brasília e nos quadros das televisões, nos programas matinais dos fins de semana. Esse alarido postiço nos murais das escolas precisa de autenticidade, revirar de mesas nos salões das festas. Menos teoria e melhores práticas. 

E a Ministra. que vencera algumas batalhas, reduzira em alguns dez por cento a eliminação da natureza, a troco de seis anos de aborrecimentos e perseguição, sinais de pouca preocupação objetiva daquilo que se pretende como um todo generalizado. Uma voz perdida na multidão (?) dos interesses economicistas dos planos nacionais e das expectativas de vencer as demandas. Porém os empresários da madeira não dormem. Os tratores não silenciam. Os rebanhos comem a soja para alimentar a os ocidentais, herméticos e silenciosos em seus apartamentos de luxo e sua dureza de coração. 

O palco perdeu alguém que dispunha da coragem de segurar a barra, disto sei. Do tipo de que sei quão mudada se reverterá a superfície do Planeta, no Brasil, após a eliminação das últimas espécies de árvores no intestino daqueles que adoram o deus da ilusão e agridem a natureza em face do sentimento esquisito de impotência por conta da ignorância da coletividade comum. 

A geração de hoje haverá de plantar os pomares de dois séculos adiante, caso pretenda preservar a existência da vida na Terra, quero assim concluir. Mãos à obra, pois! Hora boa de, ao menos, falar, quando larga o trem um dos seus fieis passageiros, que lutou a fim de contar os desmandos da farra madeireira que ronda o resto de vegetação nas periferias adormecidas.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

O poder da Fé

Numa cidadezinha do interior da Índia, viviam senhora viúva e um filho, pessoas muito religiosas que se dedicavam de corpo e alma à prática do budismo, crença asiática fundada por Gautama Sidarta. Ambos alimentavam o sonho de visitar a cidade do Nepal, onde nascera o grande mestre. Durante anos seguidos juntaram economias visando esse propósito. 

No que pesasse o sacrifício, tão só o filho reuniu condições físicas de fazer a longa peregrinação. Arrumados os preparativos, chegou o desejado momento.

- Meu filho, ao voltar de tua experiência, traga para mim uma relíquia da terra em que veio ao mundo o grande príncipe – pediu a senhora.

Na viagem, o rapaz percorreu as diversas estradas que levavam a Kapilavastu, no sentido de conhecer as belíssimas edificações dedicadas ao Senhor Buda em seu torrão de origem. Admirou-se com a beleza das cerimônias religiosas, rituais cheios de luz e harmonia inigualáveis. Permaneceu ali o tempo suficiente de realizar suas oferendas e orações. 


Ao retornar para casa, a mãe quis saber o que lhe trouxera do lugar sagrado: - Nada, minha mãe. Quando me envolvi nas festas de adoração, me enlevei, esqueci de tudo, sem trazer o que a senhora me pediu.

A mulher desculpou o gesto negligente e tratou de reunir outros recursos para que o filho, na primeira oportunidade, fizesse nova expedição ao país distante, o que demorou pouco e também aconteceu.

Nessa época, um tanto mais amadurecido, o moço recebeu a mesma incumbência de, ao retornar da pátria do Buda, trazer a ansiada relíquia, em atenção à velha mãe.

No entanto, fica difícil de explicar os motivos, de novo regressou não correspondeu ao pedido especial de sua genitora. No auge da bondade, outra vez a senhora relevou o descaso do filho. 

Algum tempo adiante, nova chance se apresentava a que ele seguisse rumo ao Nepal. A mãe, paciente, com zelo carinhoso, recomendou o presente, igual fizera das vezes anteriores:

- Que lembre-se de mim e traga o que sempre te pedi, qualquer relíquia me servirá, pois. 

Logo ao chegar na cidade, o homem se viu cercado por bando faminto de ferozes cães, contra os quais mediu forças num duelo encarniçado, ferindo de morte uma das feras. Em seguida, abriu a boca desse animal e retirou-lhe uma das presas, trazendo-a de presente para sua mãe. Eis aqui, minha mãe, a lembrança que pediste, um dente que obtive de sacerdote do templo, na pátria do Buda venerável.

A senhora sentiu satisfação profunda com a atitude do filho. Adquiriu um santuário e nele instalou a relíquia, que desde esse dia tornou-se o principal objeto das suas habituais reverências.

Decorridos alguns meses, espalhou-se no meio do povo a notícia de que o dente brilhava como sendo pedra preciosa. Por essa razão, multidões afluíram de muitos lugares, na intenção de contemplar o fenômeno maravilhoso. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A onça e a raposa

Naquele tempo quando os bichos falavam com mais facilidade entre si, apareceu vontade esquisita de a onça querer, no todo custo, experimentar o sabor de carne de raposa. Mas já se sabe o quanto a raposa significa astúcia e capacidade para fugir dos adversários, prática hoje mais praticada nos meios políticos dos homens do que mesmo entre os outros animais. 

Ainda que fosse tão difícil, porquanto a onça estudava um marketing que fosse de conquistar as graças da raposa e trazê-la aos seus dentes, a técnica adotada: Se fez de morta e tal dia apareceu estirada no escuro da floresta completamente imobilizada, respiração quase inexistente, só esperando a visita da cobiçada presa.

Logo a notícia ganhou corpo e cresceu de boca em boca, reunindo todos a respirar de alívio e cercar a fera imóvel, na intenção de prestar as derradeiras homenagens.

Enquanto isso, ladina, a raposa de longe, por trás da folhagem, prosseguiu desconfiada. Entra um, saí outro dos bichos, a desfilar diante do magnífico animal imobilizado. Então, a raposa perguntou: 

- Quantas vezes ela arrotou, minha gente? Pois quando alguém morre tem de arrotar. Aconteceu desse jeito com meu primo Guaxinim, e ele arrotou ao menos três vezes, o que sempre ocorrer com os que deixam este mundo. 

- E Dona Onça arrotou quantas vezes, pessoal? – Na hora, um fio gelado percorreu toda a cena. A bicharada parou apreensiva com os gritos da raposa escondida num tronco de visgueiro.

A onça, por sua vez, avaliava, também, as palavras da raposa. Pensou qualquer solução ao caso e disparou arroto bem forte, seguido este de mais dois outros.

