quarta-feira, 31 de julho de 2024

Tempos atuais


Quais quem busca a si nas outras histórias dos andarilhos deste Chão, preenchem seus calendários nas águas turvas de todo momento que passa. Menos dias, mais dias, as nuvens se desfazem na mesma velocidade com que vieram, deixando marcas profundas de indivíduo a indivíduo. O mais significativo são as leis inextinguíveis, eternas, nas marcas deixadas em toda criatura à cata da evolução.

Nem de longe até aqui realizou-se o quanto dos desejos de Paz. As razões que preenchem as normas representam apenas fome de poder, riqueza e vaidades. Conquanto sejam tal e qual outras tantas gerações, isto jamais justificará o motivo de estar aqui. Esquecidos do a que vueram fazer, de evoluir, portanto, tão só dessa fome de feras sobremodo os líderes fazem do presente as causas inevitáveis dos depois.

O quadro é este, todavia certos somos do significado perfeito que existe e permite, inclusive, tais modos esdrúxulos de revelar o sentido. Admitir que haverá um momento de total coerência diante da justiça universal isto conta de certeza no coração das pessoas. Reunir as virtudes e tanger a caravana pelos longos desertos do anonimato de todo instante, e sobreviver às custas do parto, eis o senso das ferrenhas existências.

A face dos céus mostra os frutos do que até ora foi plantado. As escolhas bem que indicam aonde iriam, então. No entanto nada aconteceu das esperanças vivas a encher de alegria o teto das alturas na consciência dos que haverão de construir o novo que logo ali nos aguarda. Dentro de um realismo inevitável, porém, de festas far-se-á o futuro, livre das distorções largadas no eito perdido da História. Aflições à parte, vivemos agora horas esquisitas de repetições da ilusão em fase do desencanto.

De tal jeito houve de ser o que aconteceria, na medida do amor e do suor que possam nortear os destinos dos que habitam este lugar tão bonito.

domingo, 28 de julho de 2024

O que tem a contar


Depois disso tudo, dos tantos arranjos de orquestra, das dunas cheias de sóis, dos becos nas madrugadas frias, o que resta a dizer?! Foram tantas frestas abertas ao tempo que agora nos sobra de adormecer sobre os trapos e sonhar outra vez com os melhores sonhos. Quantas falas estridentes, sons de máquinas esquecidas no eito das preocupações, caravanas silenciosas pelos desertos afora, enquanto a Natureza dadivosa insiste em compreender o ser fantasmagórico que vaga pelos corredores das noites. O que foi mesmo isso que chamaram de Civilização? A que produzir, que alimentar de experiências guardadas sob o tapete das solidões em grupo? Bem esquisito aquilo que falavam de reunir todos os livros em equipamentos e revirar as visões do Paraíso.

Nem de longe, pois, se imaginava esse mundo que aí clareia nas telas e nos automóveis, nos tetos das catedrais, no arsenal dos países em guerra. As multidões correm à procura da sorte grande, vultos assustados de soberanos e vestais, parceiros da mesma angústia das letras e dos números. Uns que aos outros interrogam no espírito desolado que lhes habita os escuros. Enquanto que mistérios ainda persistem ignorados, entontecidos, na esperança das alegrias que virão logo a seguir.

Porém, que tempos esses, passados de infinitos milênios neste anonimato da Criação... Versões inesperadas, que preenchem o sentimento de um amor escondido nas aldeias lá distantes. Viver, afinal, loteria dos desejos, vértice das horas em movimento. E pensar a que tudo, enfim, se destina?!

Bom, coerência das palavras significa, assim, fragmentos da herança mantida no senso das criaturas. Muitas, que nem podem vir à tona, presas no porão do Infinito de almas lavadas nos riachos de histórias de Paz e dias felizes. Há, sim, o que dizer nas dobras do amanhã. Cabe, apenas, firmar o pensamento e transformar ausências em novas estradas, porquanto a calma de agora significa bem mais que luzes no coração do que ora existe.

sábado, 27 de julho de 2024

O alpendre


Na frente da casa grande do Tatu havia uma calçada alta com uma varanda coberta de telhas situadas sobre alguns balaustres de madeira e ponto de alguns bancos sem encosto, ali defronte ao quarto do meu avô com janela que dava para o terreiro principal. Dessa varanda, levantando a vista, estava, na paisagem, a bagaceira e, num outeiro, a capelinha de Nossa Senhora da Conceição, próxima de onde morara minha família.

Ao lado, o engenho. Entre este e a casa grande, o que chamavam de beco, passava a antiga estrada de Lavras da Mangabeira a Caririaçu, que incluía no curso a estreita parede do açude grande, avistada logo que transcorria o beco.

Nas noites escuras do sertão, assim que o firmamento abria o manto das estrelas, começava a movimentação no terreiro. O alpendre se tornava uma festa a cada noite. Vinham os moradores da fazenda, que visitavam os da casa grande, sentavam nos bancos, pegavam lá de dentro as cadeiras, ou permaneciam sentados no chão, com pernas penduradas para fora da calçada.

Meu avô costumava ficar numa cadeira de couro apoiada nos dois pés traseiros e escorada de encontro à parede. Punha as mãos cruzadas por trás da cabeça e arriava o corpo no mesmo sentido vertical da cadeira. Ele falava só o necessário. As conversas rolavam nas falas dos demais, os puxadores de assunto. Vinham, então, perguntas, notícias de longe, de perto, comentários, anedotas, histórias de Troncoso, intercaladas pelos sons distantes das imediações, trilado de grilos cantadores, latidos afastados de cães, pios noturnos de corujas e outros pássaros noctívagos, chocalhos de gado no curral, berros de animais. Nenhuma iluminação, a não ser a lua, nas suas noites, ou as estrelas, no céu. Luzes da casa clareavam apenas a sala, com um farol a querosene. Isso às vezes compensado pelo riscar de fósforos e cigarros brabos dos caboclos, querendo também espantar as muriçocas que mordiam insistentes, combatidas na fumaça do estrume incandescente do gado, que acendiam nessa finalidade.

No interior, os cômodos permaneciam às escuras e fechadas as portas e janelas que davam para o quintal. Os viventes todos achavam motivos de sobra no alpendre.

Naquelas noites, que iam, no máximo, até 21h, jamais faltavam lendas e contos mal-assombrados, atiçando a imaginação dos presentes. As partes mais assustadoras apareciam quando o sono começava a descer asas sobre as crianças, dispondo-as a procurar, na claridade dos dormitórios, o conforto de pessoas adultas. Eram a atração principal das noites, essas histórias. Os narradores consagrados se reservavam para a ocasião e apimentavam os enredos da matéria prima recolhida, sobretudo, na tradição das localidades em volta. Forçados pelo tema de almas e visagens, os saraus como que cumpriam o papel de levar a garotada às redes e aos lençóis, os quais, nas noites mais frias, acabavam ensopados de susto e mijo. Aos poucos, em bandos, os visitantes, partiam rumo aos ranchos de taipa, que lhes refariam o ânimo do trabalho de bem cedo, no dia seguinte, nos afazeres do campo.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

O ermitão e o salteador


Um ermitão, que vivia longe desse burburinho de vilas e cidades, certa feita, abordado por perigoso salteador de estradas, dele ouviu essas palavras:

- Sei que o senhor é homem de fé e que tem merecimento perante os olhos de Deus. Por tal razão, peço que reze para eu deixar a vida errante em que me habituei. Quando isso conseguir, fará de mim um grande amigo. Mas, no caso de seu pedido não surtir os efeitos que desejo, virei aqui para tirar a sua vida. Fique ciente disso.

Depois, o bandido seguiu na mesma vereda em que se perdia, sumindo por longo tempo.

Transcorridos meses, voltou ao reduto daquele religioso, à busca de conselhos, o que ouvia com atenção. A visita terminava, quando se lembrou do que antes dissera:

- Continuo esperando pelas suas orações para que escape da vida criminosa e dos desmandos que tenho praticado; senão, o senhor é que pagará quando eu aqui vier, na próxima oportunidade. Destruirei tudo que achar e, de quebra, lhe matarei.

