segunda-feira, 8 de julho de 2024

A tatuagem das ruas


Num domingo de fim de tarde, a pretexto de copiar o que a moçada escrevera nas paredes da cidade, mania rebelde consignada após a liberalização posterior aos anos de regime militar, saímos de carro para reunir as melhores frases que encontramos, sobre as quais faremos rápidos comentários, a título de avaliação.

Foi uma espécie de pesquisa do momento literário, em cidade de poucas publicações (poucas ou nenhuma). Muros mais utilizados: os que ficam próximos a colégios e ruas mais movimentadas. Temas preferenciais: declarações de amor. Recados. Votos de feliz aniversário. Protestos misturados a propagandas antigas ou recentes, campanhas de greve geral, reforma agrária, contrárias aos plano econômicos da ocasião, ao Presidente da República em exercício e reclamações contra o elevado custo da vida. Xingamentos dirigidos. Votos de boas-vindas. Nomes próprios em profusão. Referências a personagens imaginários ou desconhecido (Zumbi, Brabo, Rei, Crâneo). Cabalística com sinais de suásticas, cruzes cristãs, rubricas dos autores (que depois prevaleceram, numa onda explícita de vandalismo agressivo, desesperado, vindo a motivar série repressão policial em defesa do patrimônio urbano). 

Tudo isto caracterizou a Grafitagem cratense dos fins da década de 80, manifestação que imaginamos denominar de PICHELITERATURA.

Muitas são as cores de tinta; quase todas as frases feitas com spray, encarecendo o processo e deixando entrever o nível sócio-econômico dos autores.

 Assim, iniciamos nosso levantamento pelo muro detrás da Reitoria da Universidade Regional do Cariri - URCA, lendo: "SE VOCÊ SOUBESSE O QUANTO ME FAZ SOFRER TENTARIA SUMIR", em flagrante desabafo sentimental, bem do feitio de grande número das tiradas seguintes.

"UM DIA A GENTE AINDA SE CONHECE", mesmo local.

Já no muro do Cemitério Nossa Senhora da Piedade, Rua Nélson Alencar: "DEIXEM DE SER BESTAS, TUDO ISSO SE REDUZ A ISTO".

No Colégio Diocesano: "A VERDADE É QUE OS BICHOS QUANDO IMITAM OS HOMENS PERDEM TODA A DIGNIDADE".

Igreja de São Francisco, na Casa Paroquial: "TE AMO TANTO, TANTO... NÃO SEI MAIS QUE JÁ FUI ANTES".

Perimetral: "O AMOR EXISTE NA ESPERANÇA DE EXISTIR".

"NOSSA AMIZADE VALE PELA VIDA QUE JÁ CONSTRUÍMOS".

Às costas do SESI: "OLHAÍ CARA SE TEM UM LANCE QUE EU DESTETO É ESSA SOCIEDADE QUE NÃO ENTENDE UM JOVEM" (mantivemos a escrita original, inclusive quanto ã pontuação). "APESAR DOS DESENCONTROS VOCÊ É MINHA PAIXÃO". "ME PROCURE. TÔ CUM SAUDADE".

Numa das esquinas da Praça da Sé: "QUE TAL PERDER ESSE MEDO? PULA PARA O LADO DE CÁ". Assinado "EU".

Íamos à busca de surpresas, como quem observa um rebanho de reses para compra. Tudo gratuito, nas calçadas, em forma de palavras soltas, entre pichações políticas, de lojas e apresentações artísticas de anos passados. "DESDE AQUELE SÁBADO MEU CORAÇÃO BATEU MAIS FORTE". Palavraas truncadas, tremidas, interrompidas, correções apressadas, inglês arrevesado. A cultura popular da era eletrônica, com pedaços de cantigas da televisão. Sinais e letras ilegíveis, pornografias e patronímicos. "CRUZADO NOVO ARROCHO VELHO. PLANO LADRÃO".

Na Rua Ida Bilhar: "FOI BOM O TEMPO QUE PASSAMOS JUNTOS, MAS PRECISO DIZER ADEUS".

Colégio Santa Tereza, logo no portão: "VOCÊ TEM O SORRISO MECÂNICO".

Na Maternidade: "TE QUERO E NÃO CONSIGO TE QUERER", já quase encoberto por camada nova de tinta.

URCA, muro da frente: "VOCÊ ME FEZ ENVELHECER UM ANO A CADA DIA", "MEU CORPO É QUENTE, MAS ESTOU SENTINDO FRIO", "SOU MAIS A MINHA BOCA FECHADA DO QUE AS SUAS PALAVRAS VAZIAS", "DONDE VENS? DO CHÃO. AONDE VAIS? AO EM VÃO. QUAL O TEU NOME? SOLIDÃO. O QUE TE INSPIRA? O CORAÇÃO".

Autores anônimos ou com pseudônimos ou (quem sabe?), com nomes corretos encobertos nas abreviaturas: FHS, RTS, SB, KETS.

"NUNCA PENSE QUE ESCREVO SOMENTE PELA ARTE DE GRAFITAR, E SIM COMO MODO DE ME EXPRESSAR", assina: FHS.