Sem contar conversa, quem correu primeiro foi a raposa, de pronto acompanhada pelo tropel dos demais habitantes do vergel, fuga em massa que depois de tudo até agora repercute.  

terça-feira, 22 de julho de 2014

Nostalgias do poder

Assisti, certa vez, a entrevista feita por Flávio Cavalcanti com uma senhora que fora responsável pela cozinha do Palácio da Alvorada ao tempo do presidente João Goulart, onde o jornalista solicitou que narrasse alguma lembrança que lhe marcara o período, e que merecesse contar. Sem maiores esforços, a entrevistada reviveu ocasião em que perguntara ao Presidente se era bom ser Presidente do Brasil. Jango então respondeu que sim, nalguns momentos, sim; mas que também havia aspectos ruins naquela função, acrescentando: - É que nem sempre se sabe, entre as pessoas que nos rodeiam, quem é inimigo, quem é amigo. E temos que seguir de qualquer jeito a nos relacionar com todos e em todas as circunstâncias.

Assim funciona o famigerado poder humano. Pessoas a desempenhar papéis necessários de comandar os grupamentos, quais partes dos sistemas inevitáveis, o que exige continuidade, porém há que topar o limite das paixões das criaturas, e, não raras vezes, utilizam as posições que desempenham a interesse particular. Lutam, por isso, com as fraquezas, próprias e de terceiros. Cruzam a perecividade dos acontecimentos, quando nada é definitivo, sujeitos às intempéries da fama e do destaque, arrastados, tantas horas, pelos cordões dos interesseiros e sagazes da corte dos bajuladores, amantes da lisonja. Desde que o mundo existe, acontecem tais dramas e comédias.

O risco representa, no entanto, a ilusão da permanência impossível ente a sombra fugidia e a debilidade da raça, o que só entulha de fascínio de pobres mortais entregues às orgias palacianas.

Esse lado estreito da personalidade exige atenção, antes, durante e depois dos turnos eleitorais. Ninguém é eterno. A forma ideal de encarar a tentação do poder significaria agir com desprendimento, conservando o lado forte das grandezas do conhecimento. Erguer olhos a dimensões maiores de sentidos perenes. No que ensina de Jesus de Nazaré: De que vale ao homem ganhar este mundo e perder a Eternidade.



Ainda mais que vender a consciência representa cair de bruços sobre os males dessa síndrome que ronda os poderosos, ao modo clássico da espada de Dâmocles, dos gregos, a balançar ameaçadora, prendida só por um fio, no alto da cabeça dos reis.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Ouvi de Lysâneas

No ano de 1975, em Salvador, ainda no regime de exceção, assisti inflamada palestra do então deputado federal Lysâneas Maciel, numa cruzada que empreendeu por vários estados para denunciar o clima de repressão que constrangia o povo brasileiro. Sabia-se mesmo sujeito à cassação de que seria vítima logo no ano seguinte, atingindo também outro corajoso parlamentar, o cearense Alencar Furtado.

De verbo fluente, destemido, sensibilizou com profundidade todos os presentes no auditório superlotado, a interpretar de forma contundente o momento de transição que enfrentávamos sob o clima rígido da força totalitária no comando das instituições políticas nacionais.  

Dentre os recursos adotados na ocasião, bem aos moldes da melhor oratória evangélica, pastor que era, Lysâneas narrou episódio verificado com um pastor protestante, na Alemanha durante o regime nazista.

Zelava reverente pela sua comunidade religiosa, quando ocorreram as primeiras detenções do período negro que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, a prenderem primeiro os líderes comunistas. Ele pensou consigo: - Não sou comunista, portanto nada tenho com isso. E omitiu-se de reagir em face da violência cruel encetada contra seres humanos.

Os senhores da ditadura de Hitler seguiram na escalada dolorosa de terror, vindo deter também os socialistas, motivando no religioso idêntico comportamento de descompromisso. Por não ser socialista, indiferente permaneceu, aceitando as manobras policiais da Gestapo.

Depois, seriam levados os homossexuais, as prostitutas, os ciganos e outras minorias perseguidas. O raciocínio se repetia, de ficar quieto diante de tudo o que observava, sem, no mínimo, falar ou demonstrar qualquer atitude contrária, perante as pessoas de sua comunidade.

Mais adiante, também prenderiam os judeus, os católicos, enquanto nada alterava das relações com as forças do poder, pois achava fora do enquadramento nos grupos perseguidos. Nem de longe avaliava possuir qualquer responsabilidade pelas vítimas das arbitrariedades. 

Até que, dias depois, bateram na porta da sua igreja para levá-lo preso, e nessa hora ninguém havia que mobilizasse forças em seu auxílio e levantasse a voz pela sua liberdade, pelos seus direitos, sua cidadania democrática.

Eis, assim, exemplo de ocasiões quando os nossos rostos vêm à mostra, por conta dessa atitude sincera e verdadeira de Dom Edmilson Cruz, oportuna e atualizada, de um valor inestimável, para que não nos acomodemos aos vícios da política desvirtuada, como não sendo conosco a crua responsabilidade que a todos compete todo tempo. Admiro, pois, a coerência de pessoas deste tipo.

domingo, 20 de julho de 2014

A botija de Fideralina

Quem lá viveu ou conheceu de perto o sítio Tatu, no município de Lavras da Mangabeira, sertão cearense, pode falar a propósito de dona Fideralina e de uma botija que teria deixado enterrada nas cercanias da casa grande da sua propriedade. Em face disso, muitos consideram mal-assombrada a fazenda, sede secular do clã dos Augustos. Há histórias de aparições e outros fenômenos instigantes, qual se espectros desejassem comunicar algo desde o mundo invisível, a querer informar onde estivessem depositados  haveres em ouro da velha senhora. 

As informações reservadas que a família detém dão conta de que apenas três pessoas testemunharam a hora de enterrar a fortuna. O vaqueiro Lourenço, a ex-escrava Tomázia e a própria Fideralina.

Segundo reza a tradição oral, as duas mulheres que escolheram o local em que, elas mesmas, cavaram o buraco, dentro, ou nas proximidades, da casa. E numa noite, convidaram o vaqueiro; vendaram-lhe os olhos e cuidaram de girá-lo muitas vezes, enquanto repetiam as palavras: Faz roda, Lourenço. Faz roda, Lourenço. Faz roda, Lourenço.

Ao imaginá-lo tonto, lhe puseram na cabeça pesado tacho feito de cobre, desses de fazer doce e queijo no sertão, recheando-o de pratarias e libras esterlinas. Puxaram o homem pelo braço até o lugar onde arriaram a carga, depositando-a no solo escavado; em seguida tudo cobrindo de terra.

Nessa noite, se conta, caiu chuva forte, impedindo quaisquer possíveis identificações posteriores por parte das pessoas, inclusive do próprio vaqueiro, o qual, após o desaparecimento das duas outras personagens (o que não demorou muito a ocorrer) pôs-se a comentar o assunto com moradores do sítio. Dizia que, naquela noite, a caminho do ponto em que poriam o tacho, e nesse trajeto, ouvira batida de duas cancelas que cruzavam, sem precisar, no entanto, a situação em que haviam largado o tesouro.

No ano de 1919, Fideralina sucumbiu à febre denominada baliarina, pandemia que assolou o mundo depois da Primeira Grande Guerra, a tantos vitimando nos sete continentes. Tomázia seguiu logo depois, deixando viúvo seu Antônio Pretinho, que ainda viveria tempo mais, responsável por filhos, netos e bisnetos de numerosa prole, fiel contador dessas histórias.  

Passados alguns anos, o vaqueiro alucinou de todo, se afastando por completo do convívio social. Nos seus delírios, repetia vezes sem conta as palavras que escutara na noite em que transportou os haveres da matriarca:

- Faz roda, Lourenço. Faz roda, Lourenço. Faz roda, Lourenço - ocorrência testemunhada pelas pessoas que, nessa época, o conheceram. 



Muitas tentativas se promoveram na intenção de achar esse rico  depósito, contudo até hoje não existe notícia de alguém dele lançar mão, persistindo intacta a lenda de quase um século.    

quinta-feira, 17 de julho de 2014

O filtro da amizade

O que distingue umas das outras pessoas, a sinceridade com que vivem e se relacionam. A leveza no trato dos demais constrói no tempo catedrais de confiança que abrigam as dezenas de amigos relacionados ao sabor dos dias, estratégia inteligente de viver. Viajar entre os acontecimentos trabalhando formas de convivência agradável diante das oportunidades quais garimpeiros do ouro da solidariedade e dos bons sentimentos. 


Um (a) amigo (a) representa rara conquista de tamanha responsabilidade que durante toda a existência, por mais se deseje, nunca ultrapassam de quantidade limitada as legiões de amigos que conquistamos, porquanto esse fenômeno valioso apenas ocorre nas horas de extrema afinidade e respeito, momentos de profundo amadurecimento e ocasiões preciosas.

Nisso, na obtenção da amizade, o sentimento exige condições jamais observadas noutras práticas sociais. Pede simpatia, carinho, atenção, afinidades, identificações, provas, plenitude, grandezas próximas da perfeição da natureza humana. 

Amigos, ainda que distantes, permanecem guardados em si décadas e décadas adiante, lá depois reencontrados, o que em nada muda o sabor da boa presença, espécie de eternidade-hoje, testemunho da evolução possível  de quem preservar a amizade qual fator definitivo, divino e verdadeiro.

Gosto de afirmar aos meus filhos que os dedos de uma mão são muitos na contar os amigos verdadeiros de uma vida inteira. Alguns de nós, ao descobrir o valor da amizade, resolvem dedicar todo seu tempo a fazer novas amizades qual razão de continuarem vivos; são os santos, criaturas especiais votadas, em tudo por tudo, ao exercício pleno de fazer o bem e amar as criaturas. Esse altruísmo significa o sentido que lhes justifica a vocação do coração, motivo de prolongar de bênçãos a jornada aqui da Terra, o que atenderá aos impulsos da Consciência, equilibrando na paz das ações e a aridez dos percalços característicos de onde ainda habitamos.

De tanto sonhar com a exatidão de tudo, descobrimos em nós mesmos o campo fértil da amizade e resolvemos pacificar este chão através do próprio amor em relação os irmãos próximos de nós até chegar às raias do Infinito cósmico.  

quarta-feira, 16 de julho de 2014

A oração

O encontro de si consigo mesmo que enleva e conduz aos níveis da ciência interior no diálogo de dominar a força viva do pensamento e conduzi-lo a uma só direção, e abrir as portas de conversar com Deus, a oração. Essa possibilidade divina dos filhos nas horas difíceis. Luz na alma que clareia as sombras, na esperança da paz. O amor feito palavras, que o silêncio escuta dentro de nós na forma de sentimentos. A fala conosco próprios que fortifica a coragem de viver a plenitude.

Essa calma que existe ao dispor de toda gente, a oração no juntar os cacos dos impulsos, no desejo de chegar aos pés do Pai Supremo e lhe contar as nossas urgentes necessidades, demonstrar nossa submissão à Sua vontade e poder abrir as fibras íntimas do coração em expressões de verdades que habitam as lutas da sobrevivência. Aceitar que existe o caminho de chegar aos mundos ideais da felicidade, ainda quando essa calma apenas toque distante dentro dos refolhos das fagulhas acesas em nosso peito.  

Passos leves que aproximam da existência eterna e abraça de claridade os dias plenos da certeza, infinito das pequenas aspirações reunidas em bloco de sentidos a embalar de soluços a beleza do instante ora presente nos nossos dias. Contar das nossas apreensões e dúvidas, estender as mãos do espírito a valores maiores de uma consciência plena. 

Oração, que conduz ao Tudo, meio que plenifica as razões em volta da gente, ação da potência que recebemos da Criação, gosto e vontade, querer renovar as horas intensas a tocar os nossos sonhos. Orar, pedir, clamar, contar, construir as atitudes, ampliar o horizonte da felicidade em toda direção, sabor das palavras a percorrer o céu de ouro e harmonia que intensifica os carinhos do Universo até aqui a trazer irmãos e amigos a todos nós. 

Sinal do mistério de chegar à perfeição das estrelas através de nós, seres humanos, a doce e feliz oração. 

terça-feira, 15 de julho de 2014

Um Cariri de oportunidades

A força da Natureza e o desenvolvimento cultural credenciam o Cariri para o Turismo, propiciando clima agradável durante todo ano, tendo folclore variado, com ritmos, danças e folguedos próprios, além de rico artesanato em couro, barro, madeira e linhas. Sua herança histórica vem sendo registrada em publicações regionais, e sua beleza cantada em prosa e verso, nas letras de música e lendas características, evidenciando, desta forma, identidade cultural e espaço artístico digno de estudos. 

A região denominada Cariri, situada no sul do Ceará, fronteira dos estados de Pernambuco, Piauí e Paraíba, possui características diferenciadas no seu entorno geográfico por apresentar clima menos tórrido, vegetação de cerrado e vale fértil, isto em face da Chapada do Araripe, em torno da qual se estabelece.

Dentre esses, são principais as cidades de Juazeiro do Norte e Crato, a primeira pela importância comercial de ser a sede do culto popular à personalidade do sacerdote católico Cícero Romão Batista (1844-1934), para onde afluem milhares de fiéis dos outros estados nordestinos, em quatro datas comemorativas anuais, e o segundo pelo valor histórico e educacional, dos mais antigos pólos da colonização, iniciada no século XVIII, sob a égide da Coroa Portuguesa, através de expedições provenientes dos estados da Bahia, de Alagoas e Sergipe. Dada sua posição estratégica, Crato teve atuação marcante nas lutas libertárias nacionais.  No mês de julho, o município realizada uma mostra agropecuária de animais e produtos derivados que chega a reunir centenas de milhares de visitantes.

