segunda-feira, 7 de julho de 2025

As lembranças esparsas


No decorrer da existência, alguns acontecimentos marcantes tendem a fixar raízes na memória, guardando relação estreita com a história pessoal de cada um, quais pespontos do tempo que transcorreu. Sem grandes virtudes, representam, no entanto, sinais da caminhada, estações de sentimentos, laços que revelam notícias de passado sempre aceso nalgum lugar.

A propósito dos eventos desse tipo, vínculos de aparente superficialidade, lembro momentos em Crato, na sua vida eventual, que sumiriam inertes no carrossel das ocorrências fortuitas, não houvesse deles a persistência de energia própria, a retornarem ao pensamento vez por outra, a se apresentam nas margens da visão mental e revelar voltagem e consistência na formação do estoque das lembranças acumuladas.   

A título de exemplo dessas recorrências, revejo a ocasião de uma visita que realizei, criança de oito a dez anos, a uma barraca de brinquedos que foi armada em rua lateral da Praça de Sé. Aquilo se fixou na minha imaginação, acho que em face do tanto de fascínio que sobre mim exerceram as peças expostas naquela noite especial. Apenas um lampejo de momento e permanece até estes dias, décadas transcorridas.

A idade, nessa fase, época das fáceis impressões emocionais, chega de volta por meio de uma outra marca, de quando estudava no Ginásio Pio X, no centro da cidade, e fui conhecer, coisa rápida, uma loja de presentes na rua Miguel Limaverde. Chamava-se o Bazar de Dona Zulmira, nome por si de valor mágico, porquanto dizia respeito a palavra usada nos contos orientais de Malba Tahan, dos autores de minha predileção nesse período, e que ficou de lembrança desse período.

Aquelas prateleiras cheias, de cima a baixo, de brinquedos apreciáveis, criariam painéis nas paredes dentro de mim, a funcionar semelhantes à composição do edifício permanente da pessoa interna da gente. Saberia depois que Dona Zulmira pertence à família de minha mãe, o que torna a lembrança melhor situada pela identificação afetiva do parentesco.

Lembro, também, de uma exposição de desenhos infantis japoneses que a Faculdade de Filosofia do Crato apresentou numa de suas salas de aula, no segundo lustro da década de 60. Trabalhos de beleza rara, que me tocaram o espírito, boa lembrança da época, e aqui comento o seu valor estimativo.

Já na adolescência, quando intensificava a leitura de livros sob a influência de meu Tio Nirson, e minerava preciosidades literárias na biblioteca da Filosofia, ano de 1965, participaria de um curso de jornalismo de curta duração, ministrado pelo frade holandês Venâncio Wileck. Isso despertou, sobremodo, o meu interesse pelas letras a ponto de me levar, logo no ano seguinte, a redigir para o jornal A Ação, da Diocese e, durante sete semestres, vir cursar comunicação na Bahia.

Jamais considerava, contudo, que essas chances despretensiosas abrissem gostos individuais e determinassem aspectos e seqüências inteiras da vida posterior.

domingo, 6 de julho de 2025

Huberto Rohden

 

Em 08 de junho de 1978, viajei de volta a Salvador, de onde viera para o Crato em março do ano anterior. Onze dias depois, nascia Ceci, dos meus filhos a primeira. Nesta segunda vez, morei na capital baiana até o final do ano, dessa vez retornando ao Cariri com ânimo de permanecer por longa data.

Dentre acontecimentos marcantes desse novo tempo de Bahia, recordo de uma conferência proferida pelo pensador Huberto Rohden, a que assisti num auditório situado na rua Carlos Gomes, que (se a memória não pratica das suas) pertencia ao Sindicato dos Engenheiros, aonde bem antes ouvira também o deputado Lysâneas Maciel, na cruzada nacional de redemocratização que lhe custaria o mandato e a carreira política.

Na ocasião, Huberto Rohden viera ao Nordeste inaugurar a TV Gazeta de Alagoas, sendo condecorado pelo governador Vivaldo Suruagy. No caminho, passara por Salvador e, acompanhado de seu editor, divulgara suas obras em noite memorável.

Esse autor, natural de Tubarão, Santa Catarina, nascido a 30 de dezembro de 1893, no povoado de Braço do Norte daquele município, escreveu dezenas de livros de cunho espiritualista, enfoque que denominou filosofia univérsica, de abordagem pedagógica, que visa orientar os seres humanos na busca do autoconhecimento e da revelação, em si, dos mistérios da realização plena de reais potencialidades.

Rodhen, egresso da Igreja Católica, onde recebera formação através da Companhia de Jesus, veio de romper com o clero e manteve-se a divulgar idéias de cunho pessoal, voltado aos conceitos cristãos, sem, contudo, deixar de estudar princípios da espiritualidade oriental. Marcou a intelectualidade brasileira pelo destemor com que abordava temas pouco encontradiços nos autores de sua época.

Quando acompanhava sua fala, rica de conteúdo ético e religioso, algo que me chamou a atenção, a causar espécie em minha imaginação: Via na sua pessoa como que a face superposta de uma outra, qual se transfigurado, a evidenciar no rosto traços evidentes de força luminosa, durante toda a conferência. Aquilo aguçou meu instinto de avaliação, porém nada pude concluir além da pura constatação do que ora quero aqui consignar.

Há, nas livrarias, diversos livros de Huberto Rohden, dentre os quais já li: A educação do homem integral, Rumo a Consciência Cósmica, Tao Te King (numa tradução sua), Deus, O Homem e o Universo, Porque sofremos, De alma para alma e Orientação para a Auto Realização.

Eis aqui uma afirmação que bem define o seu pensamento: Sem o encontro consigo mesmo nenhum homem realizará o seu encontro com Deus.

A zero hora do dia 07 de outubro de 1981, aos 87 anos, Huberto Rohden deixou este mundo, em uma clínica de São Paulo, cercado de amigos e discípulos, afirmando por derradeiras palavras: Eu vim para servir a Humanidade.   

sábado, 5 de julho de 2025

Seres exóticos

 

Dotados de todos esses talentos, ainda assim perseguem fantasias e plantam árvores inexistentes pelas calçadas e cidades. Às vezes, reconhecem serem que tal e atravessam os desertos quais sobreviventes de grandes crises no tempo lá atrás. Acondicionados, pois, dentro desses acolchoados brilhantes, transitam pelas horas feitos escravos de si mesmos, e gostam de ser dali deitados na lama dos desejos. Fazem de um tudo. Sintonizam as faixas cotidianas, alimentam discursos inexplicáveis, esgotam tanques e tanques de tratados monumentais, estirados fieis pelos dentes dos dragões em volta.

Conversam, ouvem os pássaros, o vento, as sirenes das ambulâncias, das viaturas policiais, tais pedestres em ruas escuras, nas noites das capitais. Querem dos céus a salvação, todavia afeitos aos instantes que lhes fazem a cabeça no devorar das entranhas. Às músicas guardadas nas máquinas, abandonadas pelas gerações, veem os cães, gatos, patos, capivaras, nas telas a fervilhar as linguagens só agora esquecidas.

Apreciam lendas, roteiros turísticos, antigas ruínas, símbolos, vestimentas esquisitas, tatuagens espalhadas pelo corpo atormentado das expectativas inúmeras. Sobem, descem escadas, ladeiras, parques de uma civilização que nem existe que seja.

Nessa busca desarvorada, sobrevivem aos séculos e escondem entre as visões o que sumiu no anonimato, nas heranças, nos pactos, isto em velocidades sempre inesgotáveis. E eles vão cabisbaixos, ansiosos, autônomos, cercados desses códigos que correm pelo juízo de vez em quando. Encapuçados entre dois hemisférios, padecem do sonho escamoso das consciências que os têm.

Bom, instantâneos de ambição os retém aos sóis, essas massas informes de contradições e prazer, e satisfazem os avanços da tecnologia que criaram, blocos informes de pensamentos e sentimentos, chamas e dúvidas, habitantes que foram doutros universos de que pouco ou quase nada conhecem, porém deslizam afoitos pelas trilhas dos contentes, e vivem audazes os momentos inevitáveis do dia.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Mar de variações


A insistência com que os acontecimentos transformaram a criação original de tudo hoje carrega em si o desejo de multidões inteiras, na fome de continuar aqui enquanto as peças caem dos tabuleiros e já invadem sem dó os destinos em volta. Por mais que recuperam as possibilidades anteriores de renovar o mundo, mesmo assim nem sempre seriam certas as vitórias desses exércitos adormecidos na alma das criaturas em movimento. Meros ritos de tradições até então desconhecidas, prevalecem, contudo, as antigas intenções de, outra vez, delimitar o espaço e guardar na inconsciência as normas desde nunca esquecidas de força e medo.

Nesse poder que têm as falas de reverter os segmentos de aonde poder chegar um dia crescem pelas ramas e desaparecem nos desertos em volta. Somam lembranças sucessivas de tantas histórias, contadas e depois esquecidas, que o jeito de esquecer significa agora nada além da vontade dos que desaparecem sem deixar quaisquer sinais. São vistos nas ruas e, em seguida, não voltam a ser notados. Eles, os personagens de vidas e vidas. Às vezes aclamados em praça pública, porém largados de fora ao primeiro desassossego coletivo. Tais figurantes de um circo imaginário, espécies de assombração do Paraíso, sustentam o pouco que restavam de coerência e mergulham nas águas do Infinito, e permanecem ocultos no porão das maravilhas.

Isto a provável compreensão das existências desses seres quais nós próprios, feitos manequins de palha atirados ao vento da sorte. Quer-se encontrar as portas do sentimento e terminam cercados de ilusões, por isso desfeitos em números tão só inexistentes. Submissos aos instintos, padecem do transe voraz das gerações e, sem querer, submergem num oceano de aventuras errantes, observadores contumazes das paisagens e dos delírios sórdidos.

A servidão ao inevitável, portanto, passa de percorrer, de olhos acesos, a tela do horizonte, na ânsia mordaz das feras entontecidas. Ah, humanos que fossem ser-se-iam aves de rapina das montanhas distantes, no vácuo da imaginação.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Autodeterminação dos povos


Perante a atual política norte-americana de trazer à América Latina seus efetivos militares para resolver problemas nacionais da Colômbia, ressurgem lembranças preocupantes do tempo em que havia os conselheiros militares no Vietnam do Sul, no Camboja, Laos, Brasil, Chile, com resultados pecaminosos.

Medidas que dizem respeito à violação da livre iniciativa dos Estados nacionais implicam na redução da soberania, impondo política externa fracionada ao sabor de nações mais poderosas, o que resulta em retrocesso nas conquistas de séculos de lutas e sofrimento, no binômio do fraco contra o forte, no direito da força bruta em detrimento dos avanços igualitários posteriores à Revolução Francesa.

Ainda que situações conjunturais imponham atitudes de força, isso compete aos líderes e às instituições dos povos livres e suas organizações políticas individuais.

A concepção de uma nova ordem produzida nos transes posteriores da Segunda Grande Guerra reeditou a Doutrina Monroe, que antes implicara na invasão orquestrada das nações americanas, pretexto da salvaguarda democrática do continente, segundo definia.

Em mensagem ao Congresso americano, o presidente James Monroe considerara serem os Estados Unidos contrários ao colonialismo europeu, com base no pensamento isolacionista de George Washington, de que a Europa tinha um conjunto de interesses elementares sem relação com os nossos ou senão muito remotamente (Discurso de despedida do Presidente George Washington, em 17 de setembro de 1796), e ampliava o pensamento de Thomas Jefferson segundo o qual a América tem um Hemisfério para si mesma, jeito de estabelecer o conceito de um continente americano como o seu próprio país.

No entanto mudaram os tempos. Experiências múltiplas concederam o mérito de cada nação independente fustigar os seus próprios impérios da lei, aspecto dos novos tempos de graves decisões.

Por isso, as providências estadunidenses ora adotadas de avançarem nas fronteiras externas à sua federação reduzem as margens de autonomia dos povos latinos, o que lhes reedita triste e ilegítimo papel de fiscal dos demais povos das Américas, motivo de apreensão e escrúpulo, visto o preço pago nas ações anteriores de épocas recentes, já na segunda metade do século XX.

terça-feira, 1 de julho de 2025

O instinto das palavras


Qual quem acorda de longo sonho e sai a procurar o que se dera, tocando as paredes da memória na procura do sentido daquilo quanto há pouco sonhara, palavras são assim, ânsias constantes de rever o que ocorre dentro dos pensamentos que talvez sejamos nós. Tais desejos incontidos, saem feitas significados na busca de justificar as existências, valem de meros sorteios de uma loteria imaginária. Enquanto os pensamentos, esses nascem aflitos dos sentimentos e a elas sobrevivem à custa desse impulso inevitável de gravar nas horas razões que as justifiquem.

