domingo, 14 de abril de 2024

A lebre desprendida

 


Dentre as tantas lendas que registram vidas passadas de Buda existe uma que conta a propósito de uma lebre jovem que habitava intrincada floresta nas encostas de montanha afastada, tendo por companheiros uma lontra, um macaco e um chacal.

Ela se alimentava de ervas, folhas e frutos, e tomava como prática de viver não prejudicar ninguém que fosse. Entre os outros animais, fazia por ministrar ensinamentos quanto a distinguir o bem do mal, através de longas lições as quais repassava com prazer.

No transcorrer do tempo daquelas paragens silvestres, aproximou-se o dia de festa maior, época de receber visitantes religiosos que peregrinavam pelas matas. De acordo com os costumes, preparariam oferendas a eles destinadas, recolhidas nos encantos da natureza.
Enquanto os outros bichos dispunham dos meios de produzir brindes valiosos, a lebre, contudo, defrontou-se com dificuldade imensa, face dispor, na ocasião, apenas de ervas, coisa de somenos importância a quem lhe visitasse.

Indagada pelos companheiros do jeito que responderia ao desafio, não mediu palavras e disse: - Caso alguém me procure, não oferecerei ervas comuns, de fácil localização no seio da floresta. Quero possuir dote mais precioso. Nisso, a mim mesma, ao meu corpo, o valor único que possuo, darei de oferenda, pois daqui ninguém retornará sem a devida atenção.

Chegado o grande dia, os tais visitantes, pessoas dignas de outros lugares, adentraram as matas, a fim de conhecer de perto os seus moradores. Um deles era o próprio Sakka, a personalidade suprema do Poder, que conhece todos os pensamentos que fervilha em todas as mentes, que veio investido na figura de um simples brâmane e dirigiu-se à toca da lebre.

Ao vê-lo, ágil e prestativa, mais do que depressa a lebre disse fagueira ao visitante: - Fizeste o melhor vindo aqui à minha morada, pois quem me visitasse neste dia a ele reservara o que de mais precioso guardo neste lugar, e que isto te ofereço neste dia de festa.
Olhos atentos, o brâmane observava os raros e pobres trastes que existiam na casa simples, interrogando no íntimo a que se referia a lebre em suas acolhedoras palavras. Daí esta acrescentou: - O dom de que falo e que pretendo oferecer do meu coração sou eu mesma, o meu corpo vivo que vês, e que mereces inteiro pela nobreza de tua dedicação aos ditames sinceros do Bem nas tuas ações puras e austeras.

- Vai juntar gravetos e acende o fogo necessário ao preparo do teu repasto.

Mediante a oferta decisiva, o brâmane logo se movimentou, fazendo crepitar uma fogueira cujas chamas vigorosas iluminavam o escuro da folhagem virgem. Num gesto impávido, ligeiro, a lebre lançou-se no meio das labaredas aquecidas como quem se joga no seio de águas profundas, acalmando consigo seus anseios e dores, atitude suficiente para resumir toda uma vida sábia e afetuosa.

(Ilustração: Buda (reprodução).

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