Para se ter idéia clara do que seja esta parte do Mundo, indicam-se necessários outros aspectos da Chapada do Araripe, de onde vislumbra-se belo e espaçoso vale, vertedouro dos seis rios originários de suas encostas (Batateiras, Cariús, Grangeiro, Latão, Miranda e Salamanca), que têm cheias no período chuvoso (de dezembro a maio).  No século XIX, aqui estiverem os pesquisadores europeus Agassiz e Gardner, destacando a fertilidade de suas terras e registrando a riqueza de sua fauna e flora.  As fontes de água pura que jorram em muitas localidades, calculadas em 265, bem caracterizam a riqueza hídrica regional.

A personalidade da gente caririense ganha, pois a cada dia, mais firmeza. Possui a cultura autóctone que se impõe noutros centros quais valores de rara possibilidade, tanto no País quanto no exterior.  

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Garapa

Meu pai é quem me contou que, quando era estudante em Crato, na década de 40, costumava circular pelas ruas da cidade um homem demente, dessas pessoas de juízo debilitado, fruto dos desafios da raça e dos meios adversos, um trapo de gente abandonada nos becos, conhecido pelo codinome  Garapa. Com relativa facilidade, se tornara alvo da garotada por se negar a aceitar de bom brado o apelido. 

Garapa de certo lembraria seu nome original, perdido nos saltos do tempo, nos afagos distantes desaparecidos. Mas ficara famoso, e depois furioso, sobremodo, com reações agressivas que esboçava por ouvir esse outro nome, cantado entre apupos desocupados, chistosos, buscando aperreá-lo.

Quisesse vê-lo transtornado, jogar pedra, correr ao encalço dos moleques, se armar de cacete e desfechar golpes nos que permanecessem na área de ação, coisas dos irreverentes estudantes da cidade, gritassem o célebre apelido na sua frente. 

Garapa é substantivo bem próprio da região do Cariri, a designar o sumo verde escuro da cana-de-açúcar prensada nas moendas dos engenhos, que escorre pelas bicas na direção da fornalha. Cozida nos tachos transmutará num melaço fumegante da cor dourada, em seguida despejado nas gamelas e submetido ao movimento circulante das pás dos caixeadores, açucara nas formas de madeira, para esfriar e secar, e depois deliciosos tijolos,  conhecidos com o nome de rapadura.

Pois, sim, numa dessas ocasiões públicas de execração do alienado, prática dos vadios, era Garapa de novo exposto às garras do ridículo.

Um dos provocadores, no entanto, de tão próximo, que estava do pobre homem e sem admitir perder de aborrecê-lo, exclamou:

- Mel com água! (os elementos que compõem a garapa)! Mel com água! – repetia, às ganas furiosas do doido.

Impaciente, agoniado, ouvindo, Garapa sabia do vinha o sádico grito. Humilde, limitado no raciocínio, reagia do jeito que a natureza permitia, sem, no entanto, reconhecer a derrota, se dando ao direito de responder, e detonava quase na mesma moeda de espirituosidade:

- Mistura, sacana, mistura, que tu vai ver o que acontece – favorecendo na fuga os que tanto lhe judiavam, e com isso provocando mais risos naqueles que assistiam à cena patética. – Mistura...

sexta-feira, 11 de julho de 2014

As coleções

Desde criança que houve em mim disposição para colecionar alguma coisa, talvez por influência de amigos, parentes, mas lembro dessa tendência de reunir e guardar, com especial apego, flâmulas, chaveiros, caixas de fósforo de propaganda, selos, quadros de fita de cinema, estampas do sabonete Eucalol, postais, até chegar nos livros e discos, as manias atuais e persistentes.

Imagino mesmo que por essa fase passaram muitos de minha geração; passaram ou nela permaneceram, chego a admitir.

As primeiras coleções que alimentei escondia debaixo de sete capas, na cômoda em que, também, ficavam minhas roupas. Representavam algo secreto, tesouro precioso de acesso só individual. Esperava sempre, quais acontecimentos felizes, a surpresa de novas aquisições, que, de raro em raro, apareciam através de um amigo, um primo, de perto, ou de longe.

Os quadros de fita de cinema mexeram forte com minha imaginação, pois representavam relíquias valiosas do que ocorria dentro das salas de projeção, retrato fiel de atores e cenas. Em Crato, nesse tempo (primeira metade da década dos anos 60), existiam outras pessoas que também se dedicavam a reunir os pedaços de celulose que sobravam das quebras das fitas, nos cinemas que da época (Cassino, Moderno e Educadora). Vem à memória Temóteo Bezerra e Chico do Moderno, que possuíam os melhores acervos de quadros de filmes famosos, os mais caros e procurados.

O ímpeto de colecionar
cresceu de intensidade quando descobri selos, os quadradinhos coloridos que viajam nas cartas trazendo o magnetismo de lugares distantes, mundos diferentes, misteriosos. Esse apego cresceu quando conheci os selos estrangeiros, dos quais formei coleção de quase um milhar, todos carimbados sem mancha ou defeito. Estrangeiros, porque assim acrescentavam a certeza de virem de outras terras bem longínquas, noutras línguas.

Demorava horas e horas a mergulhá-los em bacia de água limpa, em seguida repousando-os entre as páginas de dicionários para secar, quais seres vivos, num verdadeiro ritual que justificava o sonho das coleções.

Somei o gosto pelos selos ao das estampas de Eucalol, do tamanho dos sabonetes que acompanhavam as caixas, três unidades em cada uma. Minha mãe fazia feira na mercearia de seu Zé Honor, na rua Santos Dumont, e éramos atendidos por José Primo, que depois viria a ser meu colega no Banco do Brasil. Zé Primo conseguia com outros fregueses as estampas, que eu colecionava com zelo e possessividade.

Também formei um álbum de figurinhas de países, trajes típicos e bandeiras, tudo no segmento da coleção de selos, querendo aprofundar o conhecimento sobre povos.

Um dia, abusei dos selos, quando comecei a namorar, aos treze, quatorze anos. Notei que eles viraram concorrentes das horas que rarearam no meio das obrigações escolares e das namoradas, porquanto pediam atenções próprias.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Vencer a insatisfação

Esse espinho amolado que fere na sola dos pés, dói a alma e ocasiona peso de cores  fortes a luz qual sombra abafada no meio do dia; trabalhar e reverter as marcas deixadas pela insatisfação, sensação de expectativa nas notícias do momento. De comum, as horas monótonas, as ansiedades, angustiam os seres pensantes à espera desesperada de novidades que preencham o vazio do desconhecido; olhares em volta que pouco ou nada respondem a tais perguntas abissais, fomes de alegria, de carinho, atenção, paciência, educação, cultura. Vem o verde, o azul, o branco, no movimento das folhas ao vento, nos claros do nascer do sol; marrecas voando lá na represa do açude, canto distante de pássaros aflitos de natureza; e esse eco distante no mormaço das tardes, enquanto dentro da gente velhas indagações do que virá depois de tudo isso insistem sair à história dos acontecimentos. 

O desejo de ser amado e amar, a vontade de respirar sem limites, o espaço entre os olhos e as pessoas, o negror das noites de pesadelos, o trilho das ondas e algodões de nuvens que viajam, algo que remexe o peito e deixa cacos grudados nas paredes dos antes que desapareceram. Vidas soltas de personagens, nos jornais amarelados largados nas saletas poeirentas de casas abandonadas, nervos tensos de fios de estradas, preenchidos de andorinhas friorentas, e os sonhos insistentes da Eternidade, vocação de quietude e saudade fervendo o coração, furor das gerações que sumiram além dos velhos trilhos dos outroras esquecidos.

E dominar o fastio da imortalidade que invadiu entranhas e destinos na forma de bactérias impacientes. Quis explicar o travo amargo na boca, restos de poemas espalhados no horizonte, contudo a verdade dos objetos escorre e desaparece no presente ao foco das realidades e quenturas da existência, pura ausência de alguma razão e motivo das forças poderosas que transmitem claridade ao sentido único das estrelas. 

(Foto: Jackson Bola Bantim).  

O apito do engenho

Nos tempos da moagem, toda tarde, às cinco horas, se dava a descarga da caldeira do engenho, um locomove de fabricação inglesa do tipo usado pelas marias-fumaças dos trens da época. Desde a madrugada que ela fervia à base de lenha, produzindo vapor para girar as moendas e quebrar a cana. 

Nesse horário, de tarde, esfriavam a máquina e aguardavam o reinício no dia seguinte. O maquinista acionava apito agudo, aviso aos cortadores, lá no eito, da hora de suspender corte e regressar do serviço. O paiol da fornalha se ficava cheio de garapa suficiente de cozinhar até oito, nove horas da noite, limite de parar o caixeamento da rapadura, nas gamelas.

No processo de esvaziamento da caldeira, se enroscava um cano de ferro nas ferragens da locomotiva dourado com preto, e se abria torneira deixando esguichar água fervente que atravessa o beco entre o engenho e a casa grande, indo esse jato quente, em riste, a uns vinte metros.

Era hora de festa da meninada, que se punha a correr e pular sobre o esguicho a alguns palmos de altura, isso lá do meio para o fim da água, quando, então, já esfriara no contato com o ar.

Por volta de quatro anos, me reservava apenas a observar o momento dos outros, tímido e desconfiado, que fui assim nessa idade e em tempos posteriores, talvez até hoje.

Num desses fins de tarde, entre as pessoas que presenciavam a movimentação estava o meu avô Amâncio, pai do meu pai, proprietário das terras e do engenho, senhor austero, sisudo, com quem mantinha relações pouco estreitas, pelo jeito dele, sempre absoluto, a emitir ordens e determinar situações. Nas minhas lembranças, raro vê-lo na casa de meu pai, no sítio.

Sem avisar, ele me pegou pelo braço e postou uma de minhas mãos bem à frente do jato d´água aquecida, interrompendo o curso bem no princípio, me tirando a menor chance de fugir. Sustentaria durante alguns segundos o gesto, suficiente a que eu sentisse toda a intensidade escaldante, isto sem maiores explicações.

Após liberar meu pulso, ele se poria a rir em deliciosa gargalhada, coisa rara de eu ver acontecer.

Mediante a queimadura, mão em brasa, com a palma vermelha, queimada de água quente, em prantos, corri agoniado à procura de casa, não tão longe dali, onde encontraria minha mãe e outras pessoas, que trataram de usar nata de leite e amenizar os resultados da presepada de adulto.   

Não sei explicar o motivo da ação. Quero crer existir nela algum intuito, qualquer ensinamento do avô ao neto. Chamar a atenção, despertar os gestos e as circunstâncias imprevistas que a vida impõe, nem sempre agradáveis. Ao mesmo provocar mais resistência ao convívio das dores comuns neste chão. Ou mostrar o tipo de pessoa que ele era, de pedagogia rude. Desconheço a razão daquilo que experimentei cedo e que, por certo, justiça houve de acontecer, porquanto nada se dá ao sabor do mero acaso.

Mais na frente, eu e meu avô seríamos bons amigos, quando ele morava em Crato, na casa ao lado da de meu pai. Entabulávamos demoradas conversas e me contava episódios marcantes de sua história, os quais, vez por outra, escrevo, querendo preservar a memória da família e dos tempos vividos. 

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Antes que seja tarde

A importância da prevenção supera marcas dolorosas no futuro, e quem age antes reorganiza o direito de atravessar de pés enxutos o Mar Vermelho da libertação que lhe espera na outra margem. Isso, que serve a todos, significa o provérbio clássico do que quem tem olho fundo chora cedo. 

São aspectos mínimos das ações desse processo vida. Evitar grandes empréstimos que não se possam pagar; fugir dos vícios, desde comer em excesso, abusar do açúcar ou do sal; falar, falar, sem ouvir a razão dos demais; comprar o desnecessário e encher a casa de sucatas, que darão trabalho de jogar fora no momento de mudar de cidade, o olho gordo das populações abastadas; a preguiça de estudar ou trabalhar, enquanto o mundo gira no espaço e pede atitude; acomodação de baixo dos lençóis, quando, lá fora, a natureza acorda cedo e o Sol brilha em movimento constante.

Ainda que existam as necessárias diferenças entre os tipos psicológicos, pois que vivam as diferenças, no entanto o mecanismo coletivo representa somatório de todas as personalidades. Mesmo sem desiguais, os formulários da existência deverão pedir os dados dos indivíduos de modo semelhante. O itinerário valerá a todos, passaportes do futuro imenso aguardando novos rumos. Ninguém, que se preze, fugirá da sorte de começar e ter de terminar a história dentro dos padrões universais – princípio, meio e fim. O jeito de pintar a tela cabe a todo artista, no entanto os resultados da criação virão a título do que se produziu nas galerias das gerações.

Antes que seja tarde, elaboremos, planejemos, reunamos os elementos que, somados, seja a cara do produto das vidas, leves, soltos, lépidos, ativos, amáveis, carinhosos, ternos, amigos, honestos, pacientes, as várias qualidades dos que não precisarão remendar o arrependimento, a tristeza, o remorso, lá no depois das movimentações deste chão. Abrir com arte a embalagem dos dias sapientes, prudentes, porém longe de medos e covardias. Dominar o que dispõe às mãos e conduzir o sentido da vontade ao gosto do querer saboroso. 

Viver positivo a nossa escolha certa.    

(Foto: Jackson Bola Bantim).

terça-feira, 8 de julho de 2014

Quando as palavras falam mais alto

- Barrabás ou Jesus? – gritara Pôncio Pilatos. De novo, perguntou-lhes o governador: Qual dos dois quereis que eu vos solte? Responderam eles: Barrabás! Replicou-lhes Pilatos: Que farei, então, de Jesus, chamado Cristo? Seja crucificado! Responderam todos. Mateus 27.21,22

Quantas e tantas vezes assim acontece, sujeito a jogar pessoas no ostracismo da inutilidade e do arrependimento, sem jeito de voltar logo a outras oportunidades pela modificação das decisões que caberiam no momento da certeza abandonada. Normas morais, ações coerentes e verdades necessárias pedem ação, porquanto a história exige firmeza, invés de fugas e equívocos. Plantar a justiça são os meios ofertado, a céu aberto, pelas próprias palavras. 

O mundo anda cheio desses equívocos de gente jogar no lixo as chances reais da construção ideal. Todo tempo, a estrada impõe opções de alternativas. Desde cedo, da hora de acordar, ao final da vigília, fatores da escolha oferecem as saídas da mediocridade, da desonestidade, sendo a porta da liberdade, porquanto viver é decidir.

Os orientadores, professores, emissários das religiões, etc. vivem disso, das palavras, por vezes, no entanto, esquecidos das práticas equivalentes ao que afirmam. Mestres que ensinaram as leis do Bem afirmaram a necessidade do exercício fiel do que se transmite, contudo nem sempre ocorre no jeito autêntico e correto.

A indicação repassada à multidão, ao instante quando Pilatos com ela dividia o direito à sobrevivência de um entre dois, isto se repete todo tempo nas estradas da existência. Mora na intenção o direito de selecionar o que fazer do passo seguinte. Queira conhecer alguém, e se lhe dê nas mãos o poder. Dirigir representa, por isso, o gesto soberano de tomar atitudes, gerenciar o movimento dos reis, governantes, representantes da massa humana. 

Guardadas as proporções, as palavras expressam tais respostas que decidem a sequência natural da harmonia dos indivíduos e das coletividades.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Algumas palavras de conformação

Nessas horas de crise mais do que nunca há que se ter paciência e conformação. Queira... O direito de querer é mais forte e realista do que todos os pensamentos de desânimo e fraqueza. A Fé em um poder maior do que nós. È a principal vitória diante do sofrimento. Tenha força e coragem de cruzar os problemas que a vida impõe. Ninguém está sozinho nessa escola de existir.

Organize seus pensamentos e tenha força de resolver as interrogações diárias... O mais Deus toma de conta, amiga. Erguer os sentimentos por meio das orações, pela concentração do pensamento.

Sua coragem é sua com exclusividade. A verdade das situações pede decisão própria, não tristeza, muito menos depressão e desistência. A vida continuará sempre luminosa e surpreendente, cheia de mágicas e sonhos.

Veja bem, nas perdas imensas o carinho do amor envolverá de bênçãos as horas, e por isso falo com objetividade no assunto. Ninguém deve pretender que outros fiquem perto de nós apenas para nos agradar, quando as condições obrigam ir adiante, à busca de novas possibilidades ofertadas pelas naturezas e seus mistérios insondáveis nalgumas ocasiões.

Quando as pessoas que gostam da gente vão para o outro lado da vida serão amigos fiéis que adquirimos e que irão nos auxiliar. Sinto isto a respeito de meus entes queridos que seguiram à busca do futuro.

Oriente a vida que apoios virão em seu socorro nos bons momentos de renovar a vida, transes de provações.

Olhe com bons olhos tudo o que acontece, e a Paz chegará ao seu coração.

Bom, assim, essas palavras de incentivo a viver com ânimo e disposição de aceitar as vivências quais fatores de crescimento pessoal que lhe toquem o desejo de transformação interior.

Há uma banda boa em tudo. Aprenda isto. Seja inteligente consigo mesma. Jamais perca o gosto de viver com alegria.

Aprenda que dentro de si habita a felicidade verdadeira e clara, a depender do seu querer trabalhar até dominar sua vontade... e resolver ser bem feliz quando pareçam escurecer as trilhas do horizonte. Um dia, me dirá que tenho razão...

(Foto: Jackson Bola Bantim).

Rio Preto

Nordeste. Princípios do século XX.

Durante algum tempo no comando de quase uma dúzia de perversos capangas promovendo as piores estripulias no sertão paraibano, o facínora deixara crescer a cabeleira, tendo se homiziado em cabana do meio da mata em serra das proximidades de Pombal. Tipo cabo-verde, cor escura e cabelos retintos e lisos, merecera o cognome de Rio Preto, título que significava o maior flagelo da região.

Homens altivos, no entanto, mantinham suas posições de mando e não se deixavam abater pelos abusos, qual Padre Amâncio, a quem foram dirigidas afrontas indiretas até o dia em que os dois vierem de se deparar face a face numa variante isolada e o fora-da-lei tudo que fez foi descer da montaria para pedir a bênção ao respeitado sacerdote, fazendo lembrar o célebre episódio verificado entre Átila, rei dos hunos, e o papa Leão I.

Noutros casos, todavia, esse comportamento desatinava, causando pânico à sociedade rural da época. Sempre que casava alguma moça na redondeza, fosse de que família, o bandoleiro mandava dizer que iria buscá-la para passar uns dias em sua companhia. E desse modo se dava. Iria mesmo, e pronto, pois com ele ninguém dispunha de regulamento.

Foi sob nesse império de desordem que resolveu casar João Leite, destemido representante da mais tradicional família da localidade. A atuação do celerado pouco interferiu na decisão. O desaforo da promessa se verificou por conta de recado igual ao das outras ocasiões. Mandou dizer que aguardasse a visita de buscar a noiva, predestinada ao sórdido gesto. 

Houve o casamento, muita festa, muita pompa, dentro das formalidades usuais, porém sob o clima da afronta iminente. 

No dia seguinte, ainda no escuro da madrugada, se dirigiram os nubentes à casa do sogro do noivo, e nas mãos dele ficou recolhida. O preocupado nubente se despediu de todos e rumou de volta ao futuro lar.

Os planos haviam sido elaborados com todo detalhe. Reluzentes bacamartes boca-de-sino dormiam carregados até as bordas, no quarto dos fundos, junto de cangalhas e rolos de fumo curtidos de sol. O recém-casado e seu irmão selaram o plano extremo de defesa da honra familiar enquanto arriavam os cavalos que os levariam ao sítio do inimigo. Cruzaram nas pernas os instrumentos da luta e chisparam de pronto à serra afastada.

