Num domingo de fim de tarde, a pretexto de copiar o que a moçada escrevera nas paredes da cidade, mania rebelde consignada após a liberalização posterior aos anos de regime militar, saímos de carro para reunir as melhores frases que encontramos, sobre as quais faremos rápidos comentários, a título de avaliação.
Foi
uma espécie de pesquisa do momento literário, em cidade de poucas publicações
(poucas ou nenhuma). Muros mais utilizados: os que ficam próximos a colégios e
ruas mais movimentadas. Temas preferenciais: declarações de amor. Recados.
Votos de feliz aniversário. Protestos misturados a propagandas antigas ou
recentes, campanhas de greve geral, reforma agrária, contrárias aos plano
econômicos da ocasião, ao Presidente da República em exercício e reclamações
contra o elevado custo da vida. Xingamentos dirigidos. Votos de boas-vindas.
Nomes próprios em profusão. Referências a personagens imaginários ou
desconhecido (Zumbi, Brabo, Rei, Crâneo). Cabalística com sinais de suásticas,
cruzes cristãs, rubricas dos autores (que depois prevaleceram, numa onda
explícita de vandalismo agressivo, desesperado, vindo a motivar série repressão
policial em defesa do patrimônio urbano).
Tudo
isto caracterizou a Grafitagem cratense dos fins da década de 80, manifestação
que imaginamos denominar de PICHELITERATURA.
Muitas
são as cores de tinta; quase todas as frases feitas com spray,
encarecendo o processo e deixando entrever o nível sócio-econômico dos autores.
Assim,
iniciamos nosso levantamento pelo muro detrás da Reitoria da Universidade
Regional do Cariri - URCA, lendo: "SE VOCÊ SOUBESSE O QUANTO ME FAZ SOFRER
TENTARIA SUMIR", em flagrante desabafo sentimental, bem do feitio de
grande número das tiradas seguintes.
"UM
DIA A GENTE AINDA SE CONHECE", mesmo local.
Já
no muro do Cemitério Nossa Senhora da Piedade, Rua Nélson Alencar: "DEIXEM
DE SER BESTAS, TUDO ISSO SE REDUZ A ISTO".
No
Colégio Diocesano: "A VERDADE É QUE OS BICHOS QUANDO IMITAM OS HOMENS
PERDEM TODA A DIGNIDADE".
Igreja
de São Francisco, na Casa Paroquial: "TE AMO TANTO, TANTO... NÃO SEI MAIS
QUE JÁ FUI ANTES".
Perimetral:
"O AMOR EXISTE NA ESPERANÇA DE EXISTIR".
"NOSSA
AMIZADE VALE PELA VIDA QUE JÁ CONSTRUÍMOS".
Às
costas do SESI: "OLHAÍ CARA SE TEM UM LANCE QUE EU DESTETO É ESSA
SOCIEDADE QUE NÃO ENTENDE UM JOVEM" (mantivemos a escrita original,
inclusive quanto ã pontuação). "APESAR DOS DESENCONTROS VOCÊ É MINHA
PAIXÃO". "ME PROCURE. TÔ CUM SAUDADE".
Numa
das esquinas da Praça da Sé: "QUE TAL PERDER ESSE MEDO? PULA PARA O LADO
DE CÁ". Assinado "EU".
Íamos
à busca de surpresas, como quem observa um rebanho de reses para compra. Tudo
gratuito, nas calçadas, em forma de palavras soltas, entre pichações políticas,
de lojas e apresentações artísticas de anos passados. "DESDE AQUELE SÁBADO
MEU CORAÇÃO BATEU MAIS FORTE". Palavraas truncadas, tremidas,
interrompidas, correções apressadas, inglês arrevesado. A cultura popular da
era eletrônica, com pedaços de cantigas da televisão. Sinais e letras
ilegíveis, pornografias e patronímicos. "CRUZADO NOVO ARROCHO VELHO. PLANO
LADRÃO".
Na
Rua Ida Bilhar: "FOI BOM O TEMPO QUE PASSAMOS JUNTOS, MAS PRECISO DIZER
ADEUS".
Colégio
Santa Tereza, logo no portão: "VOCÊ TEM O SORRISO MECÂNICO".
Na
Maternidade: "TE QUERO E NÃO CONSIGO TE QUERER", já quase encoberto
por camada nova de tinta.
URCA,
muro da frente: "VOCÊ ME FEZ ENVELHECER UM ANO A CADA DIA", "MEU
CORPO É QUENTE, MAS ESTOU SENTINDO FRIO", "SOU MAIS A MINHA BOCA
FECHADA DO QUE AS SUAS PALAVRAS VAZIAS", "DONDE VENS? DO CHÃO. AONDE
VAIS? AO EM VÃO. QUAL O TEU NOME? SOLIDÃO. O QUE TE INSPIRA? O CORAÇÃO".
Autores
anônimos ou com pseudônimos ou (quem sabe?), com nomes corretos encobertos nas
abreviaturas: FHS, RTS, SB, KETS.
"NUNCA
PENSE QUE ESCREVO SOMENTE PELA ARTE DE GRAFITAR, E SIM COMO MODO DE ME
EXPRESSAR", assina: FHS.
