sábado, 17 de agosto de 2024

O triângulo secreto


Quéfrem, Quéops e Miquerinos, as três pirâmides do Antigo Império, em reprodução preto-e-branco, claras, no deserto cinzento, ele as retivera na visão interior, antes de agarrar o sono. Há dias, começara estudos de História pelos  primórdios, desde tempos imemoriais distantes de bilhões de calendários. Transpusera os períodos geológicos, chegara na pré-história (Paleolítico, Mesolítico e Neolítico) e, agora, introduzia-se no Egito da pré-dinastia e dos três impérios de 3.400 anos antes de Jesus. 

Dormira a sono solto. Pela madrugada, meio encoberto no pano fino afastado das pernas, o sonho revelara desejos recolhidos de valores sinceros.

A princípio, dançava na quadra do colégio das freiras; ele, doutra geração, via-se caracterizado de bacamarteiro, em mescla azul e lenço vermelho amarrado no pescoço, a segurar espingarda de cartuchos e rodopiar entre jovens figurantes do folguedo imaginário, de longe observados por multidão silenciosa.

Com ênfase, adotava no espírito os passos da dança, mais talvez do que os outros. Sentia o ânimo daqueles movimentos animados. Num lapso crítico, distanciara-se   analisando os companheiros de folguedo, quando visualizou a moça alva, cabelos aparados, bela, feições reconhecidas, que observou o seu olhar masculino, penetrante, logo abaixado, contido.

Via, por perto, outras moças, todas despidas, castas, de cócoras ou sentadas no chão, de vaginas à mostra. Em relação às demais, conseguira manter a distância regular de sincera contenção, a compostura, assim dizem. Dela, porém, sentira vir força envolvente, a lhe amparar os sentimentos, esquecidos exemplares de velhas paixões abandonadas, em posição  defensiva, cura das dores inconsequentes.

Não sabe bem explicar porque; em seguida, percebeu-se ele, os dois deitados, e ele de novo, amando com gana e alegria vitalizada. Seus dedos ansiosos acariciavam prudentes o líquido viscoso escorrendo profuso da junção das pétalas de uma vagina rosada, carnes receptivas, entumecidas e perfumadas de suave frescor primaveril.

No auge dessa paixão vigorosa, renascia-lhe o drama da infidelidade, qual premido nas unhas afiadas do superego repressor, despeitado fiscal dos fulgores juvenis e da felicidade física, coisas descartadas no processo de sublimação, distanciamento útil da matéria densa,  ensinos trazidos das escolas de que aprendera os ditames da lei, corretivos de erros vividos.

Todavia, no sonho, na sequência imediata, uma programação de tv mostrava herói americano enlaçando sua dama, situação idêntica, veterano apaixonado em revivescências jovens, como quem chamega as dobras de mornos lençóis festivos, desses de renovados sonhos. Algo se acalmava por dentro e persistia feliz, legitimando as cenas multicoloridas lançadas tela afora.

Depois, desconfiado, acordara cabreiro, no entanto saciado, considerando na lista dos quadros passados as infrações cometidas, por conta automática dos códigos morais sociais, no a fio da procura da perfeição. Um misto de prazer e culpa rondava-lhe os corredores do ser, profundas cavernas individuais.

Calmo, estimava cuidadoso o preço da onírica aventura. Caçava apressado, no lençol da cama, as preocupantes poças de esperma, no pijama, na colcha, flagrante delito. Leveza na alma de nenhum sinal positivo: não ejaculara, coisa rara em ditas circunstâncias.

Ainda tocou a companheira, bem ali do lado, quente, cheia de vigor, amor a oferecer, sem, contudo, aceitar-lhe os carinhos constantes, frustrados. Somas de inúteis respostas indolentes. Sozinho...

A imagem das pirâmides outras vezes quis voltar aos pensamentos. As três. Os três. Mas quem? Onde? Quando? A quem perguntar? Em que infinita dimensão fugidia? Concreta? A outra pessoa, terceira, límpida, alva, amante, saborosa... No desejo solto, chegava as frestas de um dia luminoso, querendo rasgar normas... Mistérios... Lupas cegas, capitães de tudo, na ordem imposta, nas coisas doridas...

Rápidos instantes, após despertados, ele e a mulher viram-se, indiferentes olhares, cúmplices do triângulo secreto, mudos personagens de sonhos reais e irreais das vidas mistas, incompletas, de mundos eternos... venturosos... Quéfrem... Quéops... Miquerinos... 

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