A casa ficava numa clareira. Na época invernosa, se via cercada de mata-pasto de meia altura, coisa normal em torno dos terreiros sertanejos. No oitão, a janela referente ao quarto onde pernoitava o temido personagem estava na mira, pois sabiam ser hábito do bandoleiro, que a cada manhã nela se debruçava e olhava o tempo, envolto na vasta cabeleira que lhe alcançava os ombros em cachos desgrenhados, contorno agressivo mais para fera do que para gente.

Quando abria a janela, nessas ocasiões matinais, dava um guincho estridente, feito de animal selvagem.

João Leite e o irmão, pressentindo os movimentos habituais, estavam postados justo em frente da janela, encobertos no trançado de arbustos, medida suficiente para não serem notados, quando o marginal botou de fora o corpanzil e liberou o guincho característico. Nisso, o noivo apreensivo disparou-lhe em cheio a descarga de bacamarte bem no meio do peito, toldando de fumaça a vegetação e, de vez, assustando a passarada.

Em face do impacto do tiro, como que por mero instinto, Rio Preto saltou a janela e correu mata adentro, indo arfante concluir o sofrimento lá no alto da serra, nas imediações do refúgio.

Segundo ouvi de meu pai, quem passasse naquelas paragens poderia identificar o morro onde existiu por décadas um cruzeiro para marcar o ponto em que vieram, depois, encontrar os restos do bandido feroz.

domingo, 6 de julho de 2014

A epopeia de dentro

E esse travo no coração, bolo alimentar de chumbo quente entalado à altura das costelas superiores, como é que fica? Essa fome doida de não sei o que, quando e onde, caminhar dolente de camelos metálicos nos ombros da gente, como fica, meu amigo? Aí de mim, aí de ti, aí de todos nós, nessa mesma noite escura das delícias, de tantas lanternas apagadas nos portos ausentes e barcaças e marujos bêbados. Sombras vagando no cais de nevoeiros fantasmagóricos, envoltos em bruma pegajosa, espessa, imune ao bafio glacial de harpias envilecidas sobre as pedras toscas de paredão que cresce no horizonte, ao barulho de outras aves noturnas, angustiosas.

Depois, intensas ondas teimam quebrar numa praia vazia de amores, em rodopios constantes quais vôos cegos dentro da sala antiga dos pesadelos sem lua. Ela, mimada, bonita feita flor, saia rodada, bordada de sol, cores profusas, num tudo neutro da adolescência e seus amores incertos.

Aos ouvidos dispersos, novenas cantadas de afastar espíritos tentadores, cantilenas rezadas com gosto amargo para proteger a santidade rara dos santos, raros propósitos firmes de corações fervidos na caldeira vadia das paixões sem jeito. Tabiques rompidos, defesas quebradas a ferro e sangue, na encosta escarpada dos roteiros da alma, penhas de ilhas desertas, filmes vivos do inconsciente audaz.

Quantas vezes haverá sonhos de justificar o frio corrosivo das noites solitárias e dos leitos desfeitos de amores mortos? As lutas internas, intermináveis, dentro do território do tórax dolorido, na ganância de justificar o desejo nas ânsias espasmódicas das máximas culpas.

Sem deixar viver o ritmo da festa do sol no coração, palmas calejadas do herói agarram quais dentes agressivos o mastro negro do barco e se enovela ao cântico das sereias, em romance de estrelas cadentes... Monge encapuzado, apavorado com as vestais em dança frenética, invade a cela sobressaltado às horas de sacrifício, num esforço titânico, a concorrência da busca dos céus, e quer, a todo custo, persistir na peleja do paraíso em queda livre.

Ameixas doces vagueiam no plano entre a língua os dentes, desmanchando vontades eróticas, embate ardente do amor feérico com as ilusões desfeitas. Fugir sem vislumbrar caminhos nítidos, rolar pelas encostas do mistério e deixar escorrer os dedos através do pomo profano da discórdia.

Há horas sobressalentes na parcial angústia, enquanto exóticas visitas envolvem suas tetas quais jóias de prazer e somem manhã afora, no vento, derretidas ao sabor da alva. Trocas desleais, injustas, do eterno pelo fugidio. Olhos arregalados observam a urgência das atitudes, rolando esquálidos, tapetes dourados estendidos sobre as pedras reais do Calvário. 

Nisso, farrapo de pele, cabelos, carnes salpicadas em sangue, suspende a silhueta lacrimosa da saudade, abraçado a si próprio, espectro tardio que some no longe da paisagem viva que resiste, nas dobras de tempo refeito do dia eterno.

(Foto: Jackson Bola Bantim).

sábado, 5 de julho de 2014

Gratidão filial

Exercito, hoje, o direito de observar os meus pais e o silêncio onde eles passam os seus dias, apenas quietos em um dos quartos da casa onde vivemos bons momentos de nossa história, agora vazia nos outros cômodos. Ali, acompanhados por pessoas abnegadas, ao vê-los algo mexe dentro de mim. Algo assim parecido com presença invisível de bicho desconhecido a sacolejar o espaço já movimentado do meu peito; um ente abstrato, espécie de animal apreensivo com o futuro. Logo comigo, que tantas ilusões de segurança alimentei e alimento, nas frioleiras das artificialidades e falsas expectativas. 

Olho neles e, interrogativo, me pego a analisar o que lhes reservam as esquinas implacáveis do tempo. Eles, que tanto esforço aplicaram na realização dos filhos, cinco, no total. Que tanto se alegraram com nossas alegrias passageiras, nossos sonhos de vitórias em pequeninas coisas. Vislumbram a concretização de nossos projetos, e que raro nos detivemos para receber melhor seus conselhos, classificando-os, por vezes, de preocupações fora de moda. Que comemoraram com vibração inusitada o nascimento de cada neto como sendo novos filhos. 

Quantas estradas percorreram para dizer o que disseram e que tão pouco escutamos. Eles, dotados de tamanho equilíbrio no trato dos filhos, sofreram as nossas ausências em noites sombrias de solidão, catadores que somos das baladas de risco, audazes aventureiros de perdidas empresas.

Eles, de faces luminosas nas horas animadas... Lacrimosos nas despedidas... Braços abertos na chegada, um não se conter de satisfação nos instantes animados das reuniões familiares rápidas e transitórias. Reunir todos os filhos em datas especiais e vê-los, depois, dobrar as mesmas curvas estreitas da saudade, nos vazios instransponíveis dos momentos distantes... 

Quanta sacralidade tem a beleza da família, mas quanta incompreensão dos filhos, lições vividas na própria pele na matemática que se segue nos nossos próprios filhos. 

Desse modo, vejo os meus velhos e sinto amolecer o coração. Quero, assim, trazer cá de dentro dos meus compromissos esta mínima gratidão a pessoas tão preciosas, plenitude da mais honesta dignidade do trabalho, dedicação fiel nas pautas da natureza e na harmonia do lar. 

Espécie de gelo revira meu interior. Palavras afloram no pensamento e lembram o amor que a existência impõe na amizade, no companheirismo... 

Enquanto alguns enrijecem a musculatura do pescoço com o temor travoso das emoções impacientes, outros aceitam enxergar a nobreza dos laços verdadeiros que jamais se desfarão. Daí, quis firmar, num gesto, a fidelidade pelos que me deram a mim; e concedo aos meus filhos o testemunho do que isto representa em termos de agradecimento aos responsáveis pela nossa existência neste mundo. 

Foto: Jackson Bola Bantim.

O cerco de Mossoró

Mossoró, no Rio Grande do Norte, possuía algo em torno de 20 mil habitantes quando Virgulino Ferreira da Silva resolveu impor a chantagem de 400 contos de réis, cota dez vezes superior às que cobrara noutras localidades, no sentido de evitar que invadisse a cidade. Lampião enviara bilhete ao povo do lugar requisitando a tal quantia. No entanto, logo recebeu do Prefeito, o coronel Rodolfo Fernandes, resposta de que dispunha do valor solicitado, só que este apenas seria entregue se nas mãos próprias mãos do audacioso bandoleiro nordestino.

Com isso, por volta das 16h do dia 13 de junho de 1927, ano seguinte ao da visita que fizera ao Cariri, Lampião e 53 cabras afrontariam grupamento de 150 homens entrincheirados na defesa do maior núcleo urbano dos quantos já fustigara o cangaceiro durante sua vida tormentosa.

Durante o restante daquela tarde e toda a noite, profusão de balas quebraria o silêncio das horas e a paz dos circunstantes. Aos primeiros claros da manhã seguinte, por força da batalha, resultavam, no lado invasor, baixas expressivas de combatentes: Jararaca fora ferido e aprisionado, e Colchete recebera fatal balaço no crânio, dentre outras perdas do bando cruel.

José Leite Santana, o cangaceiro Jararaca, de 22 anos, recebera no meio do tórax balaço de fuzil e era mantido cativo na cadeia de Mossoró, se tornando, por vários dias, objeto da curiosidade pública. Reagiria ao ferimento, contudo, a título de ser recambiado para a capital do Estado, sofreria execução sumária, de acordo com a narrativa do jornalista potiguar Lauro da Escóssia:

- Alta noite, da quinta para a sexta-feira, levaram Jararaca para o cemitério, onde já estava aberta sua cova.

Ao perceber a trama onde caíra, o condenado ainda gritou: - Sei que vou morrer... Vão ver como morre um cangaceiro. E o capitão Abdon Nunes, comandante da polícia de Mossoró, descreveria os instantes finais do bandoleiro: Foi-lhe dada uma coronhada e uma punhalada mortal. O bandido deu um grande urro e caiu na cova, empurrado. Os soldados cobriram-lhe o corpo com areia.



Hoje, o túmulo de Jararaca é o mais visitado do cemitério de Mossoró, se transformando em lugar de constantes peregrinações das pessoas que fazem promessas e ali depositam ex-votos por conta da devoção ao meliante.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Intercessão valiosa

Das inúmeras ocorrências verificadas no decurso da Confederação do Equador, no Ceará, idos de 1824, episódio impressionante narrou Esperidião de Queiroz Lima, no livro Tempos Heróicos, que narramos aos que ainda não leram a referida publicação.

Trata-se da execução de um dos sentenciados pelo tribunal militar conhecido por Comissão Matuta, no mês de outubro daquele ano, instalado para punir as hostes rebeldes. Julgados e condenados, cinco líderes republicanos seriam fuzilados no pátio da Cadeia Pública de Icó. Um desses, Antônio de Oliveira Pluma, autodenominado Pau Brasil, conforme sua assinatura no manifesto do movimento, insatisfeito com o resultado a que se via submetido, reagiu em altos brados, protestando misericórdia de quem ali se achava.

Recusara mesmo permanecer de pé, mas, sendo assim, forçaram-no em cordas a se sentar numa cadeira, onde, com olhos vendados, ainda pedia que o deixassem viver. 

De nada lhe valeram as rogativas, pois logo em seguida o pelotão recebeu a ordem de preparação:

- Apontar! 

E, ante os disparos iminentes, o pânico pareceu querer tomar a alma do condenado em face da morte inevitável, sob o monto de todo o idealismo que até ali dominara os atos de sua razão da existência. Outra vez, um gesto cresceu de sua voz, explodindo mais alto em reclamações de amparo, lançadas aos planos superiores:

- Valei-me, Senhor do Bonfim!

Nisto foi secundado pelo toque de comando: - Fogo!

Cessada a fumaceira, as balas achavam-se cravadas no muro onde o revolucionário permanecera incólume, sacudindo de espanto os presentes. Seguiu-se nova carga de munição. Restabeleceu-se a ordem preparatória, e se fez no ar outro grito de socorro:

- Valei-me, Senhor do Bonfim!

- Fogo! - comandou a ordem marcial.

Resultado: o alvo manteve-se intacto. Os tiros voltaram a ferir tão só e apenas o muro, para desânimo da escolta. Em meio do inesperado, tonto, pálido, o comandante reclamava prática melhor de tiro a seus homens, visando manter os praças no cumprimento do dever, tratando de retomar as determinações da próxima tentativa, que foi precedida pelo mesmo grito do condenado, tão pungente quando sincero:

- Valei-me, Senhor do Bonfim!

Os disparos se deram, de acordo com a obediência. Desta vez Pluma fora atingido por algumas balas, mas continuava vivo, segundo narra em seu livro Queiroz Lima. 

Os soldados de pronto se movimentavam para um quarto fogo. Nesse instante, a população presente, tocada de simpatia pelo confederado, se ergueu coesa e exigiu o direito do réu ser libertado, qual merecesse o valimento dos céus. Em seguida, essas pessoas levaram-no consigo, alheado e preso à cadeira do martírio, até à Igreja do Senhor do Bonfim, distante cerca de 200m do ponto onde a cena ocorrera, entre preces e benditos fervorosos.

Há registros do ano de 184l que dão conta de que o sobrevivente veio a ser titular da Promotoria Pública da comarca de Baturité, no Ceará, o que bem comprova sua resistência aos ferimentos naquele dia recebidos, na tentativa de execução de que fora objeto e sobrevivera, no município de Icó, dezessete anos depois.