Rua
Irineu Pinheiro: "AH! É VOCÊ! DESENCONTRO SEM NOME QUE EU TENTO
ENCONTRAR". "LOUCURA, UTOPIA? DEIXE-ME AO MENOS SONHAR COM A
PAZ". "CAMINHANTES. NÃO EXISTEM CAMINHOS. O CAMINHO SE FAZ AO
ANDAR".
Estrada
do Lameiro: "NO CAMINHO EU EXPLICO". "BRUXINHO, DIGA QUE ME
ODEIA, MAS DIGA QUE NÃO VIVE SEM MIM". "NÃO ESQUEA QUE SOU A DONA DOS
TEUS OLHOS".
No
Sossego: "QUANDO OLHO PARA MIM, DENTRO DE MIM TEM VOCÊ". Poesia pura
e natural. "O SOL NÃO BRILHA TANTO QUANTO OS TEUS OLHOS PARA MIM".
Gírias e caligrafias várias, em letra de forma ou manuscrita: "VÊ SE
ESQUECE ESTA PAIXÃO, OLHA PARA OS LADOS. TEM GENTE CURTINDO... SE LIGA
GATO".
Muro
do Crato Tênis Clube: "PICHO O MURO PARA VOCÊ SE LEMBRAR DE MIM",
"SOMENTE AQUELE QUE AMA SEM ESPERANÇA CONHECE O AMOR", "SE AMAR
É TER QUE PEDIR PERDÃO, SOU TEU ESCRAVO", "EU OS DESAFIO".
Na
Escolinha do Pequeno Príncipe, uma parafernália de nomes, com ou sem sentido:
"VOCÊ É COMO SATÉLITE QUE PAROU EM MINHA ÓRBITA", "EU TE AMEI,
MAS É MELHOR NÃO MEXER NISSO", "LIXO É ESPELHO A QUEM QUIS
FAZÊ-LO", "NÃO QUERO TEUS SANDUICHES, TE QUERO". Estética de
vários gostos, estilos diversos, "non sense".
Parque
Municipal, ao lado, na Rua Cel. Secundo: "QUEM TIVER RAIVA DE MIM, GRITE
PELA RUA, QUE EU COMO NA MINHA CASA E CADA QUAL COMA NA SUA", Cláudia.
"VOCÊ ME FEZ CRER QUE A EUFORIA DE ESTAR APAIXONADA É IGUAL A EUFORIA DE
UM GOL ANULADO", a que achamos mais espirituosa.
Tênis
Clube, de lado: "O QUE SEU CORAÇÃO ME DIZ, O FUNDAMENTAL É SER
FELIZ".
Estrada
do Grangeiro, quando percorréramos os pontos
mais adotados pelos autores furtivos e as luzes já começavam a clarear a noite
que chegava: "NO SEU CASO SÓ EXISTE UMA SAÍDA. EU!", com exclamação e
tudo. "FELIZ EU FUI POR TER CONHECUDI VOCÊ. DOEU DIZER ADEUS".
"O QUE NOS SEPARA É APENAS UM SIMPLES OLHAR". "SÓ VOCÊ ME FAZ
PERDER O SONO PARA EU FICAR PICHANDO". "VOCÊ É A ALEGRIA DA
GALERA". "SINTO COMO DOIS ELEFANTES NO FUNDO DO MAR". "TUDO
O QUE A ANTENA CAPTAR MEU CORAÇÃO CAPTURA". "PRA QUE VOTAR? SE SEMPRE
VOTAMOS EM VÃO?" (tirada com toque de doutrinação política, caso raro).
"SINTO PEDAÇOS ENTRE CACOS POR VOCÊ". "UMA PARTE DE MIM É
PERMANENTE, A OUTRA SE SABE DE REPENTE". "PRA TÊ-LA AO LADO, SÓ
PRECISO FECHAR OS OLHOS", uma das frases mais antigas nas paredes, notada tempos
atrás, antes até deste plano de reunir as melhores neste texto. "NUNCA
HAVERÁ ADEUS ENTRE NÓS, ONDE ESTIVERMOS ESTARÁ NO MEU CORAÇÃO".
"MINHA SOLIDÃO FOI NÃO FALAR MOSTRAR VIVENDO". Achamos esta a de
melhor riqueza formal.
Na
Rui Barbosa: "A CERTEZA DE VER TEUS OLHOS BRILHAREM À NOITE É A RAZÃO DE
OS MEUS BRILHAREM AO AMANHECER", a mais lírica.
E para completar, na Travessa Araripe aprendemos que "A VIDA PASSA BREVE E PERDER TEMPO É PECADO". Isto seria apanágio do trabalho desse poetas noctívagos, a gravarem na fisionomia urbana os seus sentimentos, não fossem tais registros que fizemos (Danielle e eu) em 02 de julho de 1989, pelo valor criativo e para alongar o momento dessas inspirações efêmeras da memória de uma época cratense.
(Ilustração: https://www.assistebrasil.com.br/direcoes/5-documentarios-brasileiros-sobre-cultura-urbana-grafitagem-e-pichacao/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário