sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Desobediência

Virgínia e Janaína reviravam a gaveta da máquina de costura da mãe para, em seguida, localizar a fita métrica, o que envolveram em suas brincadeiras, fazendo dela uma ponte da tevê ao encosto de cadeira próxima. Já antevendo conseqüências, alerto para não fazerem da fita uma barbante e quererem com ela atar as peças entre si, danificando assim aquele instrumento de medir feito de tecido.

                                Não deu outra. Daí a pouco, Virgínia me procura mostrando desconfiada o produto de sua travessura, e foi pedindo:

                                      - Pai, desdá aqui esse nó.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Enquanto isso


O mundo é formado por muitos mundos. Uns estão conectados. Outros, não.
Wim Wenders (Dias perfeitos)

Nada sendo, porém, eterno daquilo que se ver, no entanto restos dos dias desfeitos lá nas alturas do céu. Pequeninos seres que o somos, ávidos instintos em movimento, daqui nascem os sentidos na forma da permissão do que possa acontecer, escrito nas folhas secas jogadas ao vento dos finais de tarde e que forram o firmamento de sonhos na forma de nuvens já um tanto sombreadas do clarão do Sol a sumir entre as árvores no Poente. Esses tais habitantes doutras estrelas seguem destinos entrelaçados às noites de amor intenso. À força extrema de uma paixão, sustentam o desejo na forma de alimento dos deuses em si próprios, instrumentos desse entrelaçamento de novos sons ao ritmo do coração em festa.

Há nisso existências inteiras, inevitáveis, a sobrevoar o paraíso da imaginação, vontade sacrossanta e suprema de domínio das cores vivas da memória. Entes a bem dizer reais lhes percorrem nervos e veias, palavras largadas no léu do tempo, deixadas ali em face das horas arredias, faceiras que desmancham o gosto puro e simples de falar, contar dalgum segredo desfeito nos trapos e fascínios.

Enquanto querer sem conta invade o mesmo espaço antes adormecido, agora, contudo, feito de pequenas frestas na empanada do horizonte, nisto o suspiro dessa fome de afeto gera o que poderia dizer gestos de novos senhores agora inexistentes. Máquinas talvez suficientes firmam outras histórias nunca escutadas, previstas, amáveis, surrealistas, fortes sintomas, suspiros e gestos, razão de tudo, afinal. Uma gente ouve as falas de tantos, murmúrio dos rios e mares, benditos, sinos, cantigas, ruídos mecânicos alimentando os séculos. Busca persistente faz dos dias meros autores dessa epopeia, durante a qual longa jornada de todos eles vira a página do Infinito.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

O orixá Tempo


Esse correr sofisticado dentro e fora da gente, o Tempo, deixa marcas profundas e definitivas em todos os lugares, nas lembranças constantes de tudo em volta. Ser paralelo, observa-nos misteriosamente. Espécie de testemunha de nós mesmos, somos esta conversa conosco próprios nos mínimos detalhes sobre tudo aquilo que acontece e passa aos nossos olhos, guardando todos os aspectos e, depois, negociando retornos sem conta, pela imaginação, a dizer do quanto restou daquilo espalhado em universo por demais inalcançável e que se desfaz aos nossos passos na medida dos sóis em movimento. Ele, pois, possui status sem igual, de respeito profundo junto aos cultos africanos do Candomblé, sendo ali reverenciado com imenso carinho, o orixá Tempo, matriz do quanto existe e existirá perenemente às dobras do Infinito.

Vive ele impávido à sombra de todas as memórias, qual origem das horas e o barco da imensidão do que resta acontecer. Ente porquanto inigualável, circunda os céus e as entranhas das existências, guardião das infinitas circunstâncias ainda adormecidas, ou deixadas lá no passado mais distante, debaixo de emoções então atravessadas por todos viventes. Algo assim a bem dizer inexplicável, inarredável, porém nada existe que dele possa prescindir.

