sábado, 28 de junho de 2014

Página da vida

Via a flor toda manhã. Abria a janela, avistava o canteiro. Não sabia se o mesmo exemplar da noite passada, porém flor de fisionomia airosa, inteira.

Um dia mais, amanhecera. Lançou olhar ao viço vegetal, enquanto escutava no rádio plantão noticioso. Outra guerra explodira nos lados orientais, no Iraque; bases bombardeadas, homens-bomba, Bagdá. Soldados estrangeiros perseguiam e eram perseguidos. Armas localizadas embaixo de ruínas. Apelos de paz das instituições representativas e sem qualquer poder político.

Levado pelos sentimentos, arquitetou na imaginação de quem buscava a beleza da flor um suposto diálogo entre ela, o mimo do jardim, e a guerra do mundo, monstro devorador.

Seria a guerra quem iniciaria a conversa:

- Como andas, companheira deste planeta obtuso?

- Vou tangendo a minha vida. Não tão vermelha de sangue quanto a tua, mas rósea como nascem ad manhãs – meio tímida, pudica, respondeu a pequena flor.

- Tu eternamente orgulhosa! Sou encarnada por que me tingem os heróis no líquido viscoso que corre dos vasos e veias abertos nas batalhas magistrais, na luta. A ti jamais dirigirão tanta glória e feitos estratégicos, futuro construído nas dores do parto.

- Também não pretendo tamanha burrice. Os homens nunca procuram a beleza quando querem matar ou morrer. São eles uns egoístas azedos, endurecidos, animais ferozes, de caracteres pouco elaborados.

- Deixa disso, frágil criança. Continuas a deter o homem titânico. Para ti, grandes são os bobos que passam pela vida a vagabundear e fazer versos inúteis, imprestáveis. Esses são quem mais aprecio durante o meu repasto de pó e fumaça.

- Poetas são os poucos que forjam homens verdadeiros, no sonho dos conceitos e palavras. Se todos agissem como eles, viveríamos em novo universo que não habitarias assassina!

- Contudo, graças à matéria infamante, esses cabeças-de-vento não mandam nos meus domínios. Não confiaria neles um só minuto, e estou a eliminar suas vidas através das hecatombes e seus efeitos monumentais e castigos, principalmente nos países atrasados, longe das conquistas esplendorosas do desenvolvimento, onde impero com êxito e dela comando a festa da morte.

- Tu és das piores pragas. Se soubesses alcançar com teus arroubos hipócritas e canalhas a ti mesma, desaparecerias com eles. A natureza recusa que existas. Quem sabe olhar a pureza dos momentos originais, domina o amor. A ti, amor é máquina, fuzilamento, granadas, que adora qual a deuses fatídicos.

- Eis por que existo – a guerra respondeu, enquanto lambia feridas sem conta espalhadas no corpo oleoso da Terra. No meu reinado não admito que falem no amor. Meu maior sonho é ver o dia em que o Sol desapareça, dia que vai chegar, assim aguardo confiante. Paz não existe, é abstração doentia. Os meus inimigos são fracos amorosos a que breve dizimarei.

- Pusilânime! Nojenta! - gritou sobressaltada a pequena flor. - Existissem homens de coração verdadeiro e não dominarias! O horror que prometes não virá, pois defenderei a vida e os seres de boa-vontade.

- Vamos parar com isto - exclamou contrafeita, impaciente, a guerra. - Tu não mereces viver. Vou te arrancar pela raiz e silenciar tuas audácias.

Pelo sim, pelo não, olhei o jardim, no dia seguinte, e a flor jazia esmagada. Tudo que sobrara dela se resumia em pétalas murchas de corpo inerte, despedaçado.

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