Muitos dias passados, e outro dia o marginal reapareceu no refúgio do ermitão. Trazia muito aflorados seus perversos instintos e chegou no propósito de executar a sentença contra aquele que lhe recebia com bons modos.

À presença do importuno, o santo percebeu a gravidade dos acontecimentos. O salteador, embriagado, manifestava soberba agressividade, destruindo o que via ao seu alcance.

- Quero cobrar nosso compromisso – garantiu. – Nada melhorou para mim nesse meio tempo, desde que lhe avistei na derradeira vez. Coisa nenhuma diferente com suas rezas, e chego disposto a receber a conta do desinteresse para me tirar dessa vida perversa.

Falou e avançou contra o ermitão em gestos de intensa brutalidade, roubando quaisquer chances de fuga.

Em vista da iminência de responder pela maldade do facínora, o religioso argumentou: - Antes me permita que eu proponha um acordo -- , e foi dizendo: - Próximo daqui, cavei minha sepultura. Caso consigamos juntos remover a pedra que deixei fechando a sua entrada, pode me atirar lá dentro e, assim, ficará tudo resolvido. Porém, se não conseguirmos, em definitivo me deixará livre de toda perseguição.

O agressor pensou qualquer coisa e aceitou a proposta. Daí, ambos se dirigiram ao local estabelecido, iniciando o esforço de retirar a pedra. Enquanto o salteador buscava com todo empenho deslocá-la, a todo custo o ermitão resistia buscando evitar a remoção. Os dois se demoram algum tempo na peleja, até o marginal perceber a atitude contrária do parceiro e dizer:

- Como posso afastar essa pedra enorme, se o senhor aplica suas forças para impedir que eu alcance o objetivo? – indagou revoltado.

- Bom, eis o que venho fazendo, desde que lhe conheci –, retrucou o ermitão. – Enquanto rogo a Deus por sua transformação, o senhor em nada contribui, mantendo-se na perdição, esquecido de exercitar a virtude. Para se modificar os equívocos, torna-se necessário mostrar serviço, produzir frutos. Há que se agir em sentido adverso às tendências inferiores, contrapondo, aos atos negativos, resultados positivos.

Naquela hora, o saltador viu-se tocado pelas orientações do amigo e tratou de enxergar a realidade, transformando-se, desde então, numa pessoa honesta e ordeira.     

(Original de Gonçalo Trancoso).     

(Ilustração: Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve).

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Baal Schem Tov


O iniciador do Hassidismo, braço místico do Judaísmo, ele, Israel Bem Eliezer, o Baal Schem Tov, de quem pude conhecer mais através do livro Histórias do Rabi, de Martin Buber, foi um místico respeitado e realizador de grandes feitos na Europa do Leste. Nascido em Medzhybizh, Ucrânia22 de maio de 1760, destacou-se como líder religioso, xamã e curandeiro. Dentre suas afirmações consagradas, vale considerar esta: ... antes de orar pela redenção geral, deve-se orar pela salvação pessoal de sua própria alma
 (Wikipédia)

Nesse livro de Martin Buber, existe trecho que ora transcrevo, na intenção de considerar alguma das características de Baal Schem Tov, a saber:

A imagem. Certa vez o Baal Schem convocou Samael, senhor dos demônios, para tratar de um assunto importante. Ele o intimou: - Como ousas convocar a mim? Até agora isto só me aconteceu três vezes: Na hora junto à Árvore, na hora do bezerro e na hora da destruição do Templo. – Baal Schem mandou os discípulos descobrir a testa. E Samael viu em cada fronte o sinal da imagem pela qual Deus cria o homem. Fez o que lhe exigiam. E antes de se ir, disse: - Filhos do Deus vivo, permitam ficar mais um pouco ainda e contemplar vossas frontes. Editora Perspectiva, São Paulo SP (1995), pág. 120

Dado a situações transcendentes, o Rabi nos apresenta percepções por demais inesperadas do ponto de vista comum, oferecendo lição de extrema profundidade quanto aos valores espirituais, tais esse momento acima. Quer-se crer a importância de avaliar o nível do personagem convocado pelo Mestre, dado seu poder e conhecimento.

O que, no entanto, melhor chama a minha atenção nesse pequeno episódio fica por conta do poder da Consciência que os seres humanos trazem consigo, muitos que insistem ignorar, contudo. Isso em vista do império da virtude que os faz dignos da imensidão de, lá um dia, serem salvos em definitivo, graças ao sinete Celeste que já carregam consigo na própria fronte.


Tempo certo de viver (conto zen)


Ainda pequenos e eles revelaram igual vocação para a vida religiosa. Filhos de pais pobres, os dois irmãos venceriam com ardor a oposição firme da família e buscariam o convívio dos monges, nas encostas íngremes em que se destacava dos penhascos, de acesso quase impossível, o secular monastério da província chinesa onde habitavam.

Empenhados que chegaram, prosseguiram afeitos ao serviço contemplativo, ora ordenhando as cabras, cumprindo tarefas na lavoura, nos jardins, na limpeza das celas, petição de esmolas, viagens, cuidando de canteiros, videiras, orações, meditação, cozinha, banheiros, etc.

Exímios instrumentistas, cantavam e tocavam nas cerimônias fúnebres e nos dias de festa; sempre alegres, dispostos, amigos.

Naquele lugar de tradições, conservadas sob sete chaves em armário vetusto, existiam algumas peças de rara porcelana, patrimônio só entregues ao zelo dos noviços de maior confiança.

Lá um dia, o mestre superior houve de empreender distante missão, largando por algumas semanas a rotina comunitária.

Ao irmão mais moço coube, nesse período, a manutenção das louças, quando, pesados seus esforços, escapuliu-lhe dos dedos fina tigela originária de perdidas  dinastias e presente do Imperador aos primeiros devotos.

Gelado, sem cor, arrastando magoados temores, o discípulo correr à procura do irmão mais velho e contou-lhe aos prantos o infausto sucedido. Este levou o caso ao chefe do templo, que debulhou extensas admoestações e ameaças.

Passados alguns dias, o superior retorna ao mosteiro. Logo no dia seguinte, antes mesmo de entrevistá-lo o chefe do tempo, compareceu à sua presença o irmão do noviço que quebrara a preciosa tigela, para indagar:

- Mestre, toda pessoa que vem a este mundo passa, ou não, pelo fenômeno da morte?

- Morre, sim, qualquer de nós. O próprio Buda vivo cumpriu dita experiência – respondeu.

- Certo, compreendo – seguiu o noviço: - E as coisas, mestre, entes esses que habitam as outras existências, animais, vegetais, minerais, objetos inanimados, também descrevem o itinerário da morte?

O mestre, percuciente, fixou os olhos absortos no vazio distante e, depois de poucos momentos, definitivo retornou:

- Sim, sim! Toda existência temporal cumpre as três fases limites de nascer, viver e, um dia, desaparecer nas sombras inescrutáveis da ausência de qualquer forma.

- Por isso, diante do desaparecimento das gentes, bichos ou coisas, cabe-nos, sem revolta ou constrangimento, aceitar o que acontece nas surpresas desta vida, assim podemos concluir? – prosseguiu.

- É a pura verdade pensar do jeito que disseste.  

Bem nessa hora adrede preparada pelo futuro monge, sorrindo maroto, ele abriu as bordas do hábito e apresentou ao superior os cacos desfalecidos da antiga tigela que transportava às escondidas junto do corpo, daí afastando-se reverencioso.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Desordem no caos

 

Sempre que me deparo com essas notícias falando de voos espaciais fico de orelha em pé, a lembrar do que falta fazer no mundo e dos limitados recursos que existem, vindos da única fonte, a Natureza, mãe comum de toda a humanidade, destinados a tanta coisa inútil e perdida. Os donos do poder determinam as prioridades em termos dos gastos desses recursos... Deles, que se apropriam dos bens de produção nesse quadro, resulta o panorama do Globo, a decantada ordem mundial transformada num poço de problemas sem solução, desigualdade e desavenças, no entanto o único dos mundos, pois só dele dispomos a fim realizar as existências, gemendo ou chorando, cantando ou rindo.

A cena também indica outros fatores da desigualdade, na hora em que os poderosos desenvolvem seus projetos de conhecer a consistência dos outros planetas do sistema solar, e as populações padecem. Cá no chão, a fome se alastra a olhos vistos através dos mecanismos de manipulação estabelecidos por força da tecnologia. Economias, finanças, políticas, não partilham das intenções sociais. Seres da mesma raça se encastelam e escravizam seus pares.

Lá do reino da ilusão, os meios de massa trabalham forte no sentido de neutralizar a impressão deixada pela festa do caos generalizado. As periferias dormem, todavia sabendo de tudo por causa do redemoinho que se propaga no vento. Nisso, a civilização do prazer material em que nos transformaram reclama providências.

Dentre os itens principais do consumo se veem sintomas provisórios dos dias atuais: drogas, armas, luxo, bebidas, medicamentos, pornografia, prazer, dor, prazer, desequilíbrio, fanatismo, violência, terrorismo, de grupo, de estado, ansiedade...

Muita gente balança a cabeça quando se fala em mudar. Porquanto espera cair do céu renovação. Imagina esperar mais um pouco para realizar em si a transformação, motivo das grandes possibilidades que restam. Permanece impassível frente aos monarcas e televisão, na expectativa dos sonhos bons virarem ordem, esquecida do essencial que nascerá de cada ser pelo trabalho da Consciência. A seguir desse modo, quem dirá aos reis da Terra de sua nudez?

(Ilustração: Dragão, mitologia).

A conformação


Na Palestina, depois que Jesus fora executado e as coisas pareciam retornar à antiga normalidade, um dos seus apóstolos, de nome João, não se aquietava, a procurar canto, qual dizem dos que lutam e nada conseguem para se adaptar às situações difíceis.

Durante as semanas posteriores, sua vida era só amargura, sofrimento por cima de sofrimento. A ferida aberta com tamanha perda parecia crescer cada dia um pouco mais. Aonde seguisse, levava consigo a presença do Mestre divino, fugindo-lhe do ânimo o gosto de viver. Pelejava, pelejava, e ninguém conseguia consolá-lo. Tornara-se, por isso, a maior preocupação de amigos e familiares.

Alguém lembrou, então, de uma pessoa, Maria de Nazaré, a quem devesse procurar, na busca de palavras de conforto, pois se revelara exemplo perfeito de resignação face à inominável tragédia que também a vitimara.

Destarte, João viajou ao lugar em que vivia a mãe de Jesus. Numa demorada conversação dos dois, a santa mulher indicou a João que chegasse até o Mar da Galiléia, porquanto, nas suas margens, acharia motivo suficiente a recobrar forças e firmeza de tocar a vida.

João aceitou o conselho e aproximou-se das praias daquele mar, em que permaneceu algum tempo. Relembrava os passeios felizes de vezes anteriores, absorto nos incertos pensamentos da dor. Certa tarde, preso à beleza das águas azuis, se deixava inundar de gratas recordações, quando avistou, deslizando em sua direção, no fino espelho das ondas, o vulto magnânimo de Jesus.

Um perfume de raro incenso, nessa hora, emanava pelo ar, idêntico àquele experimentado junto da cova sagrada, cercanias de Jerusalém, em que deixaram o corpo do Mestre.

Perante o inesperado, quis fraquejar sob o peso das sentidas emoções. Fechou os olhos, na mais fervorosa contrição, e ouviu, nos refolhos da alma lacerada, translúcido, o falar do verbo de Deus:

- Estimado João, jamais queira imaginar que habito longínquas paragens, afastado de quem amo. Saiba, no entanto e sempre, que quando alguém chamar com sinceridade, ao seu lado me acharei, na eternidade dos sentimentos verdadeiros, contra qualquer obstáculo; pois não há distância entre os que se amam.

Dali em diante, tocado pelos eflúvios da inesquecível revelação, o apóstolo se rendeu ao abençoado reencontro e entregou-se à força da conformação para realizar o trabalho evangélico a que viera na Terra.

Nota: História ouvida de Raimundo Pereira da Paixão.

(Ilustração: Reprodução (Aldeia de Nakba (Palestina).

terça-feira, 23 de julho de 2024

As tantas épocas

A cultura desses tempos eletrônicos, rádio, discos, festivais, gerações, marca profundamente os idos e vividos que agora insistem reviver sem largos esforços. Desde meu tempo de criança, quando no sítio meu avô dispunha de uma vitrola a corda, da RCA Victor, presente das filhas que moravam no Rio, até dias atuais, sigo fielmente uma trilha sonora clara e acessível. Nos inícios, da Era de Ouro do rádio no Brasil, ouvíamos Carlos Galhardo, Orlando Silva, Francisco Alves, Luiz Gonzaga, Emilinha Borba, dentre outros, em discos de cera de 78rpm executados com agulhas que serviam apenas a uma só execução. depois, já em Crato, foram as fases intermediárias entre o romântico estrangeiro e nacional e o clássico, secundadas pela música de protesto da década de 60, os festivais da canção e a invasão estrangeira do rock, contry music americana, seguidos pelo Tropicalismo, a música rural, os cearenses, os mineiros do Clube da Esquina. Muitos e quantos ritmos, numa interação da música baiana com o jazz, o rock nacional da Jovem Guarda; isto aos dias atuais, quando passaríamos a usufruir da capacidade armazenativa das playlists inesgotáveis, junção de tudo, afinal, herança fabulosa do que se produziu e produz no mundo inteiro. Certa persistência e existirá um jeito próprio de rever o que existe guardado nas gravações qual jamais antes.

O que distingue bem o acervo fonográfico do conteúdo das bibliotecas representa essa vitalidade do som ao alcance de todos, enquanto os livros permanecem apenas depositados em monumentais edifícios, quase nunca ao dispor senão dos pesquisadores. Fôssemos relacionar os grandes nomes da música, eles preencheriam horas e horas de sonoridade viva, já a literatura exige mais esforço individual e a vivência isolada dos pesquisadores.

Mesmo assim, vistos os momentos passados, a gente também pode refazer o percurso das épocas por meio dos livros que as significaram, autores de inegável força de nos haver influenciado e servido de companhia nas madrugadas insones face às circunstâncias e solidão das horas. Riqueza sem par contém a cultura humana durante os itinerários de expectativas, nas muitas fases, companhia inigualável desses dias que marcaram nossa história e somem, pouco a pouco, na saudade que resta intensa.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Universos em nós


De dentro de algum lugar vem a vida que se manifesta em tudo. Fragmentos de um Eu eterno vagam livres nos próprios casulos que o somos, a contemplar os mistérios do Chão em volta. São essas afirmações que pedem sentido, no entanto. A todos. esse mesmo dom de ser durante a vida. Unidades que crescem no poder de interpretar as visões descrevem suas existências, dotando-as de significados parciais, enquanto desvendam o pomo da Eternidade e sobrevivem aos deveres primitivos. Vezes sem conta, porém, refletem tão só as limitações dos fenômenos que vivenciam e nisso constroem histórias a desaparecer na voragem dos tempos.

Seres, seres continuados, seres, contudo; marcas deixadas aqui pelo firmamento, nas encostas do Infinito; formas rústicas doutras civilizações, e preenchem de relíquias heranças do passado. Eles, nós, quem o formos, neste limbo da sorte, experimentos dos deuses e frutos de único e supremo Senhor.

Na medida, pois, dessa busca de entendimento perlustram o Tempo e maquinam atividades, guerras, monumentos, quermesses, jornadas em volta do Sol, noites e dias feitos ao sabor das criações pessoais, em que resumir a razão do quanto há durante milênios.

As circunstâncias em face disto motivam adorações nas várias crenças. O imediato perfaz compreensões e traz justificativas de adoração; no gesto de esgotar os tantos conceitos individuais. Ao limite das consciências, depois de cruzados inúmeros caminhos apenas circunstanciais, sob o equilíbrio da Natureza, numa ocasião somar-se-ão forças de recorrer ao Deus Soberano, autor dos céus e da Terra. Espécie de sentimento de frustração com os ídolos particulares, os povos, nessa hora, recorrem ao senso de perfeição que também mora em si.

Bem nisto a caligrafia das vivências humanas, fagulhas de poder, exercício prático de itinerários e dramas perante a História. Até despertar ao momento desses dias claros a isto éramos os deuses e não o sabíamos (Jesus Cristo).

domingo, 21 de julho de 2024

O curandeiro espanhol


Na visita que fez ao Ceará no período da Bienal do Livro de Fortaleza (mês de agosto de 2004), durante palestra realizada no Salão de Atos da Universidade Regional do Cariri, em Crato, o escritor espanhol Manoel Rivas, ao contar algumas histórias do povo catalão, descreveu tratamento exótico praticado por célebre curandeiro, o maior de todos que existiu em terras da Espanha.

Para esse puçangueiro apenas se dirigiam aquelas pessoas às quais nenhuma esperança de cura jamais existiria. Os doentes desenganados buscavam o apreciado tratamento após percorrem infinitos lugares e, perdidos de todo, aportavam no terreiro do tal xamã, alimentando a certeza do refazimento completo da saúde.

Manoel Rivas, então, descreveu os detalhes do processo adotado pelo homem, que vivia em um sítio afastado. Recebido o doente, ele seria isolado em uma cabana de lugar ermo. Numa noite escura, conduziam-no ao relento, tirados dele toda e qualquer vestimenta e adereços, posto em completa nudez.

Nessa hora, o curandeiro lhe perguntava pelo nome, nome dos pais e de onde viera.

- Chamo-me Manolo – a título de um exemplo que seja, pois não recordo os nomes sugeridos por Rivas. – Meus pais se chamam Pablo e Maria. E venho de San Piedro de Majorca.

Ouvidas as respostas, o curandeiro de pronto reagia para dizer:

- Não, não, não! Seu nome é Marcelo. Seus pais são Fernando e Alda. E vem de Santana de la Concepción.

Surpreso, o paciente reagia, confirmando, outrossim, suas primeiras respostas. Ao que o curandeiro voltava a recusar as respostas, de novo trazendo os nomes que dissera para substituir os do paciente.

O debate acalorava a conversação e estendia-se noite adentro, durante longo tempo. Enquanto o paciente insistia na defesa da sua identificação, pais e lugar de origem, o xamã sustentava as modificações dos parâmetros levantados, nisso consistindo a base do consagrado e infalível tratamento.

Horas e horas transcorridas naquilo de um afirmar e o outro negar e substituir os dados levantados, reclamando a mudança da personalidade primeira do paciente, exausto e abalado nas suas iniciais certezas trazidas consigo, este recuava esgotado na manutenção das velhas convicções, diante do mal que o destruía. Aceitava, em conseqüência, as mudanças propostas pelo curandeiro intransigente, abrindo mão definitiva dos valores que até ali conduzira, qual nascido outra vez. Nesse momento, a doença deixava-o, sumidos os sintomas que demonstrasse. A força da saúde retornava intacta já no outro que em si desenvolvera através método aplicado.

Por vezes, enfermos tanto se apegam aos achaques de males físicos que desenvolvem afetos, assumindo os resultados da doença. Nessa comunhão, sujeitam-se a promover apegos e dependências, causados de modo inconsciente. Assim, a eliminação se daria ao custo da eliminação da existência mental. Eis como interpreto o método do curandeiro da palestra de Manoel Rivas no Cariri.

(Ilustração: O Pagamento, de Pieter Brueguel o Jovem).

 

 

A força de continuar


Hoje, passadas que foram tantas fisionomias, vemo-nos a braços com outro tempo histórico, agora regido pelos meios eletrônicos imediatos de comunicação. Atrás de tudo quanto vem a público existem os interesses em jogo, desde valores íntimos, ligados à autoafirmação de seus autores, a pretensões de poder. São leilões a olhos vistos. Ânsias de sobrevivência. Transformações pessoais de curto prazo. Disposições frias de domínio dos grupos sociais. Etc.

Quase espetáculo dos desaparecimentos sucessivos, a multidão entontecida apenas aguarda os finais de noite a fim de sumir de si própria, num efeito de manada qual jamais.

Fossemos considerar a velocidade dos ventos e dar-nos-íamos à margem do passado inexistente a muitos. Houve tempos outros, quando espécie de movimento regia mudanças favoráveis na História. Gerações do pós-Grande Guerra imaginavam atravessar os limites das fragilidades, que os humanos, enfim, criariam juízo, abandonando o desvario. Os exércitos regressavam trôpegos, porém cientes de haver ultrapassado os extremos da fragilidade, chegando a bom lugar.

Agora, no entanto, resta a grande transformação do ser consigo mesmo. Face aos desencantos materiais, vivemos o momento da consciência, hora de nascer da novo de dentro de si, que o que viria lá de fora não existe mais. Sementes doutra revelação bem maturada nas hostes dos desencantos, sustenta-se o prumo de considerar o mistério da alma e abraçar outros destinos. Isto perante a experiência do que ficou e ora guardamos a lição.

De nada importa o senso exclusivo das vaidades. Significamos a raiz da transformação do que trazemos conosco, um a um, no coração. Resumo definitivo dos desenganos, cuidamos da evolução de olhos claros, ao sabor das contingências acumuladas. Por fim, vem à tona a realidade e o sentido pleno da Civilização. As ficções pessoais porão um término ao mero desespero, senhores que somos da verdade de que somos portadores. Tempo de síntese e revelação este dagora.

A missão dos políticos


Às vezes me interrogo sobre o que levaria as pessoas a buscarem determinadas papéis e não outros, em suas vidas. A que obedecem? Assim também, em certas horas, quero saber a razão de surgirem tais e não quais ideias na mente? Desencontros, visões adversas e novas direções, a que fim se destinam?

O raciocínio aplicado se assemelha ao instante em que nos tomam, certas vezes, a intuição, de tanto observar o movimento de uma estação rodoviária. Sentimento de que exista uma síndrome do desconhecido, em pontos específicos da atividade humana, quando sensação de vertigem libertária se acumula nesses lugares, contagiando os que deles se abeiram, como a transmitir emoções em ondas constantes, envolvendo-os feitos novelos de pensamentos.

Isso, por certo, identificaria os lugares em um plano abstrato de nós próprios, mesmo que não consigamos explicar. A mente interior capta essas percepções onde existências se fazem dentro círculos concêntricos, indicadores de um planejamento e de uma execução racionais, fruto de Origem Perfeita, e disso sentimos o nítido sabor, em tais momentos.

Para as pessoas, o gosto por certas atividades também se lhes aparece quais identificações. Na política, por exemplo, se vê tantos se oferecerem (honestos ou não) a si mesmos como pontes, avançarem noutras atividades,  qual obedecessem determinações traçadas com tamanha precisão, que terminam por largarem todos os outros afazeres e se dedicam de corpo e alma à nova meta, achados ou perdidos, Deus sabe até quando e a  que custos financeiros/morais.

Desta maneira, passam ocupam o espaço das lideranças no programa coerente da vida em sociedade, resultado de disposições internas, como ímpeto de que trazem consigo gravado o código secreto de um compromisso premonitório para realizar, levando  ou não os demais a definirem o sonho supremo da felicidade individual/coletiva.

Conclusão que obtemos:  para cada pessoa existe um esquema prévio traçado, que se consubstancia quando aumenta a proximidade dos instantes mágicos do reencontro com a insubstituível natureza espiritual e perene, nas trilhas de aço da memória de cada criatura (feito espinha dorsal da vida particular), pois ninguém nasce apenas para se abismar nas trevas do isolamento, arbítrio exclusivo das individualidades. Temos, todos, nossos acordos prévios para cumprir, débitos a saldar.

E a política, portanto, mais do que simples deleite egoístico de criação e manutenção de privilégios vadios, é o instrumento de que o Poder se vale para democratizar os ideais superiores da Justiça Soberana, por intermédio de homens que tudo devem fazer para concretizá-los, em face do caos. E outro caminho nao nos resta além de respeitar as evidências da lógica meridiana.

(Ilustração: Reprodução (https://wallhere.com/pt/wallpaper/356227).

sábado, 20 de julho de 2024

Estrelas a luzir


Noves fora tudo; noves fora nada. O peso das circunstâncias vividas ao som do canto insistente dos bem-te-vis e das cigarras de outubro e os corações azuis desenhados nos muros da cidade, espalhados entre os restos da propaganda política das eleições recentes, mostraram desde cedo, na luz clara do Sol, naquela manhã, que algo diferente ocorreria antes do cair da tarde do mesmo dia.

Primeiro, cresceu o perfume agreste de flores, reduzindo a fumaça e o barulho dos carros que agitavam as ruas em volta da praça.

Depois, nuvens densas de chuva passaram numa velocidade acima da média, se é que existe uma velocidade média estabelecida para o vento deslocar as nuvens no céu, ainda que em dias de pouco ou nenhum tráfego de pessoas às portas dos mercados cá debaixo, nos dias comuns dos grandes movimentos financeiros.

Mas o mundo veio mesmo a acordar de verdade no instante posterior, quando a coisa ganhou de todo os títulos dos principais jornais. Nem o crescimento acelerado das bolsas de valores causaria tamanho impacto no povo do lugar.

Eles dois, quais duas paralelas que só se encontram no infinito, fizeram assim, fundiram suas almas num todo único, ser eterno, reconstituindo a lei natural que rege os corpos, tecidos em partes indivisíveis, produto final de se enlaçarem intensos no amor elaborado desde a essência de seres antes dotados de histórias só particulares, cada um deles a gerar síntese consistente, além das perspectivas férteis da imaginação coletiva.

Espécie de fenômeno raro de proporções gigantescas, união dos dois pólos, revelou mudanças visíveis na humanidade, advento da pretendida nova era, antecipada pelos videntes de culturas variadas, nos segmentos e lugares conhecidos até então, afirmando promessas dos oráculos remotos dos tempos passados, aumentando esperanças de o belo chegar ao poder, no seio imenso da larga população.

Este alento da imortalidade plena dos que se amam permanecerem vinculados com isso tornou-se a expectativa num salto de qualidade, sonho real de transmutar sólidos materiais em substância definitiva, imaterial, energia elaborada nos planos superiores, perene, concreta, fruto inigualável dos valores positivos, por meio do sentimento das pessoas que devera se amam.

Vieram, no momento seguinte, filósofos e poetas a considerar esse acontecimento como resultante principal da jornada, no decorrer dos séculos da vida humana, o que deixa muitos a falar sozinhos, ligações externas de quem busca contactar esferas imaginárias que apenas rolam vadias, invés de reconhecer para si as trilhas do coração. 

(Ilustração: Vincent Van Gogh).

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Tesouro da Juventude


Na segunda metade da década de 50, os viajantes da editora W. M. Jackson, Inc. inundaram o País de coleções dos livros de Machado de Assis, Humberto de Campos, obras completas, e de História Universal, de Cesare Cantu, Mundo Pitoresco e Tesouro da Juventude, sendo que esta detinha a preferência, enciclopédia montada numa linguagem cuidada, cheia de bem intencionados conteúdos, no propósito de indicar, sobretudo aos jovens, variadas vocações, para isso dirigida.

Os 18 volumes, confeccionados em papel resistente, encadernações luxuosas e graúdas, traziam painel do que havia de mais atual, desde literatura, ciências e artes, a resgatar histórias infantis de todos os tempos, poemas tradicionais da língua portuguesa ou traduzidos; enfocar países, com detalhes culturais, arquitetura, costumes, ricas ilustrações; realçar momentos históricos importantes para a cultura ocidental, satisfazendo a curiosidade sobre temas da natureza; e oferecer métodos de artesanato, folguedos e jogos divertidos.

Nesse período, poucos estudantes deixaram de pesquisar naqueles livrões de capa azul, na busca de esclarecer os diversos fenômenos naturais, circunstanciar resumos de romances brasileiros ou estrangeiros, ou descobrir novidades ao gosto dos professores do ensino médio; ainda não possuíamos, no Cariri, escolas superiores; enriquecendo bibliotecas e lares com as luzes do saber.

O despertar para a leitura encontrou nessa coleção trilha fértil, de rica proposta. Os jovens, por seu turno, acolheram de bom grado esse manual, sem ter de cruzar a massa de informações que a cada dia se despeja nas bancas de jornais e revistas, nos tempos eletrônicos dagora.

Todas essas particularidades nos vêm à lembrança quando se observa a peleja das gerações de hoje para desenvolver o hábito da redação, exigência constante dos vestibulares, visto se saber que o primeiro requisito do estilo terá sempre respaldo na boa leitura.

A propósito do Tesouro da Juventude, eis um exemplo de texto dessa bela coleção:

TIRANOS DE SIRACUSA.

Conta uma história antiga que Dionísio, tirano de Siracusa, geralmente detestado por todos os seus súditos, encontrava frequentemente em seu caminho uma mulher muito velha, que sempre exclamava quando o via:

- Deus dê longa vida ao Rei Dionísio!

Admirado daquilo, o tirano, que se sabia cordialmente odiado por todos, indagou-lhe, uma vez, do motivo de seus bons votos.

A mulher respondeu:

- Eu sou velha, muito velha. Vi o pai de V. Majestade e o avô de V. Majestade. Seu avô era um tirano de imensa maldade; seu pai era pior ainda; V. Majestade é ainda pior do que os dois anteriores. De modo que rogo aos céus darem longa vida a V. Majestade, porque tenho medo daquele que possa vir depois.

Como se vê, esta célebre história da velha de Siracusa aplica-se bem a muitas épocas.

(Ilustração: Reprodução (https://jogosuperclicks.com.br/parabeeees-para-o-livro-nesta-daaaaaata/).


Páginas soltas X


Alguns temas vêm à tona, razões da felicidade, a força dos sentimentos, sonhos; todavia essa mesma vontade na escolha do que dizer empanca nos artesanatos e nas costuras do Tempo. Escrever vem disso, de querer a liberdade rara dos dias sob as determinações e os afazeres da rotina. O pensamento fica ali tal ave ansiosa à busca das árvores sem querer pousar em nenhuma delas. São tantas as histórias que vagam pelo firmamento, que nem as palavras as detêm. Lembro dos dias da infância, dos anseios da adolescência, das contingências da vida adulta, e nisso o querer sente qual espécie de vertigem de contar e esquecer, num claro-escuro inesperado, insistente.

Ontem, li alguns dos contos populares do mundo, tais que revelam a memória dos povos. Sempre há mistérios em andamento no que seja. Esperança. Susto. No entanto, caçadores de revelações, significados, bem parecidos com os dias velozes, quando assistimos cenas que passam nas nuvens do céu e nos deixam pasmos da imaginação que corre pelos carrascais das horas feita sombras à procura da luz. Isto define a fluidez dos acontecimentos a envolver tudo em volta. O tanto de possibilidades que o juízo possui, porém no desejo de conhecer e achar a liberdade tão contada nos livros, nos filmes; os meios de identificar certa vez a essência de ser eterno, alegre, amável.

As letras oferecem aquilo de que fazemos o sonho. Trabalham o instinto nas novas possibilidades, nos instantes de paz dos quantos vivem neste chão e quase nunca desfrutam os meios de chegar ao pomo revelador do mistério. Vamos assim, tripulantes de naves em voo livre através dos segredos, individualidades e planos. Entre todos somos um a mais, na noite da sorte, pois. Só então ver-nos-emos moradores da real transformação que nos espera de braços abertos nalgum paraíso logo adiante.


quinta-feira, 18 de julho de 2024

O peixinho dourado


Naquela manhã, o humilde pescador saiu cedo a procurar sustento, dele e da esposa. Os dois viviam na penúria. Moravam numa palhoça junto de bela praia, onde o mar quase sempre trazia numerosos cardumes de peixes deliciosos. Dessa vez, porém, a facilidade não se repetia. Pescou horas e horas, sem nenhum resultado positivo.

Quando quisera desistir, um peixinho dourado, de tamanho insignificante, veio nas malhas da rede que jogava. Muito pouco, no entanto, para suprir a fome do casal. Nisto, ao segurar entre os dedos o pequenino peixe, uma voz inesperada se fez ouvir:

- Meu bondoso pescador, deixe que eu permaneça vivo - as palavras saíam claras da boca do ser minúsculo. - Para nada sirvo pelo pouco que tenho. E, além do mais, posso ser mais útil vivendo, pois posso atender a todo pedido que o senhor me fizer.

Aturdido com aquela inesperada ocorrência, o pobre pescador quis comprovar aquela promessa que ouvia. Muitas histórias dão notícia de coisas assim - ficou imaginando gênios e outras maravilhas, ao que deve haver uma razão de existir. E um tanto temeroso, de imediato retrucou:

- Peixinho, me disponho a examinar o que dizes. Por isso, primeiro, pedirei que quando eu chegar em casa encontre a mesa posta com pratos dos melhores sabores. Caso atenda ao pedido, devolverei a tua liberdade. Disse e fez prumo de voltar ao lar.

De longe, avistou sua mulher, eufórica acenando da porta de casa, vindo-lhe ao encontro. Dizia que um rico banquete os esperava na sala de jantar.

Enquanto saboreava os manjares, o homem foi contando o que se passava. Daí trataram logo de preparar novo pedido. Iriam morar no palácio mais bonito que houvesse na Terra.

Libertado o peixe, de acordo com a palavra, este passou a servir com fidelidade e constância ao pescador e à sua mulher, agora habitantes de um palácio de sonhos.

Na sequência do tempo, a mulher pretendeu desfrutar da riqueza de uma rainha poderosa, sendo nisso também atendida. Depois, quis ocupar o lugar do papa. O peixe, sem desobedecer, de novo correspondeu à reivindicação que lhe fora apresentada.

Para quem vivia na miséria, sob os cuidados daquele peixinho misterioso, a existência deles se transformara num paraíso. Todo o tempo do mundo era pouco para aproveitar bem os inúmeros presentes recebidos. Notava-se nos dois até um certo fastio pelo tanto de coisas que ganhavam do bom amigo.

Num belo dia, a mulher chegou para o seu companheiro e transmitiu-lhe mais outro dos seus desejos imaginosos. Dessa vez superaria em exigência todas as vezes anteriores, pois ela queria, vejam bem, ocupar a posição mais elevada que existe e desfrutar nada menos do que das funções supremas de ser Deus, o criador do Universo.

O início, o marido reagiu boquiaberto, pois, pelo equívoco do pedido, anteviu os resultados que sucederiam à soberba da esposa. Porém não reuniu forças suficientes de lhe contrariar, seguindo triste com o pedido em direção ao peixinho, no lugar habitual.

Chegou, esperou, esperou... Mas nada de peixe.

Tão só o mar silencioso respondia aos seus insistentes chamados. Dessa vez, o pescador não voltaria mais a rever o servidor fiel. Cabisbaixo, sem planos, na tarde cinzenta daquele dia, retornou à mesma casinha modesta do início da história. Apesar de tudo, no entanto, provara do conceito antigo que diz: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Ser e personalidade


O mesmo e único de nós neste movimento de existir. Então, quais raízes de onde se agarram, são os seres em formação. Daí as tantas extensões à mostra de um a outro, no caudal das existências. Infinitas aventuras preenchem, pois, o espaço da consciência enquanto aqui pelo chão. Quantas vestimentas a caracterizar criaturas de formas e cores; ritmos e melodias. O senso reveste, assim, diferentes estruturas e matizes, convergindo a uma só direção, de vir a ser e Ser, lá certa feita.

Bem isto o sentido essencial de tudo na forma de heróis e senhores dos sentidos, próximos, distantes; valores, conveniências; espectros alheios pelos palcos iluminados no Tempo. Essa fisionomia que se lhes apresenta vem a significar, qualquer dia, a dita personalidade. Autores e atores da humana providência e servos da condição em que imperam. Nisto, perlustram de histórias o caldeirão desta vida.

A gente reúne planos e providências, logo a seguir desfeitos em meros fragmentos do que teria sido, no entanto. Desses pedaços formamos o mundo em volta, espécies de episódios que, somados, inundam as telas inteiras dos olhos de todos. Nesse meio período, daqui construímos monumentos sob os quais adoraremos a nós próprios nos intervalos dos séculos vividos.

Dada a experiência definita, crescem os seres em si, produzem do que forem o solo das gerações. Fazem, reconstroem; surgem, desaparecem; nas muitas luas padecem e amam à medida dos sonhos. Esses tais senhores absolutos andam à solta nos becos da sorte, por vezes alimentados em pratos dourados; noutras, em peças de chumbo e suor; bestas ou santos; faquires ou deuses. Ao modo de olhar o horizonte, choram ou riem, palavras intensas que nascem do coração.

Nós conosco, pendores e desejos, tocamos em frente os trilhos da Criação, aprendizes do anonimado e sempiternos salvadores; isto resume o texto, e esperamos esse encontro definitivo de quem ainda pouco ou nada conhece do Ser em Si, pautas da revelação.

O Rei Édipo


Há um período da história do Egito de que pouco se tem notícias, o Antigo Império (de 3200 a 2300 a.C.), época da construção dos maiores monumentos da civilização, a Esfinge de Gizé e as pirâmides de Quéfren, Quéops e Miquerinos.

Desse tempo remoto, há menção na Odisséia, do poeta grego Homero, a um personagem, Édipo, filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas, cuja legenda ora contaremos.

Antes do seu nascimento, o oráculo de Delfos vaticinou que Édipo, ao chegar na idade adulta, mataria o pai e se casaria com a própria mãe.

Em vista disso, quando o filho nasceu, Laio ordenou que lhe amarrassem os tornozelos e o deixassem abandonado em uma distante floresta, ao relento, entregue à sanha dos animais selvagens.

Entretanto, achado por um pastor, chegou na corte do rei Políbio, de Corinto, onde mereceu acolhimento e as graças da melhor educação.

Na adolescência, Édipo soube da profecia do oráculo quanto ao que o destino lhe reservava e quis preservar os pais, abandonando o palácio de Corinto.

A caminho desse desterro voluntário, deparou-se com um ancião que viajava na companhia de vassalos e com ele se desentendeu, chegando a matá-lo sem saber que matava seu pai, Rei Laio.

Seguiu a viagem e alcançou Tebas, onde o reinado atravessava desolação incontrolável, pois, nas portas da cidade, instalara-se esfinge feroz a propor um enigma à população e devorar quem não o decifrasse.

Jocasta, a rainha viúva, prometera casar com quem libertasse o povo daquele mostro cruel. Ao aproximar-se e interrogado pela esfinge, Édipo desvendou-lhe o enigma, em seguida casando-se com a rainha e consumando a profecia do oráculo. Conta Homero que desse matrimônio nasceram Etéocles, Policine, Antígona e Ismene.

Algum tempo passado e terrível peste assolou todo o reinado de Tebas. Na ocasião, o oráculo previu que a saúde só retornaria ao lugar depois de vingada a morte de Laio, o antigo soberano.

Um adivinho de nome Tirésias desenvolveu insistentes investigações e demonstrou a Édipo e Jocasta a trama que, de modo inconsciente, os dois protagonizavam, levando com isso Jocasta a se auto-imolar e Édipo a tirar dos olhos a própria a luz. Cego, retirou-se de Tebas, deixando em seu lugar Creonte, à frente do reinado.

Seguiu para Colona, próximo de Atenas, vindo viver sob a égide do Rei Teseu até mais adiante, quando morreria de modo misterioso, em um bosque sagrado das imediações, a tornar-se herói protetor da Ática. 

A tragédia também arrastaria no seu bojo os descendentes de Édipo, nas palavras do autor grego que primeiro narrou a história aqui delineada.

(Ilustração: Édipo (reprodução) (https://oestadodaarte.com.br/edipo/).

Culturas do Cariri cearense


O Cariri cearense é um dos maiores celeiros de cultura popular e folclórica do Nordeste brasileiro. Nota-se a grande quantidade de grupos e manifestações aqui existentes; bumba-meu-boi, maneiro pau, bandas cabaçais, reisados, trancelins, emboladores, penitentes, festas juninas, contando com diversas manifestações além disso, os aboios, a dança do coco, etc., sem se falar na grande riqueza das lendas, na religiosidade, na culinária e em vários outros costumes. A Exposição do Crato passou a ser o evento de maior expressão da cultura popular, reunindo anualmente os mais diferentes grupos folclóricos vindos de longínquos pés-de-serra, para deleite de turistas e citadinos; suas cores, danças e músicas, suas belas caboclas e tantas outras coisas. Um nome que se destaca em defesa do folclore no Cariri é o do escritor J. de Figueiredo Filho.

Acrescente-se a tudo isso a religiosidade de Juazeiro do Norte, onde se instalou uma nova religião, através do culto popular ao sacerdote católico Cícero Romão Batista, o Padim Ciço, o que reúne culturas as mais variadas, com rico artesanato e ampla expressão de cultura popular. Juazeiro é hoje um dos maiores pólos de manifestações etnológicas quiçá de toda Terra. São três grandes romarias que acontece no decorrer do ano, em um montante de visitantes por volta de 1 milhão de romeiros.

REISADO – Eis manifestação das mais ricas em cores e dança. Grupos de homens, geralmente camponeses com vestes e indumentárias que remontam os antigos guerreiros da Idade Média, de fitas coloridas, meiões, técnicas, espadas, de cor predominante o vermelho, adornado de pequenos espelhos. A música vem acompanhada de uma de banda de couro, violeiros e todos cantam em coro os refrões. A dança de cunho religioso traduz batalhas travadas em ritmo cadenciado (mouros e cristãos), utilizando espadas. Os integrantes do grupo se dividem em fileiras. Uma personagem de destaque no reisado é o Mateus, com roupas extravagantes, um chicote a punho e sua voz estridente. Apresenta-se com o coringa, o palhaço do folguedo. No Crato, o reisado se faz apresentar com o bumba-meu-boi, trazendo o jaraguá (animal da fauna regional que surge no meio da dança).

No Crato, o grupo de reisado mais conhecido é o do distrito de Bela Vista, comandado pelo mestre Aldemir, que conta com o oficio de puxador de reisado herdado de seu pai. Um dos seus filhos já está se preparando para assumir o posto. O mestre Aldemir começou a sair no reisado com três anos de idade. No grupo da Bela Vista também dançam mulheres, o que não é comum em outros grupos.

MANEIRO PAU - Antiga dança de roda cantada e ritmada com palmas. Os dançarinos viram-se para direita e para esquerda, com leve e cumprimento ao companheiro deste lado, ou fazendo menção de dar umbigada. Cantam quadras intercaladas com o refrão maneiro pau. Em Crato, esta dança é ritmada ao som dos cacetes se chocando entre os dançarinos.

COCO - Uma dança entre homens e mulheres, no terreiro das casas, geralmente em festas juninas. Existem vários estilos e modos de dançar o coco. Bingolê, gavião (dançado por homens), embolado, etc. No bairro Batateira, em Crato existe um grupo de coco formado somente por mulheres com cerca de trinta e cinco membros. Outro destaque no coco é o grupo do poeta e teatrólogo Correinha e do mestre Cirilo, também na Bela Vista, no município de Crato.

Em Crato, encontramos bem definidas as manifestações populares e eruditas, clubes e agremiações literárias; do primitivo ao científico: o maneiro pau, o milindô, a banda cabaçal, os reisados, as renovações nos pés-de-serra. Com a mesma força, Crato expõe com maestria grupos cênicos, corais, balés, poetas populares, várias edições periódicas de revistas e jornais e a orquestra sinfônica da Sociedade Lírica do Belmonte, formada por jovens trabalhadores, sob a orientação do sacerdote católico Padre Ágio Moreira.

No Cariri, cultura e arte fazem parte de sua rica tradição e história recheada de momentos heróicos nos acontecimentos nacionais.

(Texto de 14/09/2006).

(Ilustração: Banda Babaçal dos Irmãos Aniceto).

Democracia e autoridade


As práticas políticas do regime democrático, em que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, requerem o uso do bom-senso nas suas razões de estado, condicionando aqueles que as exercem o domínio da força bruta no esmero de ações efetivas pela preservação das instituições da sociedade livre. Daí o comparativo entre o direito da força e a força do direito.

Um exemplo típico do exercício necessário da força em situação de preservação democrática viu-se à época da Segunda Grande Guerra, quando as hostes totalitárias do Terceiro Reich ameaçaram a sobrevivência de todo o Mundo e os Exércitos Aliados reagiram contra Hitler, no maior embate bélico que se sabe, na história humana.

Dizer-se que nosso País é uma democracia constitucional envolve a previsão formal de sermos povo livre, dotado de regulares turnos eleitorais para a composição dos poderes, liberdade de expressão, igualdade racial, tudo sob o lídimo e soberano império da Lei.

Quaisquer autoridades que exerçam pressupostos democráticos representativos devem respeitar por dever o pleno estado de direito, com a correspondente salvaguarda dos direitos políticos, civis e sociais.

Vezes sem conta, a autoridade depara-se com os desafios próprios da defesa desses bens comuns, porquanto a liberdade de uma pessoa termina onde começa a da outra pessoa.

O puro e simples manifesto de minorias que quiserem ferir a paz e o território das liberdades coletivas exige das autoridades posicionamentos efetivos de conservação da boa ordem civil, face aos jogos democráticos, daí existirem previsões legais e adoção de medidas coercitivas cabíveis, ao sabor dos acontecimentos.

Essa linha fronteiriça da autoridade e da democracia reclama permanente debate e avaliação, subjugando os interesses particulares, sobretudo quando se veem a risco conquistas seculares das nações do mundo livre.

Alguns doutrinadores exigem politização para o cidadão bem reivindicar os seus direitos à luz da consciência, isso estabelecendo a educação das bases sociais.

Desta forma, o aperfeiçoamento do corpo coletivo indica amadurecimento, tanto da cidadania, quanto das autoridades, no sentido de uma maior condição de uso instrumental das salvaguardas democráticas.

O poder arbitrário, ou reacionário, das ações políticas, em ocasiões e méritos, manifesta-se tanto de um povo despreparado, imaturo, quanto de autoridades ilegítimas, truculentas, cujas ações ocorrem, às vezes, fruto da ingerência de grupos despreparados, intolerantes.

Dentro de tais considerações, vale ao cidadão examinar com zelo as mobilizações do campo político-democrático, na expressão legítima da vontade geral, permanente valor das lutas de toda comunidade que se preze.

(Ilustração: A mulher louca, de Pieter Brueguel, o Velho).

terça-feira, 16 de julho de 2024

Mosaico antigo


Ouvir pela segunda vez a mesma música, e voltam ricas memórias das tardes bonitas da cidade, há três décadas, quando se ia ao cinema nos sábados para sessão de filmes raros, no Cine Moderno.

Ruas desertas e uma chuva miúda a escorrer levemente pelas casas pintadas de cal. A serra altiva cobria o tom claro com a sisudez de sua mata verde escuro orvalhada de nuvens.

- Névoa na serra chuva na terra. Névoa na baixa sol que racha.

O cabelo das velhinhas que rumam à missa a se parecer, na alvura, com asas que passam céleres sob as carnaubeiras da praça rumo ao escurecer do dia.

A vida é imortal, isto por sermos espíritos dotados de eternidade após o momento de nossa criação por Deus. Quem passa é o Tempo, primo-irmão da matéria, que também se dissolve na energia, fonte eterna do depois.

Na leveza desse início de conversa, escrito em 28 de março de 1987, regressa o mesmo instinto de falar do que esteja agora no coração, na intensidade de novos momentos que sustento nas horas cálidas de outras histórias e que, vivas, permanecem a correr soltas pelos vales e céus da consciência, nos seus pedidos sucessivos de recordar outros sonhos.

Neste silêncio de ficção do que nós somos resta sobreviver a tudo e desvendar o mistério lá desde longe infinito. Pequenas criaturas e as marcas que deixam nas estradas, quais meras perguntas ao relento, todos assim transitamos nos braços das visões e significamos fragmentos de nada da forma submissa ao desejo a qualquer modo nesta epopeia de luz. Daí a fome selvagem de viver dos seres em êxtase nesse barco do Destino.

Vê-se além o céu azul de um novo final de tarde, derradeiros raios de sol ao Poente, raras nuvens que deslizam solitárias longe de tudo, enquanto caminho ritmado ao sabor de uma brisa maneira. Entre mim e a realidade tão único o instante de percorrer as derradeiras dobras das encostas da Serra. E acalmo o pensamento a andar na força do quanto existem a forma dos sentimentos e a busca de conhecer mais da plenitude do que venho a este chão.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Indagações pertinentes


Neste mundo cheio de desencontros, trastes, ranhuras, desacertos e acertos mil, defronte, agora, desta tela de computador, essa máquina bem forjada, sabida, elaborada no planeta dos seres inteligentes, fosforescentes, animados, obedientes, charmosos, sonoros, eficazes, existem lugares de resposta para quase tudo, para as mais inesperadas perguntas, exatas, aritméticas, matemáticas, filosóficas, psicológicas, históricas, futuristas, abrangentes, onipresentes, oniscientes; confesso, no entanto, algumas fraquezas das suas limitações às reações espontâneas, vindas de dentro da dimensão insondável do existir, que, às vezes, produzem a vontade mental poderosa de perguntar, querer saber de mim, por mim, não desse eu que já conheço, cheio de oscilações temporárias, às brisas cotidianas contraditórias, mas do eu de verdade, a essência do si, o cá interno, habitante dos grotões da alma, vivente nos segredos fechados a sete chaves, o chip do mistério de tudo, que repousa e movimenta a história, sozinho ou em blocos empedernidos, o dna do ser, a marca registrada do Criador primeiro, que avançou, se embutiu na criatura e ainda não veio à tona da consciência do múltiplo particular, nesta realidade de mundo de relações cá fora, da ponta dos dedos, na flor da água dos olhos, no gosto da boca de manhã, ao canto dos pássaros deste sol perto da gente, banhado na brisa fria de fim de julho, no cenário das encostas da chapada; e ouvir resultados de pesquisa junto a algum site desse planisfério on-line, que guarde nas suas páginas, em seus arquivos, os refolhos das maiores bibliotecas do universo insondável das causas primeiras, alimentados pelas melhores cabeças tecnológicas do Vale do Silício, autores circunstanciais maravilhosos; o verbete frontal do mim mesmo, a tônica que nos conduz além de todo dia, impulso voraz de sobreviver a qualquer custo diante do desafio recôndito das impossibilidades, a propulsão cibernética de marcar presença positiva junto ao trilho dourado da mídia momentânea, olho do sucesso, eu do cálice, o Graal, a chama violeta da existência, o foco definitivo do drama, na festa de moléculas das pessoas bonitas, que acham, com enorme facilidade, a ordem alfanumérica sacudida nas praias dos números das areias do Mar dos Sargaços, sem querer, com isso, usar o ponto de terminar frases ou parágrafos, a pretexto de não largar o osso e manter a interrogação expandida, permanente, no âmbito do que satisfaria todos os internautas e destinos, houvesse tamanha possibilidade para recorrer a tal programa de busca à resposta campeã, no corredor da fama, da salvação, derradeiro lance dessa partida final do torneio cotidiano, perecido quando, nos filmes de ficção, os robocops se auto consertam em pleno combate, e prosseguem a epopéia das máquinas persistirem eternas, protótipos miraculosos em formato de elementos perpétuos geniais, leves ponteiros nervosos, largados ao horizonte infinito das horas, perenes círculos sem estática, motos perpétuos, traços espiralados em fios condutores da matéria ao espírito, uma resposta que supere a dor da solidão das multidões, neutralize a melancolia do desamor, nas camas intactas na madrugada fria dos abandonados, a cólica dos corações endurecidos na saudade sem jeito, as individualidades fincadas no lixo das periferias dos eleitores enganados, andarilhos, vagabundos, mendigos de amor, eus indagadores da luz da sabedoria, vagos projetos estirados na lama dos vícios, feridas abertas em peitos de dramas familiares; e essa máquina tão perfeita ainda não sabe responder a isso, enquanto apura as peças infinitas, processa, e eu quero aprender como saber a resposta nos campos disponíveis para digitar a pesquisa.

A Era do Rádio


Isso de falar dos arquivos guardados na memória vez em quando dão a própria cara sem serem acionados acontece um tanto comigo. Por exemplo, de vir à tona época, na década de 60, de meu gosto em ouvir rádios, a beirar um vício continuado. Eram as aulas e o rádio de válvulas quase o ano todo meu exercício dos dias, da minha adolescência e ao início de idade adulta. No turno da noite, sobretudo, viajava pelo mundo pelas ondas hertzianas, parecido com essa mania do celular, dos dias de hoje.

Ouvia, constantemente, emissoras nacionais e estrangeiras, estas mais habitualmente, acompanhando, com maior frequência, as seguintes: Rádio Difusão e Televisão Francesa, Voz da Alemanha, Rádio Suíça Internacional, Rádio Suécia, Voz da América, Rádio Havana, Rádio do Cairo, Rádio Central de Moscou, Voz da Alemanha, Rádio Canadá, Rádio Internacional da China, dentre outras, todas dotadas de programação em Português para o Brasil. Algumas em ótima qualidade de sinal, o que sintonizava nas ondas curtas e buscava com elas me corresponder. Um dos motivos de tanto interesse, levava em conta ser emérito colecionar selos, nesse tempo. Certa feita, participei de um concurso da Rádio do Cairo, vindo a merecer um prêmio que constou de um broche de gravata e duas abotoaduras de prata, lembranças que conservei até sumir nas mudanças.

Já na mesma fase, buscava ouvir algumas das emissoras do Brasil, entre as quais a Rádio Bandeirantes de São Paulo, Rádio Globo, Rádio Nacional de Brasília, Nacional do Rio, Mayrick Veiga (Rio), Rádio Tupi (Rio), Rádio Tupi de São Paulo, Sociedade da Bahia, Rádio Clube de Pernambuco, Rádio Jornal do Comércio (Recife), Ceará Rádio Clube, Rádio Iracema de Fortaleza; estas de outras localidades fora do Cariri, agora com interesse nos noticiários e jogos de futebol.

Tinha horários habituais de acompanhar, também, as emissoras próximas, de Crato e Juazeiro; Rádio Araripe, Rádio Educadora e Rádio Iracema. Na sequência, iniciaria atividades jornalistas efetivas e comecei a escrever crônicas, chegando a redator do jornal A Ação, da Diocese do Crato, sob a chefia do padre José Honor de Brito, ao lado de Antônio Vicelmo, Armando Rafael e Pedro Antônio de Lima Santos. Isto na segunda metade dos anos 60. Como cronista, colaborei largo tempo com as Rádios Araripe e Educadora; além de apresentar programas radiofônicos nas duas emissoras. Na Araripe, um programa da União dos Estudantes do Crato, aos sábados; e na Educadora, Ritmo Brasileiro, juntamente com Narcélio Peixoto e Aglézio de Brito, aos domingos. Lá adiante, na década de 80, conduziria um programa espírita kardecista na Rádio Iracema de Juazeiro, aos domingos pela manhã.

Sempre me vejo fascinado pelos ditos meios de comunicação de massa, sobretudo jornal e rádio, o que justificaria meus estudos posteriores no Curso de Comunicação, com Habilitação em Jornalismo, na década de 70, na Universidade Federal da Bahia, do qual cursaria sete semestres, me dedicando com ênfase ao Fotojornalismo, disciplina da qual seria o Monitor por dois semestres.

O ofício de escrever alimenta sempre essa forma de vascular a memória e desenvolver o pensamento, prática que abre outros espaços de propagar ideias e adquirir conhecimento.

Bom, eis algumas considerações a propósito de um tema que caracteriza interesses alimentados desde criança, inclusive levando-me a desempenhar a função de Assessor de Comunicação da Universidade Regional do Cariri durante três anos, em dias recentes, na primeira década do corrente século, e ora exercer funções de direção, há seis anos, junto à Rádio Universitária URCA, neste período inicial de sua concretização definitiva.