Vez por outra, na fome de alimentar o Destino insaciável, elas querem deter a velocidade das lembranças, no entanto ainda prisioneiras da causa que lhes deram origem. Trazem detalhes nunca levados em conta, porém só agora necessários, a satisfazer vidas em movimento. Inscrevem aspectos antes passados em branco, sorrisos, prazeres, alegrias, isso numa insistência jamais considerada naquelas ocasiões iniciais. Carregam consigo, pois, um fulgor de poder sem par. Fortificam aspectos das pessoas sob o âmbito das saudades deixadas pelos céus do coração.

Palavras, palavras, palavras... Contos vários de valor inigualável ao poder da consciência que nos carrega nas vísceras durante toda Eternidade. Longe delas, o que seriam as emoções, os instantes prazerosos das noites, dos dias em queda livre através dos firmamentos?! Isto a ponto de demonstrar que seriam elas quem existisse, não nós, somente. De todas as cores, formas, deslumbramentos, constituem o dizer das multidões mais irreverentes, espécie de trilha do mistério onde habitamos afoitos e interrogativos.

Por isso, quanto empenho no dizer das criaturas humanas espalhas pelo Chão. Quase a descrever de si mesmas o que convém, o que pensam e esperam desse vazio multiforme das contrições ao nosso lado. Entes próximos dos enredos fugazes a transpor muralhes infinitas, elas sustentam nas próprias garras os derradeiros motivos de estarmos aqui jornadas afora.

domingo, 29 de junho de 2025

Numa música suave


Quem ama desses amores de não ter tamanho e sente o peito crepitar da mais ardente fogueira, espécie de dor e prazer sem conta, de que se quer fugir, porém recusa por conta das dimensões do mistério a envolver tudo em volta, a esses resta a pergunta descomunal de quando se reunirá em definitivo com a pessoa amada, querendo ser único ente pelos milhões de anos eternos do depois, e jamais sair de perto um do outro. Essa pergunta, certo dia esses personagens responderam com o amor definitivo... Num conto de consequência permanente, despertaram nos braços da fusão dos seres, amálgama das individualidades, esperança dos que aspiram a constância do maior dos sentimentos.

Depois de uma noite chuvosa do mês de junho com neblinado constante por seguidas horas, veio nascer sol radiante, a iluminar as planuras do mundo. No peito, corações doridos, mas felizes...

Contudo, alta madrugada, o frio sorrateiro tudo envolveu, singrando mares, sinais da pura felicidade cantada gerações adentro. A movimentação do sono os acorda, enriquecendo a paisagem da alma de nutrir o universo interior. Aonde olhar, marcas de passos na superfície macia dos corações trepidantes.

...

Enquanto pessoas chegavam para participar do colóquio, ele organizou os pensamentos das lembranças da noite. Seus olhos ainda queimados de sono a deixaram dormindo, linda, na mesma cama dos abraços dadivosos.

Saíra e levara consigo saudades sacudidas ao vento da manhã a circular pelo pescoço, no rosto, nos cabelos, ao dia claro, e características semelhantes aos amores mais vivos, na beleza da virtude sertaneja.

Afinal passaram dias pródigos de apreensões. A noite representara a cicatrização das feridas antes abertas e pegajosas. Ele preservou na memória o traço escultural das curvas do seu corpo que há pouco afagara, cheiroso, leve, brisa bailando no desenho das nuvens, na festiva manhã.

O dia amanhecera, pois, com imagem dela a se superpor na consciência, através da luz refulgindo em milhões de pedacinhos espalhados na estrada. E quando o espaço reuniu o tempo num só beijo indivisível foi que notou as impressões da noite no dia especial no formato de flores, soma das duas metades em completude absoluta, para sempre num só ser assim.