domingo, 22 de junho de 2014

Flagrantes de memória I

Foi naquele ano que presenciei um dos quadros que aqui descritos. Descia a Rua Bárbara de Alencar, em Crato, quando, no cruzamento da Tristão Gonçalves (antiga Rua da Vala), avistei surpreso um grupo de mais ou menos 200 homens, os flagelados, agricultores famintos. Todos eles, pacíficos, traziam consigo sacos vazios enrolados da mão para o pulso, à procura de alimentos.

Qual pelotão em ordem unida, o grupo passou silencioso, rumando às bandas da Praça da Sé, direção da Prefeitura, que à época funcionava nos altos da Cadeia Pública, hoje ocupado pelo Museu de Arte Vicente Leite.

A cena me causou espanto dada a presença forte daquela gente, homens esquálidos, sinceros, evadidos da cruel intempérie, embrenhados na sede do município quais corajosos soldados da sobrevivência.

Também da mesma fase recordo a prisão, nas matas da Serra, de um homem esquisito, de cabelos longos e desgrenhados, unhas recurvas, grandes e escuras tais garras, bigode e barba de anos a lhe encobrir a fisionomia selvagem. Denominaram-no Pai da Mata.

Por vários dias permanecera exposto à visitação popular, nas grades da cadeia, na rua Senador Pompeu, para onde acorria constante multidão. Muitas histórias circularam a seu respeito. Desconfiado e soturno, a ninguém respondia, quando interrogado, apenas fixava o vazio dos olhos enigmáticos.

Depois de uma ou duas semanas, transferiram-no para outro canto, nada mais sendo divulgado a respeito.

E quase em frente ao mesmo prédio, esquina da Praça da Sé, já nos começos da década de 60, quando instalavam a rede de água, outro fato se me gravou na memória.

Vi dali ser desenterrada uma igaçaba (urna funerária de barro, com riscos de vermelho amarelado). Na avaliação dos professores que a examinaram, servira para acondicionar despojos de chefe indígena das antigas tribos regionais.

Apenas os cacos permaneceram guardados durante algum tempo, no museu histórico da cidade, onde pude avistar algumas vezes mais.

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