Rua Irineu Pinheiro: "AH! É VOCÊ! DESENCONTRO SEM NOME QUE EU TENTO ENCONTRAR". "LOUCURA, UTOPIA? DEIXE-ME AO MENOS SONHAR COM A PAZ". "CAMINHANTES. NÃO EXISTEM CAMINHOS. O CAMINHO SE FAZ AO ANDAR".

Estrada do Lameiro: "NO CAMINHO EU EXPLICO". "BRUXINHO, DIGA QUE ME ODEIA, MAS DIGA QUE NÃO VIVE SEM MIM". "NÃO ESQUEA QUE SOU A DONA DOS TEUS OLHOS".

  No Sossego: "QUANDO OLHO PARA MIM, DENTRO DE MIM TEM VOCÊ". Poesia pura e natural. "O SOL NÃO BRILHA TANTO QUANTO OS TEUS OLHOS PARA MIM". Gírias e caligrafias várias, em letra de forma ou manuscrita: "VÊ SE ESQUECE ESTA PAIXÃO, OLHA PARA OS LADOS. TEM GENTE CURTINDO... SE LIGA GATO".

Muro do Crato Tênis Clube: "PICHO O MURO PARA VOCÊ SE LEMBRAR DE MIM", "SOMENTE AQUELE QUE AMA SEM ESPERANÇA CONHECE O AMOR", "SE AMAR É TER QUE PEDIR PERDÃO, SOU TEU ESCRAVO", "EU OS DESAFIO".

Na Escolinha do Pequeno Príncipe, uma parafernália de nomes, com ou sem sentido: "VOCÊ É COMO SATÉLITE QUE PAROU EM MINHA ÓRBITA", "EU TE AMEI, MAS É MELHOR NÃO MEXER NISSO", "LIXO É ESPELHO A QUEM QUIS FAZÊ-LO", "NÃO QUERO TEUS SANDUICHES, TE QUERO". Estética de vários gostos, estilos diversos, "non sense".

Parque Municipal, ao lado, na Rua Cel. Secundo: "QUEM TIVER RAIVA DE MIM, GRITE PELA RUA, QUE EU COMO NA MINHA CASA E CADA QUAL COMA NA SUA", Cláudia. "VOCÊ ME FEZ CRER QUE A EUFORIA DE ESTAR APAIXONADA É IGUAL A EUFORIA DE UM GOL ANULADO", a que achamos mais espirituosa.

Tênis Clube, de lado: "O QUE SEU CORAÇÃO ME DIZ, O FUNDAMENTAL É SER FELIZ".

Estrada do Grangeiro, quando      percorréramos os pontos mais adotados pelos autores furtivos e as luzes já começavam a clarear a noite que chegava: "NO SEU CASO SÓ EXISTE UMA SAÍDA. EU!", com exclamação e tudo. "FELIZ EU FUI POR TER CONHECUDI VOCÊ. DOEU DIZER ADEUS". "O QUE NOS SEPARA É APENAS UM SIMPLES OLHAR". "SÓ VOCÊ ME FAZ PERDER O SONO PARA EU FICAR PICHANDO". "VOCÊ É A ALEGRIA DA GALERA". "SINTO COMO DOIS ELEFANTES NO FUNDO DO MAR". "TUDO O QUE A ANTENA CAPTAR MEU CORAÇÃO CAPTURA". "PRA QUE VOTAR? SE SEMPRE VOTAMOS EM VÃO?" (tirada com toque de doutrinação política, caso raro). "SINTO PEDAÇOS ENTRE CACOS POR VOCÊ". "UMA PARTE DE MIM É PERMANENTE, A OUTRA SE SABE DE REPENTE". "PRA TÊ-LA AO LADO, SÓ PRECISO FECHAR OS OLHOS", uma das frases mais antigas nas paredes, notada tempos atrás, antes até deste plano de reunir as melhores neste texto. "NUNCA HAVERÁ ADEUS ENTRE NÓS, ONDE ESTIVERMOS ESTARÁ NO MEU CORAÇÃO". "MINHA SOLIDÃO FOI NÃO FALAR MOSTRAR VIVENDO". Achamos esta a de melhor riqueza formal.

Na Rui Barbosa: "A CERTEZA DE VER TEUS OLHOS BRILHAREM À NOITE É A RAZÃO DE OS MEUS BRILHAREM AO AMANHECER", a mais lírica.

E para completar, na Travessa Araripe aprendemos que "A VIDA PASSA BREVE E PERDER TEMPO É PECADO". Isto seria apanágio do trabalho desse poetas noctívagos, a gravarem na fisionomia urbana os seus sentimentos, não fossem tais registros que fizemos (Danielle e eu) em 02 de julho de 1989, pelo valor criativo e para alongar o momento dessas inspirações efêmeras da memória de uma época cratense.

(Ilustração: https://www.assistebrasil.com.br/direcoes/5-documentarios-brasileiros-sobre-cultura-urbana-grafitagem-e-pichacao/)

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário