sábado, 29 de dezembro de 2018

Cultura popular

Durante esse tempo de tecnologia, quando as expressões artísticas utilizam meios avançados de perpetuar manifestações dos grupamentos sociais, espécie de matéria prima da cultura, ainda existem os que resistem a todo custo tais influências. Heroicas reações ao desaparecimento das memórias originais de famílias, raças, credos, persistem os registros das culturas. Ainda que, no entanto, a fúria dos bens industriais fira por vezes a ponto de eliminar as inspirações, porém a força dessas ações persiste no transcorrer das mudanças inevitáveis daqui do Chão.

Culturas arcaicas que trouxeram ao milênio gestos derradeiros das luzes de antigamente sumiram nalgumas guerras pelos bens de raiz, à gana do petróleo, dos mercados, das águas. Países desfeitos a título de ceder recursos aos mais poderosos veem eliminados das tradições desses valores espirituais da música, das artes plásticas, monumentos, cidades históricas, literatura e sonhos, largados nas ondas do impossível de reviver e de saudades que ninguém vive.

Nisso a importância transcendente das manifestações das pessoas, nascidas do seio dos corações em festa. Verdade que as máquinas guardam e reproduzem páginas e páginas do que antes havia, contudo a fonte primeira seguirá no fruir das produções em série dos meios atuais da comunicação, isto sem a força das presenças, dos momentos, dos sentimento das priscas eras, tudo sob a velocidade dos restos artificiais que sobraram.

Admitimos, todavia, ser assim qual devesse acontecer, vez que as leis do Universo jamais cessam de determinar movimentos e acontecimentos. As lâminas dos dias prosseguem pois; os pássaros insistem continuar trilando nas matas; o Sol a nascer; a Lua nos céus; a existência das criaturas humanas, suas testemunhas, andam face a face com o instinto de sobreviver. Essa extrema disposição dos humanos reflete bem o quanto de verdade há que alimentar os tempos e veremos, um dia, a intensidade do poder absoluto da vida em forma de novas criações e alegria definitiva no rosto do povo.  

terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Linhas do tempo

Assim quais mudassem de nome e personalidade a todo novo momento, ontem teremos sido o que jamais voltaremos a ser; agora porém já fomos e o seremos novamente... Outros eus que, deste modo, vêm e vão à medida que o tempo troca suas fichas nas teclas de segundo, detrás das cortinas dos dias, e nós aqui a viver essas mudanças feitos nós mesmos no passado e desfeitos agora, contudo cheios de confiança de nunca mais ser iguais ao que ontem fomos, porquanto sabemos dessa capacidade infinita de nos desfazer pela dança incontrolável dos dias, sombras de nós próprios que algures, nalgum inevitável, Alguém ir sempre conduzir. 


São essas as tais linhas do tempo de que falam pesquisadores da personalidade. Variações intermináveis de valores, humores, sonhos, ideias, desejos, intenções, interesses e práticas, que andam à nossa frente feitos mentores desses nós, invés de nós sermos senhores delas. Tais barcos voltados a ler o passado, isto na velocidade estonteante do viver, marcamos no tempo nossas metas imaginárias, e tangemos essas criaturas do ser que somos e fomos, à busca do destino através das consciências, elas que oferecem meios parciais de acompanhar o processo, entretanto submetidos ao mar dos acontecimentos indomáveis. Às vezes, lampejos e lembranças de haver passado ali naqueles lugares e vivido aquelas situações, o que deixa entrever as possibilidades de lá um dia descobrir de vez as linhas que conduzem as cenas, ainda que de forma hoje nebulosa e, desde então, dominar o eterno e conter o fugidio. 

Quando pudermos, pois, chegar a tanto, o processo da compreensão, a lucidez que impera nos bastidores daquelas memórias, seremos parceiros do Desconhecido e senhores desses nós que hoje apenas parecemos ser e que deslizam assustados nas correntezas do Universo, sujeitos de tremores e temores, pequenos seres que, trazidos a dia sem maiores explicações, contudo dependem absolutos da própria evolução e crescimento. Nalguns menos, noutros mais claros, os instantes de percepção dormem, todavia, restritos a fatores climáticos, históricos, sociais, culturais e afins, que gradualmente, pausadamente, invadem o ser de aonde iremos sobreviver.

