sexta-feira, 9 de agosto de 2024

E essa carta que não chega

 Bem ali, deitando na cama, barriga virada para cima, mãos entrelaçadas detrás da cabeça, ele acionara e aguardava abrir o computador. Lembrava do palco de teatro imaginário onde pudesse presenciar uma peça que nunca vira, mas que reconheceria pelo nome... Esperando Godot... Encenando a tal peça, morreu Cacilda Becker... Sabia, no entanto, que o autor, Samuel Beckett, nela, fala por meio de um diálogo de dois aflitos, na expectativa de lhes chegar algo hipotético, todavia coisa que não pára de se anunciar, nas frestas das conchas, nas histórias do povo, na prática obstinada de esperar o que vindouro vem; não viera; viria um dia. Os personagens, sempre de olhos postos nas dobras do infinito, guardam certeza de chegar essa encomenda do depois, aos toques impetuosos no teclado longo de um piano surdo, nebuloso; aquilo de drama-comédia, ranhuras definitivas no horizonte da alma, todos em si mesmos cientes da infalível anunciação sideral.

- Aquele não sei quem me disse que, não sei onde, feijão custa não sei quanto – das notícias do sertão.

Pacote amarrotado, ou carta boa, recheado dessas quaisquer coisas-surpresa. Há, sim, patentes, à espera, festas alegres, na força do otimismo, na saudade do feliz que passou e soube-se com o atraso de vários meses. Bonito. Esse mais bonito do que aqueles outros jogados fora. Achar, ou não, indica pouca mudança, entretanto.

O que sabia disso, contudo, alimentava seus sonhos o suficiente, esquemas e planos políticos favoráveis, na luz do merecimento das prendas positivas, escondidos sob as pálpebras ressequidas. Pois ninguém aceita resposta inadequada, ainda que pergunte do jeito que quiser, dizendo o que quer, sem querer ouvir o que não quer.

Tardes mormacentas sucedem manhãs de frias madrugadas, oferecidas nas noites silenciosas e promissoras. O inferno são os outros, afirmava Jean Paul Sartre. Todavia se ter no peito perfeição de realizações plenas, ideais.

O noticiário repete que os americanos invadirão o Iraque, à procura de Bin Laden. As fortes chuvas européias preocupam, nas cheias a confirmar graves transformações de clima na Terra, resultado das descargas constantes de gases poluentes na atmosfera. Lucro insano virou mania irresponsável das elites da raça. Imensa nuvem tóxica paira sobre a Ásia, com três quilômetros de espessura e milhares de extensão, a interceptar a claridade do Sol. As neves do Kilimanjaro agora no calor escorrem numa proporção estúpida. O mar sobe de nível. Pólos se desmancham na água salgada, sob o brilho da lua cheia de agosto, no céu. Números apontam segundo turno para as eleições no Brasil. Castas persistentes fitam o poder temporal, de lábios secos, olhos vermelhos. De garras afiadas, pêlo eriçado, vorazes candidatos observam atentos suas presas inocentes.

No rádio, velhas canções da infância. Perfume de flores secas no ar desse canto de quarto. Dez Anos, Linda Batista. Cigarro de Paia, Luiz Gonzaga. Cerejeira em Flor, Carlos Galhardo. Enquanto pulsa o tempo no relógio de plástico sobre a cômoda, ritmo cíclico, utópico, nas dimensões comovidas. Existe, sim. Ele existe, sim. Precisa-se conhecê-Lo de perto, o quanto antes. Mora dentro da gente, na casa das máquinas.

Em todos os lugares e nalgum lugar específico, Ele existe. Carece-se descobrir e chegar a esse canto dEle existir. Fora ou dentro das pessoas, ou nos dois lados de mundo. Há olhos de ver. Olhos abertos na luz ao meio-dia. 

A cigarra não toca faz dias avisando o correio no portão. E essa carta que, chegando, nunca chega. Chegará. De algum modo virá. O caminho mais curto?... Não se sabe, não. Sabe-se, sim, que vem; até um passarinho contou a Chico Buarque que vem vindo... passos longos-breves no corredor interminável das horas... 

Pela Internet, via satélite, telefone, avião, trem, navio, cavalo, bonde, a pé, de ônibus, no vento, nos livros, nas garrafas, nas cheias do próximo inverno, em editais, bancas, letreiros, cartazes, petições, jornais, no cinema, teatro, televisão, mercado, canaviais, praças, música alternativa, janelas, pregões, porres, escolas de samba, naves metálicas, jogos, comícios, telegramas, shoppings, panfletos, colagens, festivais, missas, cultos, etiquetas, cupons, reprises, universidades, reuniões secretas, poluição sonora, sessões, mototáxis, caminhões, curtas-metragens, passeatas, celulares, carruagens, andores, museus, agências de viagem, reembolso postal, quermesses, serestas, pichações, folhas corridas, fotografias, radiografias, faixas, pesquisas, catálogos, cordéis, decretos, metrô, mandados, revistas, discos, teses, locadoras, matinais, copos descartáveis, xerox, mobilizações, tevês a cabo, cardápios, conferências, telas, quadros, fitas, representantes comerciais, cd-rom, planos de governo, prostíbulos, carros alegóricos, de som, correntes, vitrines, programas de auditório, manuais, fogueiras, receitas, bulas papais, cadernos b, suplementos dominicais, trios elétricos, show de milhão, repartições públicas, loterias, correio mesmo (por que não?), solidão, realidade virtual ou coisa definitiva... Vem ela a caminho... Caetano viu numa música que virá... E descerá no Planalto Central... 

Por conta disso, olhos fixos nas movimentações do comboio, rua acima e abaixo, ouve passar o caminhão do lixo; lembra ser sábado e que não passará correio nesse dia. Então, assim também é bom, porquanto ficará mais tranquilo, noutra tarde. Não chegará correspondência. Vai cuidar mais uma vez dos bichos, no quintal, do banho, de si, lavar o carro; de novo, amar a companheira; duas, dezenas, milhares. Sonhar, filmar, contar suas iguais fantasias eróticas; contemplar as flores no jardim na praça, escutando pássaros, nos começos de noite. Quando chegar, pretende recebê-la a caráter, braços abertos e modo melhor, essa tal missiva, tantas vezes horas, meses, séculos, alimentada nos seios flácidos do coração insistente; com os braços pregados em cruz na mesa do jantar, entre xícaras, talheres, bolos e bules fumegando...    

Nenhum comentário:

Postar um comentário