quinta-feira, 25 de abril de 2024

As frias malhas do Destino


Algo qual fôssemos meros instrumentos de pensamentos que se sucedem no acontecer do Tempo e ficamos restritos a imaginar pudéssemos determinar o que seja ou venha a ser, o que quer que fosse. No entanto isto de uma perfeição a toda prova nos mínimos detalhes de um todo harmônico, circunstancial, pré-estabelecido em bases definitivas a todo instante, a ponto de aceitarmos a forte impressão de estar no comando do que ocorre e nos rendemos aos frutos, por vezes, até convictos de autorias e resultados da gente mesma.

A escolha entre liberdade e determinação fica, contudo, sujeita à limpeza dos métodos utilizados e aos princípios a que devem coincidir, lá nas profundidades, com aquilo que devêssemos fazer, porém tais enigmas a decifrar de parte a parte nos seres ditos inteligentes. As peças desse jogo vivem acesas nas nossas mãos. Enquanto isto, também significamos entes de um outro jogo grandioso de um tudo ou nada, enfim. Vagamos, pois, entre os teares de um Autor maravilhoso que sabe muito e mais do que o pouco que ora transportamos.

Daí, horas sem conta, padecemos da síndrome de coautor dos resultados, contanto esquecidos das suas bases inevitáveis, quais vida e morte, morte e vida. Mundo físico. Mundo transcendente. Sexo. Amor. Desafios. Felicidade. Entes infinitesimais num horizonte ilimitado, imortal.

São multidões incontáveis de composições em movimento, dentre elas aqui estamos. Mundo indivisível, quer-se fugir sem haver alternativa de fuga. Sonhar. Criar. Tocar os laços do Infinito e pernoitar à margem dos rios da sorte. Nisto, dúvidas não persistem de que sejamos parceiros neste tabuleiro monumental dos tantos valores, sentenças e reajustes.

Assim, numa barca  singrsndo os mares das existências, apenas nos consideremos expectadores e aprendizes do painel das horas, e adormçamos sobre nós mesmos durante as luzes suaves da Eternidade.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O sentido somos nós


O quanto há de haver vive, porém adormecido, na alma de todos. E existir tem disso o real significado: Acordar das ilusões. Achar a si mesmo no seio do coração. Frações de um todo, reunimos tal poder de unir a consciência em volta dos destinos. Enquanto que deslizamos na superfície, feitos água que passa nos riachos rumo dos oceanos. Afeitos à essa busca de algo no âmbito do vazio que ora transportamos, vez em quando desperta alguém nalgum lugar. Às vezes silenciosamente. Doutras a causar espécie.

À força dessa compreensão, que possamos divisar o senso e revelar o mistério de que somos parte. Viver é isso, caminhar pelas trilhas do Infinito e, de uma hora a outra, sacudir as bases da nossa essência imortal e completar um processo iniciado desde sempre. Nas mínimas atitudes, nos objetivos traçados, construímos o destino de tudo. Estamos aqui neste sentido absoluto da superação dos limites até então impostos por nós mesmos.

Enquanto isto, o quadro visível da realidade apenas presencia o que faremos face a face do que já existe. O mais oferece os meios a que descubramos o sentido sonhado e nos solucionemos, portanto. Quais sejam os métodos e as práticas, assim os céus se nos revelarão a qualquer tempo. Ser sincero consigo e as luzes acenderão a presença do ser em si.

As caligrafias, os enredos, as aventuras, são formatos distintos do Sol através de todos nós. Vivenciar a condição humana significa ultrapassar o espaço restrito das horas e dos territórios, e pedir paz ao Senhor que habita no mais íntimo. O ritmo da Natureza pede, aos seres que somos, a melodia suave da Eternidade donde viemos e à qual lá um dia retornaremos de bom grado. Autores da própria epopeia, aqui tocamos esse barco das histórias a meio de tudo quanto assistimos de olhos bem abertos.

(Ilustração: Reprodução (https://hypescience.com/a-consciencia-humana-cria-a-realidade/).

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Ainda sem destitno



Neste sábado, 29 de maio de 2010, circulou pelos jornais a notícia da morte do ator norte-americano Dennis Hopper, diretor e coadjuvante de Peter Fonda e Jack Nicholson, no filme Sem destino (Easy rider), película que marcou os anos 60 e sua geração perdida.

Esse clássico enfoca, sem meias tintas, o drama daqueles finais de século, numa fusão sintomática de drogas, sexo e ânsias existenciais da juventude, busca desesperada de encontrar o promo do crescimento tecnológico impaciente e recheado de fascismo opressor, frieza inútil da macroestrutura capitalista materialista, institucional, avassaladora.

Ao lado deste, um outro filme, o inglês Depois daquele beijo (Blow-up), do diretor Michelangelo Antonioni, também refletiria com vigor o quadro sem saída que se desenhava no horizonte das eras e previa nuvens de impossibilidades reais da política, no futuro das próximas décadas mundiais.

Eram tempos de profundas divisões de águas, auge do movimento contestatório dos hippies, quando jovens de todas as classes sociais do mundo se espalhariam, a circular feitos formigas atônitas, catando possibilidades apenas imaginárias, a fim de tranquilizar a consciência das intuições que prenunciavam geopolítica infame a subjugar o âmbito das pessoas humanas.

No roteiro de Sem destino, dois fiéis representantes da contracultura viajam de motocicleta entre as cidades americanas de Los Angeles e Nova Orleans, cruzando impávidas o território estadunidense.

No longo itinerário, sentem de perto a liberdade do espírito aventureiro a lhes sacudir os longos cabelos, pelas estradas desertas, imprevisíveis, expostos e submissos às circunstâncias do acaso desafiador, porém confrontam os habitantes reacionários das povoações interioranas por demais preconceituosos.

Campo aberto para avaliações do tempo histórico totalitário da época, o filme apresenta com sucesso as marcas frias da mentalidade que dominaria logo mais os quadros planetárias posteriores à Guerra do Vietnam e, um pouco adiante, à queda do Muro de Berlim, portas atuais de outros absurdos totalitários.

Em rápido apanhado de verdadeiro profeta, ao término da narração, Dennis Hopper chocaria seus contemporâneos, que aguardavam final menos infeliz, com a explosão amarga da destruição dos dois personagens, cena de uma tocha de fogo produzida pelo disparo das armas dos seus perseguidores. Algo equivalente à incapacidade reconhecida de mudar o sistema plenipotenciário em que se reverteu o sonho das realizações ilusórias deste chão que foge ao contato dos nossos pés.

Hopper tinha 74 anos e morreu por volta das 8h15 deste dia, cercado por familiares e amigos, disse o seu amigo Alex Hitz.

domingo, 21 de abril de 2024

As próximas dimensões do inesperado


Reuníssemos todos os filósofos e videntes numa única faixa escura das malhas do Destino e de lá receberíamos, com certeza, tudo quanto até agora esperamos das frestas que ficaram largadas no passado. Juntos eles todos e, de repente, sumiriam mar adentro nos restos desses escombros revelados em pedras e pergaminhos. Talvez viéssemos a padecer doutras síndromes diferentes das que ora transportamos no íntimo nas abas do mistério. Poucas, ou nenhuma, chances ficariam da herança insuficiente que guardaram os museus espalhados pelo mundo.

Conquanto seja assim as vagas e o vento daquilo que passou, ainda desse modo permaneceríamos intactos a observar o Tempo e as normas do absoluto que tanto desejamos interpretar desde sempre. Encontrar as marcas aqui deixadas do vivido é assistir quantas vezes e de que quase nada aproveitar, porquanto as antigas guerras continuam e as feras permanecem soltas a devorar os trastes absurdos de tudo aquilo que se foi pelo esgoto da História. Olhar uns aos outros e enxergar tão só fome e destruição da paz alheia, vergonha de tantos e lucro de ninguém, mera vaidade cruel, nefasta. Armas. Armas. Armas.

A cada manhã de novo essa procura desconexa e à toa nos monturos esquecidos do lado de fora, nos planos vazios da inutilidade. E perante tais considerações, o que fazemos que não seja apenas repetições descabidas, desnecessárias, das safras do desgosto?... Bom, digo e faço parte desse todo insuficiente da gente mesma, dos que aguardam os melhores dias das escrituras. Há tanto de interrogações que um século é pouco a conter e revelar. Vamos, no entanto, por força dos céus, à busca doutras horas que sejam obviamente dadivosas, sinceras e dotadas de um amor pleno, o que nos indica as chances da tão sonhada Felicidade.

sábado, 20 de abril de 2024

Emoções, instintos e sentimentos


Numa única nuvem eles ultrapassam voar o céu em si. Restos de folhas secas em movimento pelas estradas desertas aceitam o vento forte dos fenômenos, e sonham. Lá de dentro vem o Sol. Qual paisagem de épocas remotas, os primeiros instintos que surgiram ao nascer do dia vêm na mesma velocidade e surpreendem a todos. Por vezes mudanças de clima, alterações na superfície da Terra, cheias e devastações das dunas desse deserto donde brotaram as primeiras flores.

Persistem sinais que vagam na superfície dos mares. Meras visagens de tons avermelhados iluminam as encostas. Daí chegam indagações constantes quanto ao que significaria tudo isto que toca os sentimentos.

Sei que existe uma sequência original assim prevista desde sempre, de quando as notas primitivas desta sinfonia inextinguível da existência vieram à tona. Quais dedos a tocar o piano da Eternidade, trotamos passos na crosta palpitante dos dias. Quer-se saber mais e mais, no entanto muralhas imensas contornam as lembranças de um firmamento distante.

São todos partes da unidade que forma o andamento de sequências inevitáveis. Nós, seres ainda incógnitas, aqui atentos a olhar o cenário das luas todo tempo. Quiséssemos querer, de verdade, e ser-nos-íamos profetas dos próximos acontecimentos em fase de revelação. Nisto, a Verdade já existe, reservada sob o manto de civilização que dorme a sono solto no segredo perene das eras.

Trastes esquecidos, pois, nos balcões de magazines solitários, iniciamos gradualmente os primeiros acenos dessa história que germina pelos corações. Senhores de cada instante, ela deixa nascer o senso na alma e sorrir aos primeiros acordes de uma manhã de festa noutras superfícies exóticas, desconhecidas até então.

(Ilustração: Ieronymus Bosch).

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sem título


O ritmo distante das águas que correm no prumo do litoral descreve esse percurso inesquecível das décadas que agora circula na alma da gente. Pronuncia longos roteiros dos filmes quase perfeitos das ações que o mistério encobre nas folhas do tempo e substitui pela saudade, deixando marcas profundas nas fibras do coração.

Em nossas estradas lá de dentro nisso restam reunidos silenciosamente os âmbitos e pessoas que ficaram para trás, inscritos, porém, nas grutas ensombradas da consciência, enquanto cá fora novos céus abrem suas portas ao horizonte e chegam outras percepções na indústria do inacessível feito de vozes e cores.

Os humanos são isto, partículas à busca de aventuras pelos rincões da dúvida. Padecem, insistem, perfazem milhões de outras pequenas histórias que, somadas, constituem a existência de todos. Horas sem conta desejam habilmente superar o vazio e terminam dele prisioneiros. Criam novos argumentos, alimentam de sonhos a espécie que transportam e caminham incertos ao mais íntimo da Eternidade sem levar nada  do que aqui construíram. As ideias bem isto significam, diálogos de si para consigo entre as esquinas do deslumbramento e do Ser.

Poucas vezes, no entanto, haverá espécie menos senhora de si face ao anseio das horas. Quer a todo custo sobreviver à voracidade que lhe devora e sorrir num estranha felicidade aparente. Quantos sonhos assin no transcorrer das noites e na febre soturna dos desertos em movimento. Bom, nisto as letras inundam de palavras o leito dos papeis e todos saem às ruas na procura dos raros instantes de são feitos.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Nalguma dessas manhãs chuvosas


Quando nem sei direito a que se propõem as letras e as palavras, neste universo já inundado de letras e palavras e de pouco entendimento, a meio das aparentes contradições sigo adiante. São tantas leis, quantas histórias a saber, quantos sons espalhados neste chão, às vezes até silenciosos, que, no entanto, cobertos de interrogações e farpas, o que conta pouco no plano de expectativas, e todos olham os céus, imaginam e dormem astutos e persistentes.

Há ocasiões, quando revejo algum dos livros que carrego desde longe, e quase admito que eles também sabiam o que viria depois e quase nada do que quiseram dizer eu ouvi no percorrer do firmamento. Alimentaram velhos sonhos que ficaram lá atrás, transportados fielmente nas viagens que fiz. Quero, porém, rever as velhas emoções daqueles tempos e apenas refaço, na memória, o percurso dos itinerários, a sete capas, no âmbito da existência. Prosseguem ali pelas estantes quais bichos familiares os quais nunca resolveram fugir, por certo acomodados entre cobertores e fronhas horas a fio. Nisso existem qual entrosamento de regressar a qualquer instante e trazer os jeitos improvisados de viver. Falam disso, gritam mesmo nalgumas ocasiões, outrossim meus instintos, minhas ausências, pedaços de mim em órbita, tais meteoros abandonados, passam apressados.

Quisesse prever o que virá adiante e aceito que algo chegue, decerto,, porquanto do antes é que nascem aqui onde estou, em meio aos escolhos do que resta das poucas virtudes, sem contar as experiências a dizer as lições.

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Sim, desde sempre

 

Ainda existe tempo a providências ao gosto de todos para se começar, no intuito de conter a voracidade predadora da Humanidade, que devora as minas e o povo do continente africano, dentre outros, e cresce, neste princípio de milênio, de garras afiadas, contra as terras latino-americanas, bola geopolítica do capitalismo faminto da vez, então. Só de tal maneira descobririam tudo quanto a haver na Civilização.

Bom, mesmo que assim divisemos a imensa paisagem aos olhos metálicos de toda mundo, instinto sem precedentes na História, conquanto as visões se clareiam constantemente, na vontade selvagem de revelar os destinos dessa gente. Num querer indeciso de achar o caminho e tomar conta dos apegos materiais das noites e de uma manhã, logo cedo saem a percorrer ruas e vales, no ímpeto de manter a calma a todo custo.

Já passaram muitas e muitas luas pelo céu, enquanto normas apenas consistem na fome do silêncio universal em volta das fogueiras acesas. Quisessem, de verdade, revelar o mistério que percorre as entranhas e novas chances viriam à tona a cada segundo.

Desse modo, voltam sempre aos velhos lampejos dos melhores dias e maiores sonhos, porém cobertos de crostas talvez profundas demais aos atores desse drama que há de continuar durante muitos e tantos milênios, vidas a fora. Criaturas que, incontinenti, reencontram seus velhos conhecidos nas gerações e os fazem amigos de novo, vidas e vidas. Dentro, bem dentro, nas profundezas do ser já sabemos do quanto necessário a somar segredos entre os dois hemisférios da existência, o que adiamos instante a instante.

Foram, destarte, na origens das mais remotas eras o que nunca cessam de seguir os passos. E recolhemos as bases de prováveis e futuras transformações logo ali, ora em andamento. Felizes, pois, de estar circunscritos a tais possibilidades, aquietemos o senso e preservemos as certezas definitivas que justificam todas as circunstâncias.

(Ilustração: O anjo da casa ou O triunfo do surrealismo, de Max Ernst).

terça-feira, 16 de abril de 2024

Corrida espacial

 

Somos de uma geração que conheceu de perto a ficção científica, fase de ouvir falar em subir às estrelas e ver a Terra lá de longe. Mil histórias sem fim. Senhores que acreditaram em sobrevoar o Infinito e, quem sabe?, descer nalgum lugar diferente deste, a fim de construir nova História. Sonhar, por certo, nas normas doutros destinos talvez menos assustadores do que os tantos daqui do Chão. Pousadas de cantos estratosféricos, ricos em tudo, inclusive na ciência de bem viver. Daí vieram livros e livros, filmes e lendas.

Hoje até que aquietaram com isso; falam em fim de mundo, extermínios, novos céus e novas terras, recantos outros onde seja possível esquecer o passado e celebrar o futuro fora das tais guerras de domínio agora espalhadas pelos países e as lutas de irmãos contra irmãos. Imaginar uma história diferente da dos 1984 desse pedaço de tempo em demolição. Conquanto degustadores da sorte, facilitadores dos meios de viver com arte, no entanto ferrenhos adversários de si mesmos nos dobrões em movimento.

Face às histórias contadas nos finais do século, chegávamos a acreditar nas músicas de protesto, nos planos renovadores da sociedade, nos espetáculos de luz e cor aos olhos dos nossos ídolos; nem de longe admitíamos fosse aquilo tão só mera ficção. Quantas noites de longos papos em volta dos melhores dias, das festas coletivas das massas, das notícias felizes... Porém há que mudar dalguma maneira, quiçá dentro de nós próprios, a meio de certezas maiores que venham do íntimo das criaturas... Dos dias transformados em viagens sadias, alegres, de olhar as belezas da Natureza, firmar outros compromissos de amor e paz, fora dos muros dessa prisão que, por vezes, parece trazer à realidade aquilo visto nas profecias, nos tratados da imbecilidade e do furor sem limites.

Sapientes autores dos dramas narrados decerto avaliariam o quanto foram otimistas ao prever essa ausência de jeito com que tantos ainda se arrastam no lodaçal das páginas amareladas dessa longa noite das histórias atuais.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Cores fortes número dois


A incerteza desses pensamentos desce buraco adentro do peito, num mergulho de cascalhos rolando através dos rios da alma. Restos de culpa, espécie de só saudade abandonada em gestos incertos, angústias, muitas angústias que se acumularam visguentas pelas bordas metálicas do cérebro das mentes aflitas, como os derradeiros sentimentos das vidas inteiras. Postas de manhãs ensolaradas rebrilham, pois, sobre as lajes frias do quintal e o tudo e o nada se entrelaçam familiares, na forma dos velhos jornais rolando no vento úmido. Terços, tropeços entre os dedos, firmam as orações da véspera num apelo sincero rumo do desconhecido; cantigas travessas de horas agradáveis lá perdidas no passado neutro. Sim, são as lentas visões dos mesmos momentos que repetiram sensações do incontido de querem cruzar as pontes destruídas, voltar a impossíveis pastos de antigamente.

Vontade poderosa de sobreviver a qualquer custo conta valores imensos, porquanto ninguém andou nas jornadas ao Paraíso antes de amargurar dores atrozes do desencanto. O esforço sobre-humano de transcender o ritmo monótono das ondas que repetiram a história do tempo força extrema de continuar a passos lerdos sem, contudo, saber aonde seguir. Viver por viver ao sabor dos acontecimentos.

Essa doce amargura nos dentes do coração. Flores apagadas e fios invisíveis nas trilhas das aranhas tresmalhadas. Gosto de ausência de não ter tamanho impulsiona avançar e permanecer no outro lugar de sempre.

Os olhos ardendo com as chamas da noite veem a paisagem dos matos enviesados, no quadrado permanente dos territórios minados. Tons de verde, laivos de rosa nas plantas silvestres inundadas de sol. Pássaros tardios, raros pássaros que insistem silenciosos permanecer. Nessas impressões de claridade, o estio traz algumas formigas e o alimento que transportam à luz do dia, sinal de mais chuva que virá.

E nas caves profundas do eu, gotas puras de orvalho transbordam pelas gretas o furor, fervilhando íntimas vozes assustadas e doridas. O baque surdo, que o ser inflama, aumenta a solidão do insofismável. Louvores de tropel perguntam e rápido somem sem respostas. Cachoeira de líquidos invade os ouvidos, abafam o grito dominado e percorre as fronteiras do desejo.

Em quantas naves lançarei o meu destino? Pedaços de mim andam soltos nas quebradas vazias, portos fechados e mapas rasgados, que sacolejavam tremores de eras escondidas nas dobras do desespero.

Ruínas acinzentadas deixam ver as poucas feras que ali pastavam entre si caladas e fiéis ao firmamento, que, nas alturas eternas, insiste permanecer, domando a multidão dos horizontes sucessivos que deu na bola de cristal e guarda em si inevitáveis painéis do Universo esplendoroso.

domingo, 14 de abril de 2024

As luas da vontade



Há, sim, um poder na criatura humana, sua vontade, a força motriz de comando que sustenta seus passos no decorrer das existências. Dentre os fatores da liberdade o querer individual nos conduz nos gestos das histórias até quando descubramos o que de real nos levará ao caminho da libertação espiritual. Conquanto senhores de si, nesta visão, no entanto, enquanto isto, sujeitos aos temores da sorte adversa que lhes indicará o pouso dos resultados. Ainda que desejemos fielmente achar esse trilho de perfeição o quanto antes, padecemos das limitações da visão e nos sujeitamos a trocar dados em equívocos a que ver-nos-emos sujeitos.

São tantos os frutos mal colhidos face a face disto que o somos, parceiros das escolhas imediatas, a ponto de ser escolhidos antes de nós mesmos fazê-lo de algum lugar das ações. Fortes pendores, gestos precipitados, dependências mil, apegos à ilusão, quais condições inevitáveis de viver, eis o que significamos ainda.

Achar-se no centro de um movimento constante, desde os pensamentos às tendências ao léu das fraquezas, instrumentos das variações e das ideias, aqui estamos. De uma hora a outra, muito pode nos arrastar aos lodaçais da imprevidência, dadas nossas ações. Sedentos de felicidade, seríamos, então, tais joguetes dalguma origem inconsciente. Que existimos além de uma ficção, disto nem de longe duvidar. Porém aventureiros das encostas e dos dias sem prumo certo, definitivo. Essas limitações dos momentos nas gerações fazem-nos parceiros de uma evolução superior à nossa capacidade individual de então, porquanto submetidos aos padrões da Natureza mãe.

No transcorrer das condições ora em aperfeiçoamento, nisto contamos a necessidade maior de aprimorar essa vontade que, decerto, irá nos oferecer os meios de chegar na essência de Si e vislumbrar outros mares de largas heranças, já hoje havidas em nós mesmos durante todo tempo.


A lebre desprendida

 


Dentre as tantas lendas que registram vidas passadas de Buda existe uma que conta a propósito de uma lebre jovem que habitava intrincada floresta nas encostas de montanha afastada, tendo por companheiros uma lontra, um macaco e um chacal.

Ela se alimentava de ervas, folhas e frutos, e tomava como prática de viver não prejudicar ninguém que fosse. Entre os outros animais, fazia por ministrar ensinamentos quanto a distinguir o bem do mal, através de longas lições as quais repassava com prazer.

No transcorrer do tempo daquelas paragens silvestres, aproximou-se o dia de festa maior, época de receber visitantes religiosos que peregrinavam pelas matas. De acordo com os costumes, preparariam oferendas a eles destinadas, recolhidas nos encantos da natureza.
Enquanto os outros bichos dispunham dos meios de produzir brindes valiosos, a lebre, contudo, defrontou-se com dificuldade imensa, face dispor, na ocasião, apenas de ervas, coisa de somenos importância a quem lhe visitasse.

Indagada pelos companheiros do jeito que responderia ao desafio, não mediu palavras e disse: - Caso alguém me procure, não oferecerei ervas comuns, de fácil localização no seio da floresta. Quero possuir dote mais precioso. Nisso, a mim mesma, ao meu corpo, o valor único que possuo, darei de oferenda, pois daqui ninguém retornará sem a devida atenção.

Chegado o grande dia, os tais visitantes, pessoas dignas de outros lugares, adentraram as matas, a fim de conhecer de perto os seus moradores. Um deles era o próprio Sakka, a personalidade suprema do Poder, que conhece todos os pensamentos que fervilha em todas as mentes, que veio investido na figura de um simples brâmane e dirigiu-se à toca da lebre.

Ao vê-lo, ágil e prestativa, mais do que depressa a lebre disse fagueira ao visitante: - Fizeste o melhor vindo aqui à minha morada, pois quem me visitasse neste dia a ele reservara o que de mais precioso guardo neste lugar, e que isto te ofereço neste dia de festa.
Olhos atentos, o brâmane observava os raros e pobres trastes que existiam na casa simples, interrogando no íntimo a que se referia a lebre em suas acolhedoras palavras. Daí esta acrescentou: - O dom de que falo e que pretendo oferecer do meu coração sou eu mesma, o meu corpo vivo que vês, e que mereces inteiro pela nobreza de tua dedicação aos ditames sinceros do Bem nas tuas ações puras e austeras.

- Vai juntar gravetos e acende o fogo necessário ao preparo do teu repasto.

Mediante a oferta decisiva, o brâmane logo se movimentou, fazendo crepitar uma fogueira cujas chamas vigorosas iluminavam o escuro da folhagem virgem. Num gesto impávido, ligeiro, a lebre lançou-se no meio das labaredas aquecidas como quem se joga no seio de águas profundas, acalmando consigo seus anseios e dores, atitude suficiente para resumir toda uma vida sábia e afetuosa.

(Ilustração: Buda (reprodução).

sábado, 13 de abril de 2024

Jeitos de ver e contar


Quem escreve, ao reler o que publicou depois de algum tempo, nota o quanto de modificações se evidenciam no que lhe passava antes pela mente. Assim, de meus primeiros textos publicados, lá na segunda metade dos anos 60, no jornal A Ação, em Crato, vi um instinto diferente de encarar a realidade entre aquilo que hoje avalio do que vivi e ora vivo. Quando reuni a produção da época, em torno de 50 crônicas publicadas numa coluna (Páginas da Vida), encontrei espécie de intranquilidade febril que, de logo, hoje chegam quais reações aos valores e acontecimentos em alguém restrito só às incertezas políticas e à inexperiência de um adolescente desavisado. Daquilo até pensara editar em livro, porém contive a pretensão face ao quanto hoje vejo diferente, com outro sentimento, outras interpretações menos agressivas e dolorosas.

A escrita transmite bem esse querer dizer do que acontece dentro da gente, os impulsos, as percepções, sentimentos, lutas, pendores, a significar espécie de relatório da alma na vontade explícita de chegar a outros.

A propósito, também assim traduzem as cartas que trocávamos entre os amigos, único instrumento acessível de vencer as distâncias. No período, inclusive, prevalência apenas o correio, a manter os relacionamentos intelectuais e minorar as ausências. Entre aquelas pessoas próximas e de interesses semelhantes, contava, entre outros, com Tiago e Flamínio Araripe, Assis Sousa Lima, Pedro Antõnio Lima, José Esmeraldo, os mais aproximados. E em 2020, de São Paulo, Assis Lima, que conservara esse material, reuniu as correspondências desses amigos e editou bela produção, Cartas da Juventude, obra inesquecível para nós e documento vivo de uma fase daquela geração empedernida, contestadora, que teve o cuidado minucioso de conservar inteiro e a sapiência de publicar em rara iniciativa antropológica.

O texto alimenta, nisto, as relíquias incontestes dos tempos atuais. Tal qual as músicas e fotografias, representa monumentos valiosos da paleontologia das gentes, disso a importância dos livros e outras publicações durante as eras que fogem sem cessar. Sempre que me vem oportunidade, incentivo a quem escreve de reunir sua produção em edições, tão possíveis nestes dias tecnológicos de fácil acesso. Lá adiante irão agradecer a si próprios pela iniciativa.

(Ilustração: Escrita egípcia).

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Numa lua quase cheia de julho


Sob os efeitos recentes da tempestade de emoções vividas por ocasião do lançamento do livro Cariricaturas em verso e prosa, acontecido na noite de 24 de julho de 2010, nas dependências do Crato Tênis Clube, resolvo escrever algumas palavras neste assunto.

Junto dessa vontade, me veio ao pensamento uma polêmica verificada no auge do jornal O Pasquim, arauto brasileiro da contracultura na década de 60, quando o escritor Luiz Carlos Maciel escrevia artigos analisando o conteúdo existencial das letras de Noel Rosa e, sem intenção deliberada, feriu o espírito realista do célebre Millôr Fernandes. Assim, sem querer, provocou cisão irreparável no grupo de artistas e intelectuais do semanário, abrindo brecha intransponível para a sua continuidade. Tudo por conta do modo romântico de olhar a vida sem meias tintas, com fartura de emoções, aos moldes da avaliação literária.

Na tempestade que invadiu o espaço do tradicional recanto da sociedade cratense, nessa noite de autógrafos repleta de escritores, convidados, falas e música, causou espécie a farta emocionalidade do instante. Cercado de amigos que se reencontravam, vindos alguns de lugares distantes, público feliz desfrutou ocasião pródiga e espontânea. Viu-se de perto o Crato criativo, resistente e culto redimido em ocasião típica dos seus melhores dias de antes experimentados.

A festa produzida por Socorro Moreira, Claude Bloc e Edilma Rocha, animada por Hugo Linard e banda, reavivou bons sentimentos do auge de épocas bem especiais guardadas na memória. O mistério dessa intensidade, desse fulgor, lembra a frase de Saint Exupéry que diz: Quando o mistério é muito impressionante não nos cabe desobedecer.

Em meio ao sucesso das atividades em movimento, busquei agir como quem anda nos corredores internos de uma loja de porcelanas e vidros finos. Tantas valiosas personalidades vistas de perto, ao gosto por literatura, cultura, arte; figuras marcantes todo tempo, nos vários estágios dos caminhos desse rincão forte do Cariri, formaram painel verdadeiro de histórias e ocasiões, no encontro ao natural. Uma grande nave de cumplicidades circunscreveu sonhos pelo ar, feito o clima imponderável dos filmes geniais de Federico Fellini, decerto.

Daí soube as razões internas da vez em que Luiz Carlos Maciel analisou as letras dos sambas de Noel Rosa com a lente dos sentimentos. Porquanto há dimensões que apenas pelo lado de dentro se pode tocar, independentes dos caprichos horizontais da razão fria, das matemáticas.

Nesse aspecto, foi o professor José Newton Alves de Sousa quem, ao agradecer as homenagens recebidas, melhor definiu a voltagem da festa.
Fez menção a outro discurso e consignou mudança radical que, então, vivenciara na fisiologia de seu corpo, pois diante daquilo todo ele se transformava apenas em um coração.

Nós, por nós mesmos


De comum, planeja-se com empenho a perfeição individual, fruto das mensagens recolhidas nas religiões, do ensino dos grandes mestres, dos manuais de auto-motivação, que existem em profusão nas bancas de revistas, livrarias e templos. Colhem-se daqui e dali notícias do possível de cada um, na força da superação dos baixos instintos e começo de uma vida nova, o que convida à realização dos melhores dias, no rumo da sonhada felicidade.

Porém essa vontade constante de transformação de sonhos em realidades esbarra, vezes e vezes, nos limites da personalidade, nos hábitos antigos, arraigados costumes rotineiros, caracteres empedernidos na lei do menor esforço, acomodação e conformismo, modelos frouxos que nos impusemos ao nosso tronco, que, dizem, nasce torto e morre torto, da linguagem dos becos. Uns sonhos impossíveis, portanto, quer-se impor. Justificar a persistência nos descasos consigo próprios, outro método inútil, faminto e sem virtude.

Há, no entanto, as fórmulas válidas ao dispor dos que pretendem realizar, independente das sereias tentadoras do atraso.

Erguer-se nos próprios passos e determinar estradas novas ao deserto agressivo da mediocridade. Criar o incriado, no território íntimo do si mesmo. Reelaborar o instinto da salvação, no peito interno, e fluir outros metais liquefeitos, em formas antes inexistentes.

O que distingue os inertes dos realizadores será, por isso, a coragem de ousar. A matéria prima sempre se compara; carnes, sangue, ossos, vida. O que muda, apenas, o eu que comanda, o indivíduo. Jamais haverá dois “eus” iguais entre os seres. Ainda que clonadas, as ovelhas saem sozinhas do ventre que as pare. A natureza-mãe doa, constante, suas leis à vaidade dos homens, a deixá-los na doce ilusão de sábios e deuses, meros exploradores da ciência, aventureiros da razão.

Conquanto se desejem todos vitoriosos, a queda participa das jornadas diárias desses seres viventes humanos, o que indica valiosa lição de humildade. Ninguém queira exclusividade só nos acertos, pois habitando este chão vive o risco da queda. A força desse conceito reserva, a seu modo, um aprendizado claro. Sabedores falíveis, a diferença representa a capacidade em refazer os caminhos e começar outra vez a viagem. Da tempestade à bonança, retomar o fio da meada e dar a volta por cima.

Aula das gerações, desistir do que vale a pena demonstra fraqueza. Já que cair é lei da vida, ter forças para se levantar e recomeçar, eis a grandeza que simboliza a essência de nós mesmos. Que sejam, pois, garra e persistência em tudo o que se proponha de bom os motivos principais de construir a história desta vida rica de tantas variações e sonhos.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Ondas humanas


Frações de tempo em movimento, pessoas, multidões, séculos, milênios, isto a preencher as marés das histórias que restam jogadas no passado. Eventos, numa ordem constante, projeções em uma tela invisível de acontecimentos na forma de criaturas que pensam. Horas sem final. Enquanto uns chegam, outros regressam às profundezas do Infinito.

Tais pontes entre duas dimensões, levas imensas de outros seres assim substituem o panorama dos dias. Deixam sinais no mistério de que aqui estiveram e marcaram o chão de rastros, na sequência natural das tantas luas, a meio do desaparecimento sucessivo que predomina. Vem nisto a chance de revelar a si mesmo o sentido da existência. Pergaminhos ilustrados, suaves ou densos, firmam seus resultados na coletividade.

Nisso, velhas máximas já comprimem a musculatura e sugerem presenças estranhas doutros campos vibratórios. Seres de outras dimensões buscam viver aquilo que ninguém até agora ouso interpretar. As palavras, ao seu modo, escrituram os sinais em protesto ou cobrança aos viventes desavisados, habitantes do silêncio. Eles, que haviam esquecido de todo o valor da concentração e dos princípios do Bem na luz dos elementos eternos.

(Ilustração: Para Dante, A divina comédia, de William Blake).

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Sabor da estação


A inocência dessa folha em branco, à minha frente, no mínimo realça o gosto travoso de caju na boca do estômago. Algo semelhante a ondas que persistentes parecem me devorar por dentro, sentimento ou pensamento de ser vivo que se mexe por si só. As palmas nervosas das carnaubeiras sacudidas no Poente, retalhos de crônica antiga, acenam aos meus instintos, pondo iscas miúdas aos derradeiros raios de sol, pássaros em seus voos apressados na busca aflita do pouso noturno.

Nisso, a vontade antiga de querer contar coisas guardadas nos sonhos que se revelam de manhã cedo, pedaços de enigmas não resolvidos, restos de naufrágio que chegam a uma praia deserta, ignota, lenços acenados à distância, nas estradas vesgas do futuro.

Figuras amarelecidas de gestos insistentes permanecem jogadas nos cantos da memória, certezas de outros universos, porém jamais demonstrados com a pontualidade necessária que acalme o frio das ausências de um sentido pleno.

As folhas de zinco da dúvida, portanto, aproveitam esse tempo vago das convicções e invadem a sala de jantar da memória com ilusões agressivas e comportamentos alucinados, tentações soltas que voltam à vitrine dos dias. Os poços de lama das primeiras chuvas do Verão refletam as nuvens avermelhadas do Nascente.

Quisesse dormir sempre e pouco restaria de prosa para encher os cadernos de viagem, nas idas e vindas da esperança.

Desde ontem, a espiral da vida forma seus calendários a encobrir os primeiros vestígios do alvorecer. Brisas suaves, frias, enovelam os códigos e sacodem as árvores próximas. Pastos verdes conduzem, pois, reses que deixam o curral. Ninguém mais aguarda chegar notícias e profecias, depois que vulgarizaram dizer serem do tamanho da perfeição que controla a presença das certezas nas pessoas humanas.

Por conta dessas aparências enevoadas, notas estridentes agora comprimem os tons harmônicos das esferas, lá adiante, e pouco a pouco os fiéis resistem aos desejos que passam no tempo. Querem, a qualquer custo, novidades, contudo impõem condições para as receber.


terça-feira, 9 de abril de 2024

Domingueira


Meus avós maternos constituíram família morando em um sítio dos brejos da Batateira, em Crato, o Monte Alegre. Ali mantiveram engenho de rapadura e alambique de cachaça, atividade tocada, com a morte de meu avô, Antônio Bezerra Monteiro, sob as ordens de meu tio Quinco, o irmão mais velho que passaria a conduzir os irmãos devido aquela ocorrência, em 1946.

Os brejos do Crato ainda hoje preservam a cultura da cana-de-açúcar, adaptada às terras arenosas e férteis, realimentadas no húmus das cheias anuais do rio Batateira, a transferir o rescaldo das matas da chapada através das encostas da Serra do Araripe.

Na minha infância, conduzido pelos irmãos de minha mãe, passei inesquecíveis momentos de moagens junto da comunidade formada pelos habitantes do lugar. Que lembro, havia o engenho de Tio Ramiro, irmão de meu avô, vizinho ao deste; o de dona Morena, um pouco mais distanciado para as bandas do São Bento, na seqüência do rio; o de Felipe Bezerra; o de Dr. Antenor; o de “seu” Aldegundes; estes os principais, todos movimentados de cambiteiros, moradores, proprietários e familiares; animais de trabalho, de criação; sobretudo nas épocas da quebra da cana, por volta do mês de julho, período das férias escolares.

Tio Quinco, também meu padrinho de batismo, trabalhava com empenho durante toda semana, porquanto sobre os seus ombros pesou a educação dos irmãos. Desde jovem, chamou a si tal responsabilidade que cumpriria à altura nas décadas posteriores.

Os domingos, contudo, reservava a passeio tradicional ao Crato, aonde se chegava por três quilômetros de caminhos precários. Depois da semana de trabalho, vestia do bom e do melhor. Impecável, adotava quase sempre calça branca de linho, engomada “no capricho”; a pano passado, uma camisa distinta, de cambraia em azul claro; cinto de couro de jacaré, adornado com estojo dos óculos “Ray-ban”, companheiro inseparável; sapato de cromo alemão; e os cabelos castanhos engomados de fortes camadas de brilhantina, grudavam no couro cabeludo, resistentes a qualquer pé-de-vento.

Galã típico dos anos 50, padrão imortalizado nos filmes de Hollywood em fase de ascensão, desfilaria seu charme na praça Siqueira Campos, depois da missa matinal da nove, junto dos amigos de turma, a flertar belas jovens da fina flor interiorana. E ao cavalgar o lombo da moto BSA verde que possuía, enfeixava os detalhes restantes do modelo característico daquele período dourado.   

Lá um dia, no entanto, registrou-se quebra de roteiro.

Após ultrapassar a cancela da propriedade, fiel aos trajes descritos, em cima da ligeira motocicleta, logo, logo, num dos sulcos da estrada de jipes e burros do eito, defronte do engenho de Felipe Bezerra, cruzar-lhe-ia o percurso graúdo exemplar de porca impaciente, a receber no meio do espinhaço os pneus ligeiros do transporte, jogando no meio de larga poça de lama preta da moagem o lépido motoqueiro.

Esse encontro foi um Deus nos acuda! Naquele dia, desfizeram-se os planos de Quinco, pintado dos pés à cabeça da tiborna mais escura, que apenas ergueu a moto e voltou para casa, desfazendo o itinerário habitual da sua costumeira fidalguia de rever as pessoas da cidade naquela vez.

Meus avós maternos constituíram família morando em um sítio dos brejos da Batateira, em Crato, o Monte Alegre. Ali mantiveram engenho de rapadura e alambique de cachaça, atividade tocada, com a morte de meu avô, Antônio Bezerra Monteiro, sob as ordens de meu tio Quinco, o irmão mais velho que passaria a conduzir os irmãos devido aquela ocorrência, em 1946.

Os brejos do Crato ainda hoje preservam a cultura da cana-de-açúcar, adaptada às terras arenosas e férteis, realimentadas no húmus das cheias anuais do rio Batateira, a transferir o rescaldo das matas da chapada através das encostas da Serra do Araripe.

Na minha infância, conduzido pelos irmãos de minha mãe, passei inesquecíveis momentos de moagens junto da comunidade formada pelos habitantes do lugar. Que lembro, havia o engenho de Tio Ramiro, irmão de meu avô, vizinho ao deste; o de dona Morena, um pouco mais distanciado para as bandas do São Bento, na seqüência do rio; o de Felipe Bezerra; o de Dr. Antenor; o de “seu” Aldegundes; estes os principais, todos movimentados de cambiteiros, moradores, proprietários e familiares; animais de trabalho, de criação; sobretudo nas épocas da quebra da cana, por volta do mês de julho, período das férias escolares.

Tio Quinco, também meu padrinho de batismo, trabalhava com empenho durante toda semana, porquanto sobre os seus ombros pesou a educação dos irmãos. Desde jovem, chamou a si tal responsabilidade que cumpriria à altura nas décadas posteriores.

Os domingos, contudo, reservava a passeio tradicional ao Crato, aonde se chegava por três quilômetros de caminhos precários. Depois da semana de trabalho, vestia do bom e do melhor. Impecável, adotava quase sempre calça branca de linho, engomada “no capricho”; a pano passado, uma camisa distinta, de cambraia em azul claro; cinto de couro de jacaré, adornado com estojo dos óculos “Ray-ban”, companheiro inseparável; sapato de cromo alemão; e os cabelos castanhos engomados de fortes camadas de brilhantina, grudavam no couro cabeludo, resistentes a qualquer pé-de-vento.

Galã típico dos anos 50, padrão imortalizado nos filmes de Hollywood em fase de ascensão, desfilaria seu charme na praça Siqueira Campos, depois da missa matinal da nove, junto dos amigos de turma, a flertar belas jovens da fina flor interiorana. E ao cavalgar o lombo da moto BSA verde que possuía, enfeixava os detalhes restantes do modelo característico daquele período dourado.   

Lá um dia, no entanto, registrou-se quebra de roteiro.

Após ultrapassar a cancela da propriedade, fiel aos trajes descritos, em cima da ligeira motocicleta, logo, logo, num dos sulcos da estrada de jipes e burros do eito, defronte do engenho de Felipe Bezerra, cruzar-lhe-ia o percurso graúdo exemplar de porca impaciente, a receber no meio do espinhaço os pneus ligeiros do transporte, jogando no meio de larga poça de lama preta da moagem o lépido motoqueiro.

Esse encontro foi um Deus nos acuda! Naquele dia, desfizeram-se os planos de Quinco, pintado dos pés à cabeça da tiborna mais escura, que apenas ergueu a moto e voltou para casa, desfazendo o itinerário habitual da sua costumeira fidalguia de rever as pessoas da cidade naquela vez.

domingo, 7 de abril de 2024

O esforço de ser que insiste


Nesse melodrama da continuidade, os barrancos caem naturalmente diante do Eterno. São folhas secas das árvores a todo  minuto que some. Sem mais nem menos, o Sol seguiu e o horizonte recolhe suas dúvidas, e ficamos aqui no instinto de olhar as estrelas, ainda assim meros instrumentos em elaboração na barriga doutros mundos. Ver e aceitar, eis o sentido que nos cabe, contudo. Remoer as filosofias do saber popular que ficam acumuladas lá dentro dos céus, produzir a matéria prima de ontem nos dias que chegam. Contentes, alucinados por vezes, eles descem e sobem as ladeiras, livres de quaisquer pretensões. Rastros deixados em corpos que vão embora  no abrir e fechar dos olhos, massa informe das histórias individuais.

No passar de um parágrafo a outro algo tange o bloco de notas e a gente o transporta dias e dias. Escrever. Corrigir. Aceitar a força que as ideias têm na aba dos desejos. Querer contar de que aqui existo nas marcas de um ser que anda, come, dorme, fala, acredita e sustenta lembranças que persistirão (até quando? Só sabem os profetas) pelas normas do Infinito. Trocar palavras entre as paredes do pensamento e viver esse jogo de regras ignoradas e parceiros desencantados, mas que desenvolvem a maré dos argumentos e dizem contar o que outros, talvez, observem de ouvidos acesos no transcorrer das aventuras.

Num sair de casa constante, tais seres movimentam o barco e lutam de tanto esperar. Sacodem seus lençóis de todo dia, reúnem argumentos e padecem as saudades adormecidas a regressar. Acordes distantes da Natureza gritam no coração e alimentam o eito das paixões que permanecem intactas. Lembro bem de quanto as palavras quiseram dizer, no entanto espeto que eu mesmo as possa ouvir nalgum instante, ainda.

Qualidade rara


Sábios afirmam que a felicidade depende de cada um, que se deve evitar o risco de vincular felicidade a pessoas e coisas, afirmação evangélica de Jesus que orienta não guardar tesouro aonde a traça e a ferrugem podem consumir.

No entanto raros conseguem praticar com propriedade essa tal virtude inteligente das normas do viver bem e reunir os dados consistentes do sucesso. Quase na sua unanimidade, os seres humanos atrelam seus sonhos a elementos fugidios, os quais escorregam pelos dedos no decorrer das horas intermitentes.

O que fazer, porém, no sentido de preservar a coragem de viver, ainda que diante das mazelas sociais e crises individuais, exige atitude positiva de constante emergência.

Por vezes a onda parece maior do que todas as resistências, a reclamar valores adquiridos no decorrer dos itinerários individuais, sem contar o espaço vazio e os despreparos da sociedade materialista e frágil, aonde imperam o imediatismo e a lucratividade urgente, pano de fundo e drama existencial diário.

Plantar em solo fértil as tradições da sabedoria milenar, numa prática de salvação pessoal e consolo necessário, regra de ouro da paz interior, chega a grau de compreensão que demanda força de personalidade e objetivos claros de alcançar o infinito.

Por isso, a raridade com que se reveste a obtenção dessa felicidade vem do ser interno de cada pessoa. Ninguém espere vitória sem luta e realização sem esforço. Semelhante a corrida de obstáculos, a existência apresenta séries contínuas de exigências, na aquisição da firmeza de propósitos e sua efetivação definitiva.

De sã consciência, viver é lutar, dizem os mais experimentados. Controlar os instintos e domar as paixões envolve estrutura mental e espiritual digna dos heróis valentes dos contos de outrora. Nisso e a seu modo, todavia, comparecem aqueles personagens anônimos da raça, heróis do povo, de comum ignorados pela fama, os pais de famílias, trabalhadores constantes da arte de sobreviver, e as mães dedicadas na continuidade das famílias, distantes do universo da riqueza, mas guerreiros honestos do drama cotidiano, santos dos templos da salvação.

Não fosse assim e jamais persistiria o desejo de continuar vida afora a epopéia da justiça, da honestidade e da paz, foco principal das estradas coletivas.

Em toda individualidade há o anseio de ser feliz, mesmo que ciente das limitações. Cabe domar em si a fera da fraqueza e renunciar às fragilidades, plantar sementes de amor em solo fértil, apesar dos sacrifícios em que isso importar, sob os elevados custos da Esperança e da Fé.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Balzac


Nas suas memórias, o escritor Dino Segre Pitigrilli conta que, certo dia, numa das visitas do explorador Alexander von Humboldt a Paris, este revelou ao seu amigo Dr. Blanche, conhecido pelo tratamento revolucionário que desenvolvia junto aos doentes mentais, o propósito de almoçar com um dos pacientes medicados pelo célebre estudioso, reconhecido precursor na arte da cura nervosa.

- Coisa nada fácil, nesse momento, Humboldt – advertia o médico. – Mesmo assim, verei o que posso fazer para atender-lhe o pedido.

Dessa forma, logo dia posterior, ao meio-dia, encontraram-se à mesa da refeição Humboldt, Blanche e mais dois outros senhores, um dos quais trajava longa casaca preta, abotoada de cima a baixo, fechada por gravata escura, larga, que repontava no ambiente longos olhares sombrios de homem taciturno e misterioso.

Durante todo o almoço, tal cavalheiro permaneceria fiel à impressão que de início provocara no visitante. Ao chegar, dirigiu-se a Humbolt cumprimentando-o com gestos eloqüentes, indo aquietar-se formal numa das extremidades da mesa. Comeria moderado. Beberia algumas taças do vinho que serviram, sem, todavia, nada pronunciar que lhe identificasse mínimos sinais de personalidade.

O outro senhor, por sua vez, ao contrário do primeiro, parecia um vulcão ativo, flamejante; de cabelos desgrenhados, casaco azul e alguns botões fora da casa, depunha os cotovelos impacientes sobre a mesa, que, a cada instante sob o seu peso, sacolejava de meter medo.

Ansioso, comia em ritmo acelerado. Engolia quase sem mastigar. Falava, falava, e perguntava muitas e insistentes vezes. Impaciente, era ele quem se respondia, antes de receber as respostas solicitadas. Cortava no meio as falas dos interlocutores. Despejava palavras pelos os poros. Emendava assunto em outro, uma história na outra, o presente no passado, e este no futuro.

Tempos após, à hora da sobremesa, Humboldt chamou de lado o seu anfitrião para tecerem juntos alguns comentários a propósito dos pacientes convidados, segundo imaginou.

Nessa hora, indicando com os olhos o segundo personagem, aquele da casaca azul, eufórico, que se multiplicava em palavras, chistes, anedotas e extensas tiradas filosóficas, balbuciou-lhe ao ouvido:

- Muito interessante o doido que me trouxeste. Seu paciente bem que nos diverte bastante, nesta ocasião. Parabéns pela escolha apropriada do que solicitei.

Nisso, apressado, o médico reagiu contrafeito diante da avaliação:

- O quê? Não, não, senhor!

E insistiu a objetar: - Mas, o doido que eu lhe trouxe não é ele, não, aquele que está pensando. É o outro, o da casaca preta – acrescentou Dr. Blanche.

- O que nada falou e ficou calmo o tempo todo? – indagou admirado o célebre alemão.

- Sim, sim! É ele o meu paciente, em fase de bem sucedido tratamento. Vê-se no controle de comportamento apresentado.

– E esse que pensei que fosse ele, então, de quem se trata? – quis saber Humboldt.

- Esse é Balzac, meu amigo Honoré de Balzac, o inigualável gênio da literatura francesa – com isso, ambos, silenciosos, voltaram aos seus lugares a fim de concluir o repasto.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Limites



Sempre há de haver isso, nas restrições do inesperado. Quiséssemos e mesmo assim ver-nos-íamos restritos ao espaço de onde emitimos conceitos e pretensões, e consideramos o que cerca as histórias individuais. A dizer prisioneiros de nós próprios, construímos nisso as mil imaginações que preenchem o estreito território das vidas. Buscar outros meios que não sejam a mera conformação nenhum universo significará, ou existirá, pois.

Ficamos, destarte, a reter os mínimos detalhes do mistério de que fazemos parte. Bem isto, componentes de uma engrenagem monumental, seres de um mundo a que só pouco a pouco compreendemos, se é quê. Quais alfabetos de língua estranha, ou cores de paleta desconhecida, juntamos pensamentos, sentimentos, sonhos, imaginações, sensações físicas, trechos sombrios e aventuras a ermo, numa luta insana de, desta feita, vir a decifrar esse código ingente que nos pede sentido a todo momento.

As literaturas contam frações desse quebra-cabeças, os filmes, as fábulas, lendas, contradições, em forma de pingentes que trazemos ao pescoço do ente que administramos. Prudentes ou afoitos, sonâmbulos ou embriagados, ainda dalgum modo seremos seus condutores às travessias do Destino. Vultos encapuzados, dolentes e sombrios, passamos nas telas dos depois feitos de dúvidas e interpretações, corações cheios de emoção contrafeita de que também somos fagulhas a clarear o solo dos astros.

As palavras em si prestam o benefício de querer contar de tais filamentos do grande todo. Expomos, em traços rústicos, aquilo que, talvez, noutros lugares estejamos distantes de nossas presenças atuais e alimentaremos da saudade o teto que nos agasalhou carinhosamente noutras horas e épocas.

De significados, fiquemos alheios às circunstâncias e logremos esforço até desvendar o segredo que transportamos, conquanto disseram que viver é decifrar o enigma que nos coube, estranhos seres a percorrer as sendas da existência. Daí, tudo que vaga no firmamento são estrelas feitas de almas a pedir resposta todo tempo e que estarão em Si lá um dia.

Lição bem guardada (tradição oral)


Certo dia, no meio do sertão onde habitava, quando às costas trazia fardos e mais fardos de cruéis decepções, ele encontrou a pessoa de compreender melhor as suas urgentes necessidades. A vida clamava por paz, transe que desde muitos dias lhe rasgava as entranhas. Nas poucas palavras que trocou com o maltrapilho empoeirado, vislumbrou a força de quem aprendera na escola do mundo, vagando nos territórios ásperos e ressequidos. Alguém temperado no tacho do sofrimento, desses mestres rudes que andam viajando, fugitivos das generalidades. Sábio simples, filho de gente rude. Doido sem eira nem beira.

Depois, atencioso, guardou os detalhes do ensino que recebeu no inesperado encontro. Na ocasião, uma energia diferente fervilhou-lhe as entranhas. Por tudo, pautou-se pelas condições indicadas de chegar na felicidade.

Tratou de aplicar no dia-a-dia os conselhos, desde a humildade até o trabalho honesto. Respeito. Paciência. Objetividade. Na conta disso, atravessou firme longos trechos de provação, seguro pelos valores sólidos adquiridos no estranho exótico com o ancião.

Após mais de quarenta anos envolto nos afazeres do viver ensolarado, belo dia o homem se reencontra o andarilho que tanto lhe impressionara no passado. E na sombra de frondoso juazeiro, à margem de um desses caminhos estreitos que cortam as matas sertanejas, o velhinho repousava de tarde escaldante. Nisso, ao avistá-lo, o visitante exclamou:

- Grande professor! Que oportuno achá-lo outra vez. Quero contar que segui à risca suas instruções daquela única vez que nos avistamos, há tanto tempo. Lembra da minha pergunta, o que fazer para viver bem e ser feliz sem precisar tirar dos outros a felicidade desejada?

A princípio, o ancião se fez de surdo, com olhos absortos no vôo distante de um gavião peneirador, lá bem longe cruzando a soalheira intensa dos brejos de buriti.

Mas, ante os apelos do interlocutor, resolveu escutar:

- Pois bem, o senhor me forneceu a orientação a qual utilizei para solucionar os meus problemas principais e realizar o sonho que muito procurava. Hoje posso dizer que cheguei à plena realização.

Passaram-se alguns instantes de completo silêncio varridos no chiar das folhas ao vento, enquanto o andarilho apenas olhava a copa das árvores como procurando as razões quebrar o seu distanciamento dali.

- Muito bom isso, meu amigo – num sorriso retrucou o peregrino, cofiando nos dedos a barba esfumaçada. – Muito bom alguém ter ouvido minhas palavras. Porém fique certo de uma coisa, com elas ou sem elas o senhor chegaria ao que chegou, ainda que nunca nos houvéssemos avistado. Pois, de um jeito ou de outro a gente sempre chega aonde quer chegar, se esse querer vier de dentro do coração – e de novo regressou ao silêncio, tal jamais dissesse qualquer coisa antes.

 

quarta-feira, 3 de abril de 2024

O lobo-rei que morreu de amor


Li certa vez, na revista Seleções, a história de um lobo-rei, espécie rara existente nos Estados Unidos, de tipo graúdo, muito esquivo e feroz, que principiou a dizimar os rebanhos de determinada região daquele país. Dada a sagacidade do animal, o esforço de vencê-lo tornara-se obsessivo, porém inútil. Nesse clima de repetidas ameaças e destruição, assustados, os rancheiros da redondeza cuidaram de montar intenso plano de mobilização, a fim de liquidá-lo a qualquer custo.

Muitas armadilhas ficaram espalhadas em pontos estratégicos da circunvizinhança; todo tipo de mecanismo, possível e imaginável; artimanhas diversas se utilizou, sem produzir, no entanto, quaisquer resultados efetivos.

Unidos, os perseguidores seguiam à risca cada rastro da fera, enquanto seus estragos prosseguiam nas fazendas, gerando sérios prejuízos à atividade agropastoril do lugar. Em muitos momentos, eles quase chegaram no seu encalço, dias a fio, ainda que nada de concreto obtivessem.

Após vários meses de investidas, os caçadores descobriram, numa montanha distante, a caverna que servia de refúgio ao lobo e sua companheira, local que lhes protegia da implacável perseguição dos vaqueiros.

Numa noite, enquanto o parceiro saíra à cata do alimento, a fêmea permaneceu na furna, aguardando seu retorno. Vieram os homens que agiram com rapidez, aprisionando-a, imaginando desse modo fazer a coisa  ideal. Contudo isso serviu apenas para espertar ainda mais o lobo, que acrescentou seus ataques ao gado das fazendas, intensificando o terror que imperava. Debalde os caçadores vigiaram a sua volta.     

Como o passar do tempo, todavia, ao notar a prisão da companheira, o lobo alterou seu modo de agir, modificando pouco a pouco as rotinas de proteção que lhe preservavam, cautelas infalíveis, e numa noite de lua, terminou por se entregar de frente aos perseguidores, que o abateram com relativa facilidade, quando se aproximou em demasia da jaula onde haviam posto a fêmea para lhe servir de isca.

Guardei muitos anos essa história, pois ela me despertou na busca das razões para tantos comportamentos da vida silvestre em que animais se manifestam qual motivados por senso moral superior, prenhes de emoções raras, enquanto nós, seres humanos ditos racionais, sobejas vezes, no cotidiano desta vida, agimos a níveis tão baixos, destituídos da menor civilidade, que envergonharíamos qualquer bicho bruto que pudesse nos avaliar. 

(Ilustração: Floresta Amazônica).    

terça-feira, 2 de abril de 2024

Seres simbólicos


Sua mente é o resultado de muitos ontens.
 Jiddu Khrisnamurti

Olhar o mundo e ver o que fomos, pedaços de nós que largamos espalhados pelos chãos e matas do que se foi e de que retemos apenas mínimos conceitos. Longas as noites de agruras e consentimentos. Olhos acesos nas chamas da solidão pessoal, contemplamos os astros. Tantos nadas que, uma vez somados, formarão do pouco o que seremos e distribuiremos nas vidas e nos sonhos que hão de vir. Marcas deixadas pelas encostas e cavernas do Infinito, no entanto meras sequências de desejos de seres que aqui percorrem os trilhos do mistério e aceitam viver assim, vez que outra alternativa inexiste. Estes acumuladores de ontens, atribulados viajantes das dobras do Tempo, isto significamos nas ocasiões.do agora.

Bem que, num faz de conta que transcorre sóis, por vezes aceitam de obedecer ao que pouco ainda conhecem. Põem os pés sobre os picadeiros das dúvidas e desfazem, pouco a pouco, os dias quais novelos de senões e flores. Quiséssemos, qual queremos, e sobreviveremos aos valores de antes, enquanto, bem dentro, vicejam pensamentos, avaliações e vontades. Isto que nos alimenta, contorna os séculos e estamos tais vagos instrumentos de um ser imortal, cobertos de planos que tocarão as bordas da perfeição  lá num momento, e invadiremos a casa do impossível, por fim, até chegarmos ao futuro.

Nessas considerações, quais naves em movimento, percorremos tantos territórios à busca da paz em forma de sinais intermitentes. Nós em nós. Vizinhos, pois, do sentido, construímos uma finalidade em tudo. Quantos objetos, quantas cores, na fama de existir e que ora alimentam fábulas de doces esperanças a ermo, nas telas do instante. Sabe-se, decerto, haver tido origem nalgum gesto essa plena consciência de Si que aguardamos e que nos enxerga passo a passo.

O questionamento das filosofias é que lá qualquer hora deixaremos de apenas repetir o que pensamos e exerceremos o comando de nossas ações perante o silêncio das eras.

(Ilustração: Arte hindu).

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Nas situações-limite


Nisso, nesse assunto, o primordial não é o limite em si próprio, mas quem escapará das situações que se apresentem por mérito do talento de vencê-las, quando atravessar a correnteza dos extremos, através dos mares da dor, da dúvida, solidão, etc.

A tudo que existe corresponde um resultado de ordem prática, real, aquilo em forma de produto ligado às origens, resultante do objetivo que lhe deu início, à primeira vontade, levado ao seu fim derradeiro, nessa empresa chamada vida, existência, ou missão. Não importam as circunstâncias e seus variados matizes; pois, chegado o final, isso também ficará para trás.

O que pesa, no entanto, vem no jeito de encarar os limites, casamento feito pelo hífen da palavra (situações-limite), nos moldes de uma ponte resistente. Os demais fatores valem por detalhes ocasionais de menor importância, companheiros de meio de viagem, coisa dita com frieza, que se torna fundamental só no trato das circunstâncias, na vala comum das ocorrências de rotina.

Assim como o verbo “ser”, que representa estado de permanência, as situações fazem a ligação do que se acha antes com o que virá depois, do ser que define o circunstancial das situações, ligando-as aos sujeitos que permanecem até sumir a estrada, enquanto existe algo, este, sim, que jamais sumirá.

O tempo marcha sempre, parado no mesmo lugar, qual fonte universal de um tônico invisível, imaterial, um sol que a tudo purifica, fazendo e desfazendo, eterna presença da realidade, a luz no fim de todos os túneis por onde se penetrar.

Ou seja, o que vale é o equilíbrio entre as partes, entre a queda e a coisa que cai, entre a queda e a coisa que se levanta, para depois, de novo, desaparecer e reaparecer em outras formas e oportunidades, a essência daquilo que lhe gerou, nas eras silenciosas, infinitas, persistentes.

A propósito desse aparente estado de indiferença com que a natureza trabalha os seus fenômenos e das pessoas terem de cruzar de algum modo problemas extremos, ditas situações-limite, a História registra que Thomas Morus, filósofo inglês vítima de contradições religiosas, na Grã Bretanha do século XVI, já enfermo, sem poder mais se movimentar direito com das forças pernas, ao chegar no cadafalso para ser decapitado dirigiu-se a um dos guardas que lhe acompanhavam e pediu:

- Amigo, ajuda-me a subir, que ao descer não te darei mais esse incômodo.

Quis dizer ele, noutras palavras, que dali apenas sobrariam retalhos de memória elaborados nos padrões da dignidade com que se opôs aos cruéis perseguidores. Depois, então, mais nada restaria dos momentos que fogem, dentro da coerência e dos valores imortais desse chão.

Em gesto simples, contou que o tempo não passa; nós passamos e, conosco, as acontecidos, pelo movimento provisório dos relógios e dos moinhos, iguais ao brilho das ondas de oceano imaginário, no sopro cadenciado de fole que sobra as brasas, na oficina do eterno destino, forjando um bloco único, indivisível no futuro.

(Ilustração: Thomas Morus (reprodução).