Viajantes do tempo, átomos da Eternidade e das luzes nas consciências, singramos a trilha dos destinos feitos ramos da árvore do firmamento, e sofremos, e sorrimos, em sonhos ou de olhos abertos, depositários dos segredos demonstrados nas estrelas e desvendados no abismo sagrado das nossas frágeis mãos.

(Ilustração: http://despertarcoletivo.com/geometria-sagrada-o-significado-da-espiral).

sábado, 22 de dezembro de 2018

Da ocidental praia lusitana

Quantos e quantos que ainda carregaram os feixes de lenha às costas e depois de tudo nem usufruem do banquete homérico do mundo, deuses batidos que foram no furor da procela. E aqui todos de novo a transportar, às estações do Infinito, essas naus dos verdes mares de acender as luzes dos corações em festa. Querer é poder; dominar, pois, as mazelas e sorrir de certeza que dias melhores sempre vêm.

Nos ossos da lua cheia há disso, de imaginar que portas abertas assim permanecem diante da vontade extrema de achar sinais que irão determinar a realização dos versículos e das orações das seitas. Marujos de séculos sem fim, tocar o barco até que parece bem simples, no correr dos anos. As considerações de ordem prática no amor de compreender os hemisférios mostra o tanto de vontade que a raça tem demonstrado no passar dos calendários. Daí o momento de que hoje parece viver só de marasmo de proporções monumentais, com a predominância dos interesses individuais sobre os da coletividade. Uma fase de excessos, ânsias maiores sobre a saciedade dos instintos, invés de buscas que sejam no âmbito espiritual.

Nisso a milenar interrogação entre a morte da matéria e os valores da beleza, o aprimoramento do ser versus a fome do prazer, dias de ira da carne sobre o espírito, numa farra descomunal dos trópicos pós a descoberta de um Novo Mundo. Isto também por dentro de nós, entes experimentais da evolução da consciência desde o comum da matéria a fim de revelar o exercício do sufoco.

Bem, tais experiências em tempo de viver passam fugazes ao circular do Sol de longas descobertas. Senhores das sombras presos ao deserto das torpezas são as quimeras dos mares. Tontos de vertigem, no entanto, seguiremos o trilho dos sonhos e mergulhamos na busca de sentido no que reservam as palavras; elas querem dizer quanto queremos ouvir e logo dever pôr em prática. Nunca nada estará perdido para sempre.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

A solidão gelada dos alpinistas

No espelho dessas encostas mais íngremes defronte dos rochedos da sorte, face a face com o abismo das nuvens, eles desperdiçam, centímetro a centímetro, carcaça e emoções, tudo no rumo de coisa alguma, quimeras e agruras. São alpinistas, salteadores do impossível, amantes do inesperado e fagulhas ao vento da sorte caprichosa. Expostos às ânsias entre a culpa e o medo, vagueiam soltos pelos silêncios, nas horas feitas nas ausências e nos sonhos.

Autores das tragédias de si mesmos, sobem trilhas rumo do sol intenso lá em cima nos céus intransponíveis. Contemplam a certeza da solidão em que mergulham sem ambição, e descem ao penhasco das consciências na busca do silêncio absoluto, porém sercientes da ilusão a que trocam sacrifícios por sustos.

Assim aqui também diante dos dias os demais mortais... Mourejam pelas estradas da vida em aleatórios movimentos de sobrevivência aos fatores da destruição, contudo de almas pendentes nos amores e nas dúvidas. Pedaços de matéria que pensam e desejam, blocos de madeira de lei da humanidade e suaves flores do jardim das existências, estamos nas mesmas subidas dessa Babel de interrogações, picos nevados de questionamentos à frente e seres das paixões desenfreadas, mãos e pés atados nas gretas do mistério; às vezes doces, às vezes amargos, no entanto em lua de mel com o inevitável.

Quantos e tantos, bem neste momento, esvaziam a carga no limiar das novas vidas e choram e riem e superam a inutilidade faceira dos segundos impacientes?!... No instinto metálico de conter esse rio de tempo, descobrem entretantos nas praias deliciosas de saber que não sabem o que pensavam saber, e aceitam continuar, presas da revelação em qualquer dia. 

Contudo, pois, a solenidade gritante deve prosseguir nos braços dos que procuram os monstros dos limites, pássaros irreverentes que só sobrevoam os astros na esperança dos outros ninhos de semelhantes aventuras. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Histórias alheias VIII

Outro dia, no endereço de web pt.chabad.org, li história digna de ser também conhecida dos leitores. Conta episódio da vida do rabi Moshê Meisels, de Vilna, que afirmou: O alef da Chassidut (No livro Tanya, obra máxima do chassidismo de Chabad, Rabi Schneur Zalman de Liadi declara: "Pela sua própria natureza, a mente governa o coração." Este axioma, conhecido como o alef da Chassidut, é a pedra fundamental da abordagem chassídica de Chabad à vida.) salvou-me da morte certa.

O rabi Moshê Meisels conhecia outros idiomas e durante as guerras napoleônicas serviria de tradutor junto do Alto Comando francês na frente russa. Ele seria encarregariam de buscar, junto aos oficiais inimigos, informações privilegiadas que pudessem beneficiar o Exército Russo.

Rabi Moshê obteve êxito na difícil empreitada, caindo nas graças dos comandantes chefes do exército de Napoleão, e estava ciente dos seus planos mais secretos. Foi ele, Rabi Moshê, que salvou o arsenal russo em Vilna da sina que se abateu sobre o arsenal em Schvintzian. Ele alertou o comandante russo encarregado, e aqueles que tentaram explodir o arsenal foram apanhados no ato.

Antes do dia previsto do ataque, o religioso compareceu aos debates dos franceses quanto ao modo como desenvolveriam a batalha nas redondezas de Vilna; quais manobras seriam encetadas; quais arranjos de campo, mobilização das tropas e transportes; examinando as vias de acesso e os meios necessários. Mapas largados ao chão, dúvidas atrozes e preocupações, sem aflorar, contudo, as urgentes decisões da peleja imediata.

Inesperao, então, quem resolveu chegar no Comando, o próprio Napoleão que apareceu à porta. A face do Imperador estava escurecida pela fúria. Irrompeu no aposento e urrou: ‘A batalha foi planejada? As ordens para guarnecer os flancos foram enviadas?’ ‘E quem é este estranho?!’ - continuou ele, apontando para mim.

De pronto veio na minha direção. ‘Você é um espião da Rússia’, afirmou, pondo a mão sobre o meu peito a fim de sentir o coração sobressaltado de quem fora flagrado num ato extremo.

De acordo com o depoimento do Rabi Moshê, exato nesse momento o alef da Chassidut (aquela afirmação mística acima) lhe ofereceria forças de reagir sem denunciar a missão que desempenhava: Minha mente comandou meu coração para que não desse sequer uma batida fora do compasso. Numa voz sem emoção, repliquei: “Os comandantes de Sua Alteza o Imperador tomaram-me como intérprete, pois conheço os idiomas cruciais para o desempenho de seus deveres...”

(Ilustração: Jean Baptiste Edouard Detaille; Sputnik).

sábado, 15 de dezembro de 2018

As fronteiras do inútil

Ao abrir a janela e ver o sol da manhã em cores e formas luminosas, e ouvir pássaros e cigarras em festa, logo vem o transcorrer dos tempos nos dias atuais de tanta ansiedade e correria, a busca de sobreviver aos fatores da história. Desde lá dos inícios que assim vem a correnteza das vidas. Sobreviver, viver além, mais dias menos dias, à cata de trabalho e acomodação, no desgaste natural de tudo quanto cabe na imaginação. 

A certeza de procurar meios positivos de observar isso e aceitar as peripécias, no entanto tratar de fazer uma avaliação nos modos de operar deste chão. A perseguição insana de juntar fortunas, só garantir o passado a qualquer custo, o que virou mania sórdida de perseguição da geração de cobaias do Destino. Perseguir os dias nos dias, arrancar da coletividade o sustento, longe dos frutos podres que deixam a estrada perdida. Lobos famintos de ideias, ética e moralidade; que viram elementos de praticas indecentes; turba de bichos racionais irracionais, que manipulam fórmulas esdrúxulas de superar a troco de propinas e uma consciência largada ao lixo, imundos restos de banquetes impuros.

Daí chegar a isso de examinar que estamos aqui cuidando; feras feridas nos próprios laços que enxameiam desassossego a título de sucesso sórdido; toupeiras num mar de lama; ardilosos vadios do egoísmo. E peças encenadas a título de ganhar os prêmios da inutilidade.

Bom, essa gincana de humanoides à toa no pretexto da ignorância, que virou a corrida de tanta coragem e tanto esforço no mercado das almas e adquirir culpa, medo, fama, que há nisso, bem claro, a ausência de sentimento e coerência de propósitos, eu sei. Mas o que fazem doutro modo os que sabem que não deve ser? Eis uma pergunta aos senhores da liberdade que exterminam e exercitam sem responsabilidade o dom da sebedoria. 

Quase ao final da cena, tangemos o rebanho quais esquecidos aos sonhos e passageiros da agonia, dos motivos e das escolhas que sujeitam levar a nada, dourados e vazios, contudo sempre na busca da Paz.

(Ilustração: Colagem de Emerson Monteiro).

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Música da visão

Escrever é bem isso, transmitir à visão o sentido da percepção que isso traz e conduzir pelos caminhos da consciência pensamentos; letras e palavras, e sentidos que talvez toquem um dia o sentimento. Tudo suspenso no ar das horas do mistério, nas palavras conduzem a imaginação através da alma. Sons que existem desde quando a luz se fez, assim são as palavras que hoje formam soltas na liberdade individual a literatura. 

Num enlace prodigioso, as visões permitem que nos encontremos conosco próprios no formato das letras e no senso imediato que elas constroem dentro da gente, porquanto quem lê a si mesmo o faz; se permite deixar que conceitos nascessem das palavras e ofereçam à consciência valores e significados; deixa que o silêncio da visão conceda ao instante o inédito da compreensão há pouco inexistente. Mundo vasto a si que preenche novos universos naquele espaço exclusivo da individualidade, e mergulha no outro, no leitor, qual quem refaz a presença dos que antes havia e deixara que a existência revertesse em códigos as cores e as formas que nunca voltariam a existir, porquanto nem os autores refarão o que viveram ao momento de escrever caso não os gravem para sempre.

Bem isso de trabalhar nas palavras os fragmentos da ilusão ou da compreensão do que habitara, dalgum modo, a consciência do escritor. Horas mágicas de arte e cultura, sentir e passar em frente, dividir os frutos de pensar e produzir com os leitores um viver partilhado, em muitos ou nenhum. Daí serem solitárias as chances de escrever, quais garrafas lançadas ao oceano das impossibilidades possíveis, mensagens isoladas que silenciaram nas letras angústias e alegrias, no sonhar no aberto das ocasiões fugazes. 

Foram e serão muitos esses tais escafandristas da alma na busca de partilhar o entendimento por meio das incompreensões humanas. Aventureiros da razão inevitável, que correm o risco de jamais descobrir as trilhas dessa floresta exótica das condições deste século sem fim.  

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Os pardais da Praça da Sé

Esse logradouro reflete bem a vida em Crato, isto a considerar as dimensões da praça, a arborização privilegiada e as tradições de que é símbolo desde seus primeiros tempos. Quando os colonizadores se resolveram pelas margens do Rio Grangeiro invés das do Riacho do Miranda, onde haviam instalado a missão original quando aqui chegavam, viram nesse novo sítio o ponto ideal para desenvolver o aldeamento e fixar as raízes europeias no Cariri. 

As extensões da Praça da Sé oferecem meios suficientes às grandes solenidades, aos eventos maiores do povo e das instituições. Em sua volta os proprietários construíram belas casas residenciais, a Casa da Câmara, a Cadeia Pública, grupo escolar e a Sé Catedral, destacando aos católicos o palco dos seus louvores por vezes entrecortados de acontecidos históricos, tais a declaração da primeira república nacional, lá nos idos de 03 de maio de 1817, cúmulos da Revolução Pernambucana de infaustas lembranças, em que sucumbiria o herói maior Tristão Araripe.

Nesse respiradouro típico da população do lugar eu estudei na década de 60, no Ginásio São Pio X, prédio que ora sedia a Irmandade de São Vicente de Paulo, lado nascente; via dali o imenso quadro da matriz ainda de chão batido, espaço ideal às partidas de futebol dos desocupados nos intervalos do almoço à sombra dos oitis em crescimento. 

Mais adiante, em face de nela passarem as estudantes do Colégio Santa Teresa ao término das aulas, no meio-dia apareciam também os alunos do Colégio Diocesano e ocupavam os bancos e as imediações, no intuito de apreciar a beleza da juventude em desfile, num instante de descontração e enlevo. 

Já na década de 70, aos finais do dia, com as árvores de copas frondosas o ano inteiro, nelas se instalavam os pardais, nuvens e nuvens deles, a chilrear em uníssono melodia ímpar e festiva, clima inigualável de propiciar os instantes fervorosos da Ave-Maria, secundados ao ritmo do metal dos sinos e dos cânticos saídos da Catedral defronte.  Cheios de emoção, presenciávamos absortos a religiosidade daquelas ocasiões, talvez enlevados no doce mistério das luzes espirituais da natureza viva. 

Histórias alheias VII

Das narrativas a propósito dalguns místicos judeus, escritas por Martin Buber no livro Histórias do Rabi, dentre outras histórias vamos encontrar um episódio sob o título Saber quando o rabi Baal Schem Tov dissera:

- Quando atinjo o mais alto degrau do saber, sei que nem uma letra dos ensinamentos está em mim, e que ainda não dei nem um só passo no serviço de Deus.

Essas palavras de Baal Schem o rabi Mosché de Kobrin as transmitia a um outro rabi, e este lhe indagou:

- Mas está no Midrasch (dos livros sagrados judaicos): “Adquiriste o saber. Que mais te falta?”

Diante daquela consideração do religioso face ao que dissera, de Kobrim lhe respondeu: 

- Em verdade, é assim. Tendo adquirido o saber, saberás então o que te falta.

...

E logo em seguida, no mesmo livro, Martin Buber traz outra história de Baal Schem Tov, místico bem conceituado no Judaísmo desde séculos. Esse outro episódio tem por título Sem o Mundo Vindouro, e narra de ocasião em que o religioso, certa hora se sentindo em desânimo e qual notasse em crise sua fé, quis admitir lhe faltar merecimento de que já possuísse a felicidade em um mundo vindouro; nessa hora dissera a si mesmo, segundo conta Buber:

- Se eu amo a Deus, para que preciso de um mundo vindouro? 

...

São momentos assim de lucidez e espiritualidade que refletem o nível de compreensão de cada um diante do infinito mistério da Eternidade a nos tocar suavemente e indicar oportunidades da percepção da grandeza do Poder, tudo através da consciência em aprimoramento constante por meio dos desafios da Sabedoria. Todas as religiões possuem seus místicos, os quais sejam dignos de tocar as abas do Céu e conhecer tanto mais da beleza e da divina perfeição.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Imaginação ativa

Outro dia falávamos da imprevisibilidade quanto aos dias futuros, nem sempre a realidade real daquilo que se espera diante das limitações de todos nós. Isso, no entanto, passível de alguns acertos, face ao que conhecemos das filosofias e artes divinatórias, do esforço dos tantos que gastam tempo a fazer elucubrações e largas considerações dos dias porvindouros; decerto arriscam vaticinar e correr o risco de cumprir papéis proféticos sem fundamento, que a isto lhes cabem as circunstâncias, os reinos onde habitam, as cortes que frequentam. Mas, grosso modo, ganham fama, preenchem o espaço entre o juízo e as gerações, acalmam as rimas dos poetas e vencem a monotonia das horas que se aproximam.

Há, contudo, noutro campo, os avatares messiânicos dos povos, que, estes, sim, chegam previstos nas escrituras sagradas e detêm a força das revelações, os quais trazem consigo a função de nortear a multidão nos séculos, carente de consciência a fim de posicionar as civilizações pelos dias seguintes. Nessas personalidades predomina o místico na forma e na prática do Absoluto. Bem mais do que apenas humanos, significam a plenitude dos seres iluminados e parceiros da Eternidade. 

A distância, entretanto, desses e nós demanda infinitas transformações morais, nada que seja de todo impossível, todavia exigem renúncia através da caridade e da humildade, visando, sobremodo, vencer a matéria bruta e nos aproximar do divino aprimoramento, domar o egoísmo e o orgulho, e crescer nos passos continuados das vidas sucessivas. Eis, em suma, uma transação interior das criaturas humanas, o seguimento de transcender a matéria e galgar padrões espirituais, na busca da felicidade perene; a isto nos encontramos aqui, face a face conosco mesmos, mentores do que resta cumprir nas existências. Conquanto vivamos ainda as limitações deste chão, já dispomos do direito fundamental de reger o destino e desvendar a luz que em nós existe, razão de tocarmos adiante esta longa caminhada e construir um novo Ser que vive em nós. 

domingo, 9 de dezembro de 2018

Dois irmãos e um caminho

Dois brigam quando dois querem. Em havendo disposição de paz em um dos lados, há paciência, há perdão. Dominar esse instinto agressivo importa nos resultados de harmonia de que tanto carece este chão das almas. 

Assim, nós dois que somos todos a trabalhar o afeto pomo-nos a seguir ainda feitos feras, enquanto um morde, o outro se magoa e sofre, abafa, reprime, revolta, impõe justificativas na agressividade contida, no entanto amargurada, espécie de roupa suja guardada lá dentro nos refolhos da comum inutilidade. Eles dois, nós dois, estrada afora tangemos duas feras, uma que lança farpas em cima da carne seca, no vulgar desespero de sofrer, contrapeso que arrasta de mesma carroça de sucatas que, agarradas, somos aqui no Planeta. Dois perdidos e a noite suja de Plínio Marcos do passado. 

Feras largadas ao velho picadeiro das contradições, roçadeiras amoladas nas pedras toscas do desgosto, impõem contradições, amigos em forma de lados agudos, num, o sujeito da razão; no outro, as costas moídas de chicotadas e dos escravos jogados nas sarjetas. Isto em relação a quase tudo, senão tudo, burros de cargas que transportam as malas da ignorância, que buscam escola nas malhas do sofrimento.

Poderemos crescer unidos, a história contará novidades ainda longe de preencher o espaço de horas tontas, na peleja do pesadelo ilusório da divisão das classes. 

Esses dois irmãos, talvez até amigos, e no caminho viverão prudentes os objetivos da ordem mundial que anseiam desde que mundo é mundo. Próximos uns dos outros, outros irmãos que seremos em um só sem distância regulamentar de conservar objetos quais proprietários definitivos, e de próprio nada temos. A matéria que transportamos apenas servirá de empréstimo da Natureza, a quem devolveremos lá certo dia, cedo ou tarde, à luz do Tempo inabalável. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Limites do inesperado II

Isto de saber até onde irão as certezas que transportamos vida afora. De conhecer o que, na verdade, conhecêssemos, se é que conhecemos algo puro a propósito dos dias vindouros. Mesmo assim agimos quais donatários do absoluto futuro, quando quase nada, ou nada, dominamos dos acontecimentos posteriores. Daí a fome desesperadora de desvendar o inesperado, assenhorear-se das marcas seguintes dos nossos passos neste chão.

Na realidade, somos meros detentores do direito de existir ainda sem saber, com plenitude, o que significa existir. Espécies de alimárias dos depois, vagamos soltos pelas matas virgens sob o crivo dos elementos originais. Atores de peças que nem escrevemos, e, tantas vezes, sabemos pouco da firmeza das existências do Autor de tudo quanto há sob o Sol. Seríamos, talvez, livres aves nos céus do Invisível. Querer, pois, julgar a nós e aos outros representa atitude temerária diante da Perfeição que a tudo rege no dizer das religiões. Explorar os demais quais superiores fóssemos, eis outra providência que produz frutos amargos, porquanto o equilíbrio universal a isto determina face ao nível do exato funcionamento das esferas. 

Portanto, aventureiros do acaso, balançamos nas ondas deste mar de inevitável a que fomos submetidos desde quando persistem os pensadores e os mestres à busca de explicar o inexplicável. Máscaras de si próprios trocamos os pés nos dias que restam de sobreviver ao eterno, máquinas de forjar o sentimento, e instrumentos de organização da sociedade humana. 

Grandioso o desejo de interpretar os ritos da Natureza, contudo somos só meios falhos das escolas desta vida. Que lição maior de humildade sobraria além de aceitar, se não baixar a cabeça e orar com força ao desconhecido no senso do Bem, do Amor, da Paz. Nenhuma dúvida, por isso, de que alguém regressou a transmitir a sabedoria que descobrirá no tempo certo. 

O chão da alma

No piso dessa realidade interna, caminha o ser diante das trevas, sempre só, às vezes vacilante... Olha tudo querendo a todo custo esquecer o que deixara de fora lá no ontem dos rochedos. É esse o pouso das criaturas aonde queiram chegar. Deixar de lado os eus externos que, durante desencantos sucessivos, largam desejos mal contidos de liberdade, no entanto ainda presos nos tentáculos ferrenhos da ilusão, amante e vilã dos lenitivos. 

Longe, um dia, todos alçarão voo e restarão laivos de saudades de nem sabe por quê perdidos foram pelos jardins do imaginário. Isto de andar aqui tem surpresas, largar ao desconhecido pedaços das ansiedades que trouxemos, contudo inconsistentes, de vencer o inevitável. Tempos enquanto o furor nos triturava a quatro dentes, feito cães famintos no terreiro da paixão. 

Mas há isto, esse lugar bem dentro do amor das gentes. Nele as ondas glaciais do Infinito batem forte e correm soltas pelas praias do Destino. Outras vezes bem aqui estaremos à procura do instante eterno, vagando de olhos fundos nas dobras dessas histórias antigas que transportamos no coração.

...

Fora, longos meses de expectativa a contemplar o horizonte donde virá o Sol. Aqui, onde as almas, em frangalhos ou quietas, esperam sinais do entendimento através dos sentimentos. Nisso ninguém está sozinho apesar da enorme solidão dos trópicos das horas calmas no mar da humanidade. A braços, pois, com dificuldades naturais de quem aprende no fragor das aparentes contradições, todos são os heróis de si no chão da alma que nutre a certeza de tudo que vem ficará melhor no sentido da obrigação. 

Livre das ameaças e das dores, eles já constroem as naves da salvação que lhes permitirão realizar seus sonhos em manhãs que se avizinham penhes de verdade. Há um chão na vala comum das criaturas humanas.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Doidos atuais

Tal qual quem viaja numa estrada desconhecida altas horas, quase sem visão nem movimento, e acompanha os sinais rodoviários, quando, de supetão, avista nas placas da margem uma contendo enorme interrogação amarela em fundo preto; assim é o futuro, a vida. Que haverá, que mudará, que trazem as próximas horas ao silêncio das estradas apenas rompido pelo croaxar intermitente dos pneus no asfalto e sons da ventania de encontro aos vidros e flandagem do veículo.

Assim tem sido. Assim será por longos anos. Há pouco, presente em momentos noturnos das baladas desta época, observava os doidos de hoje e os comparava com os doidos de antigamente. Quanto parecem, muito, muito. Cabelos longos, barbados, olhos assustados, fugindo de outros olhos quais desconfiassem de serem vigiados, mesmas neuras dos guerreiros arcaicos daquelas outras aventuras. Acossados pela sina das noites, crianças vagam soltas nas ondas do mar das ruas, vadias sombras que as levam consigo aonde forem, nos tetos invisíveis do destino. 

Velhas saudades, aventuras errantes; o inesperado à busca de tudo que restara nos cestos largados fora na porta das lojas, dos bares, becos escuros, solitários.

De novo só o apego de revelar a paz nas telas do instante; tocatas da valsa das décadas na alma da gente; fomes de amor; sede de sobreviver a todo custo. Pessoas-improviso, cigarros em punho, garrafas dançando entre as mãos impacientes; ansiedades mil deslizando nas praças e calçadas; atores de histórias impossíveis, porém idênticas à dos parceiros que o tempo levara e caprichosamente traz de volta repetidas vezes nas veredas e nos filmes. Pistas molhadas, escorregadias, parceiros próximos, cúmplices nas jornadas e leitores dos sinais à beira do abismo, quando de súbito aquela placa de interrogação do que virá logo ali adiante. Os ídolos, os ícones, emblemas que balançam nas nuvens de esperança guardadas a sete capas nos escombros deste chão... 

São ritmos recentes das velhas músicas, ânsias de liberdade tornadas aos pedaços, senhoras de sonhos, e amores, e desejos. Luzes que se apagam. Luzes que se acendem.

(Ilustração: Hippies).