Nisto, ao querer reencontrar o tanto até aqui vivenciado nos quantos lugares e momentos, experimento um sabor de mim mesmo que consiste em querer contar detalhes das histórias gravadas nalgum arquivo secreto, preenchido de todos aqueles instantes do que hoje sou. Um eu que pensa, sofre, ri, ama,  espera, trabalha, viaja, planeja, lê, presencia o sonho de estar aqui, contudo enigmático tal filho dileto do Tempo.

Há nítida interrogação entre quem seja ele e quem nós sejamos parceiros dessa jornada imprescindível do existir diante de presenças e ausências, amores, sonhos e saudades. Disso vêm os edifícios da aventura humana. Sabe-se pouco, quase nada, do que vivenciamos pelas crostas enigmáticas da Natureza. Criam-se mil denominações, descrições, narrativas, donde nascem as artes, os segredos milenares de lendas e cantigas, livros, filmes, melodias, lado a lado conosco e senhores absolutos desta ânsia que desempenha tecer a Criação pelos abismos dos milhões de jornadas inevitáveis e segredo de todas as revelações que virão à tona no Tempo e Senhor.

(Ilustração: Orixá Irôko ou Tempo (https://magicocaldeirao.wixsite.com/site/single-post/2015/12/21/orix%C3%A1-ir%C3%B4ko-ou-tempo).

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Da Constelação de Cocheiro

Conta a tradição hermética que estamos vindo como espíritos da Estrela Cabra ou Capella, na constelação de Cocheiro - onde três planetas dessa constelação, juntos, haviam chegado ao nível em que vivemos na Terra hoje. Então ocorrera uma guerra e uma transformação. Os que evoluíram e compreenderam o Amor ficaram como herdeiros de suas pátrias planetárias.

Os outros foram deslocados a outro planeta do nível do que desaparecia, de expiações e provas. E aqui se destacam ao chegar na Terceira Raça Mãe, sendo denominados Árias, Egípcios, Judeus e Asiáticos (China/Manchúria/Japão).

Vivemos momentos semelhantes àqueles agora em que a Terra passará de expiações e provas para mundo de regeneração, onde Jesus Cristo comanda essa mudança.

Choque de meteoritos

Querer, exatamente, foi por querer muito que as dores cresceram dentro de si, numa firme vontade de descobrir, intenso e real, o Amor entre os seres.

Ela chegara no instante ideal de que um coração não pode esperar maior mérito, somente viver febricitante a expectativa de união entre dois corpos felizes.

A barra da madrugada cercou a ambos de aura luminosa, que os olhos ardentes lambiam como a manteiga no pão do café, à margem da estrada.

Os dois aflitos de felicidade a se entregarem à brisa jogada nas faces pelo quebra-vento dos lados, enquanto o Sol crescia de amarelo-ouro nas ondas fogosas do mar.

A presença de Deus lá no horizonte, onde nuvens brancas e cremes repassam o cenário azul dourado que se fez moldura de uma fração tão bela da existência deles imortalizados no sonho.

 

sábado, 24 de agosto de 2024

Sonhos de perfeição


Eis então que acreditei no Pecado Original, que não é nada mais do que a primeira vitória do ego.
Czeslaw Milosz

Quando isto aconteceu de uma hora a outra, em meio a memórias, pensamentos e palavras, chegavam de novo as ideias do quanto, lá num tempo imaginário que se tenha de aceitar, há de se remover montanhas qual o velho da fábula chinesa de acreditar no impossível e viver às margens do Infinito. Por isso, diante dos eternos seres em movimento quais aqui agora, vagos senhores de espécie estranha, abstrata, ainda na busca de conhecer donde vem e aonde vai, olhar-se-á a si e revirará os astros em meio de flores e fragmentos.

Isto bem significa, pois, tocar em frente o desejo de ser qual somos, artesões em delírio, só, porém, enquanto fixamos extasiados o oceano em volta, navegantes das alturas em barcos de papel; tantos afazeres e cicatrizes, doces amores e miragens intensas pelas encostas do firmamento.

Algo assim que sobrevive às quantas gerações, deixando ao léu relíquias e monumentos soterrados nas idades afora, contudo luzes de persistência no ímpeto de acontecer nalguma dessas luas mais intensas. Sobreviver com isto a enormes anseios que nos contorcem as entranhas, tais pequenas fagulhas de fogueiras monumentais, somos quais nuvens de poagem escura sobre esses montes de solidão onde plantamos o futuro. De furiosos vilões enlouquecidos a santos viajores das planuras sem fim, nós, lúgubres criaturas de contos e romances, personagens e autores dos mesmos delírios a todo instante que passa.

Logo ali adiante, dentre luzes e bênçãos, virão, outrossim, as hostes da transformação inolvidável de que avisaram os profetas nas suas angústias, desde sempre; de rústicos precursores, nesse momento, ver-nos-emos hércules e titãs a refazer as trilhas do mistério, cobrindo-nos das lavas de uma fumegante felicidade.  

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Um Nordeste revisitado


Naquele 28 de setembro, numa das salas do Cariri Shopping, vi O caminho das nuvens, filme do diretor Vicente Amorim, que há coisa de dois ou três meses teve algumas cenas rodadas nesta Região, utilizando também mão-de-obra local.

Calcado na história real de um cearense de Penaforte, o argumento relata a epopeia de família pobre de nordestinos, pai, mãe e cinco filhos, que realiza percurso da Paraíba ao Rio de Janeiro, passando por Juazeiro do Norte, montados na sela de bicicletas.

Incidentes variados e encontros fortuitos marcam o itinerário, vistos sob ângulos subjetivos de cada um dos personagens, sem preocupações cronológicas, diante da trilha de canções do rei Roberto Carlos, a quem o filme vem dedicado, nalguns momentos interpretadas pelos próprios atores.

A meiguice de Cláudia Abreu suaviza os estirões ásperos da paisagem de sertão e periferias interioranas por onde o autor conduz a trama, por vezes sob lances extremos de tensão emocional, quais na abertura, quando o filho mais novo, esquecido no meio do asfalto, por pouco não causa trágico acidente, e na ocasião em que Antônio, o mais velho, defende a mãe das garras amoladas de capataz inescrupuloso. 

A luz da caatinga nordestina revela no cinema o fervor do sol ardente das  temperaturas elevadas como elemento fílmico, a lembrar o clima de O cangaceiro, de Lima Barreto; Deus e o Diabo na terra do Sol, de Gláuber Rocha; e Vidas secas, de Nélson Pereira dos Santos.

A marca da religiosidade promove o nexo causal do desenrolar dos acontecimentos, identificando personagens e existências com a busca extrema dos valores eternos. Vêm ao Horto do Padre Cícero na intenção de juntar forças de continuar até o Rio. E junto à estátua do Cristo Redentor, pedem coragem de seguir até Brasília.

O pai alimenta a certeza de achar um emprego que lhe remunere com R$1.000,00, valor que considera indispensável para a manutenção justa da sua família, motivo presente nas razões externas do projeto.

Um aspecto negativo desse trabalho, no entanto, prende-se aos resultados do patrocínio recebido da Cia. de Cigarros Souza Cruz, cujos créditos ficam logo na apresentação, ao lado de outras marcas conhecidas (Petrobras, BNDES, etc.). A contrapartida não poderia dar noutra: repetidas vezes o pai, além de fumar, coisa fora de moda e viciosa (vistas advertências legais dos anúncios de televisão), chega a oferecer cigarro ao filho mais velho, gesto nocivo, que nem para custear a heróica indústria cinematográfica brasileira se justificaria (os fins não justificam os meios).

No Alto do Corcovado, após todos os percalços da impossível viagem, quando o marido procura na paisagem os rumos da Capital Federal, o casal reatualiza seus planos, e a mulher quer resguardar a família, propondo a desistência da jornada. A isso, porém, contradizem os olhares cúmplices trocados entre ambos, na linguagem silenciosa do sonho de prosseguir com a aventura, nos moldes do título, de andar pelo imaginário do caminho das nuvens.      

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

A dor da inconsciência


Diante da visão de uma ordem no Universo, o animal pensante se aflige de ainda não viver em si a perfeição que acontece nos fenômenos em volta. Face a face consigo mesmo, tem de agir sob as limitações desse desconhecimento. Daí nasce a culpa da imperfeição que lhe atormenta dias e noites, na ânsia de lá a um tempo desvendar o mistério de ser assim, ser em fase de crescimento, porém. Nisto passa a reconhecer, gradualmente, o nível precário da impermanência que tortura as entranhas, sendo vítima de sua incúria, aprendiz das próprias precariedades.

Conquanto vítima, pois, dessa condição de pensar e chegar apenas às raias da imaginação do Absoluto, pode vislumbrar, no auge dos desejos, a distinção tão só em fagulhas desse ente em elaboração na alma de todos, a fingir já dominar a qualidade que o cerca. O palco do Infinito revela toda luz aos nossos olhos, contudo num senso restrito ao querer por vezes vazio, que impera e machuca de saber tanto, todavia dominados pelas forças do Tempo e do Espaço, a nos aguardar logo ali ao sabor da Eternidade inevitável.

Com isto, vêm as agruras de pertencer ao mundo interior em aprimoramento, fruto das iniciativas pessoais e dos motivos de conhecer o que nos fará livres, e praticar a Consciência. Vêm daí filosofias, psicologias, religiões, caminhos abertos a quem os possa deles obter a prática e desvendar o prumo de nossa infinitude.

Por isso, a existir no espaço constante das eras em volta, braços abertos à realidade qual instrumentos de revelação e aceitar a pequenez da matéria e seus prazeres imediatos, os humanos padecem a culpa das escolhas inferiores de então, ocasionando com isto o sofrimento transitório. Este contém a cura, porquanto afasta dos seres a vontade de querer alimentá-lo sem fim. Enquanto isto, entre a dor e a culpa identificaremos as margens da Perfeição.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Eros e Psiquê


Desde o Olimpo, a deusa Afrodite reconhece em Psiquê, uma linda jovem mortal, alguém de beleza superior à sua, e, com isso, decide que ela não deveria concorrer com os deuses em tão rara fisionomia.

Por sua vez, Psiquê possui duas irmãs que logo se casam e seus pais ficam tristes de ver a mais bela filha sem um esposo; daí decidem obedecer a uma determinação de que esta fosse vestida de noive e posta no alto de um monte, de onde um mostro viria a lhe desposar.

Na verdade, isto fora um plano de Afrodite para que a linda jovem fosse recebida por Eros, filho seu, assim excluindo-a de entre os mortais. Nisto, Zéfiro, vento de largas proporções, arrebatou Psiquê, levando-a a um vale de raras maravilhas, onde passaria a viver com Eros em um palácio, porém com a determinação de nunca poder ver a face deste, condição que impusera o marido.

Vivem felizes longas datas. Lá um dia, Psiquê decide rever sua família e reencontra as irmãs que indagam do seu matrimônio e de seu esposo. Ao saberem que a irmã jamais vira o rosto do companheiro, provocam meça a curiosidade a tal intenção.

Quando regressa ao palácio, numa madrugada, Psiquê resolve observar a fisionomia de Eros, qual até ali não fizera. Acende uma vela e, nisto, se encanta pela beleza do marido a ponte de deixar cair um pingo de vela em seu corpo, despertando-o. Por perceber que a companheira havia descumprido suas ordens, fica enfurecido e resolve abandoná-la.

Vistos, em consequência, o desespero de Psiquê e o sofrimento de Eros diante da repentina separação, Afrodite apieda-se e dispara uma fecha contra a jovem, trazendo-a de pronto ao panteão dos deuses, quando, então, viveria, em toda Eternidade, junto de Eros, num sonho incomparável do Amor e da Consciência.

(Fonte: Mitologia grega).

(Ilustração: Eros e Psiquê, de Kraser Tres (https://www.festivalartsur.com/eros-psique-kraser/).

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

O banquete


Certa feita, a majestade inglesa ofereceu um lauto jantar aos embaixadores de alguns dos países com quem mantinha estreitas relações diplomáticas.

Doze belos talheres haviam sido distribuídos de modo estratégico no entorno de uma mesa circular reservada aos banquetes íntimos, nutrida dos mais saborosos pratos. Cercada de pompa e festa, ao centro do móvel, em meio às requintadas iguarias palacianas, rica e espaçosa travessa de porcelana chinesa oferecia, talvez por mero equívoco, no lugar de doze, treze belos bifes sangrados, temperados no molho suculento da cozinha britânica.

O passo natural do protocolo da cerimônia realizava os convivas, bem servidos de quitutes e vinhos selecionados; estabelecera-se animada conversação dos assuntos políticos em voga. Ocasião semelhante propicia fino enlevo ao mundo faustoso daquela gente.

Na segunda metade da reunião festiva, isso quase para chegar ao término da ágape, altaneiro, na guarnição em que fora servido, jazia único o exemplar daquele prato principal. Um bife remanescia destacado à visão dos presentes. Quem sabe ainda famintos (?), estômagos reclamavam desejo mal disfarçado através dos olhares insistentes numa só direção, à travessa reduzida em que imperava o derradeiro requinte. Ah! o décimo terceiro bife que ali sobrenadava, no saboroso molho...

Nesse tempo neutro, por mera coincidência, entalhe desses acontecimentos que não escolhem instante adequado de se configurar, houve uma pane de rede e o sistema elétrico apagou todas as lâmpadas sem aviso (coisa que nos países ricos também ocorre). Durante rápida fração de tempo, a sala ficou inundada de escuridão profunda. Em acréscimo, qual recurso de cena usado numa peça teatral imaginária, o silêncio, antes exaltado, fez-se rompido por grito lancinante de origem desconhecida, para acrescentar emoção ao clima do lugar, multiplicando mais ainda os sinais de interrogação, no íntimo de todos, ora ansiosos pelo retorno da claridade.

Depois, apenas alongou-se mínima demora, fornecendo luz de volta ao ambiente solene. Aí, evidenciada se via, em cheio, na máscara de dor que lhe dominava, o rosto transtornado de um dos estadistas, que buscava agasalhar, junto do corpo, a mão tinta de sangue, frechada por onze amolados garfos, alguns dos quais ainda trazia enfiados no dorso, enquanto outros se espalhavam sobre a mesa. Dá para pensar que ele, antes, jamais imaginara, nessas relativas circunstâncias, vir a sofrer na própria carne o firme e rebrilhante aço inglês, em estado de si tão vexatório.

domingo, 18 de agosto de 2024

A essência de Si


Se caíres no oceano da vida exterior, como uma perdiz cujas asas e penas já não podem sustentá-la, nunca deixes de pensar como chegar à praia.
Farid ud-Din Attar

A ânsia que lhe fez sair do Paraíso, na fase intermediária em que estamos entre a sombra e a Luz, desde então se vive a vaga do sabor das circunstâncias, exclusivo dos prazeres imediatos desse mundo denso. Fosse, no entanto, avaliar o quanto lhe resta de jornada até rever o crivo da compreensão, ver-se-ia nos mesmos abraços da Mãe Natureza que lhe trouxeram até aqui, quando sustentava claro o vínculo direto com a Eternidade, raiz de dores e esperança de outro sol que nascerá.

Um céu de luzes e cores, contudo, alimenta de respiração os seres que somos, e, nisso, quantas aventuras restam ninguém ainda sabe, exercício da compreensão fiel do que haveremos de ser nalgum dia. Dotados de imaginação suficiente a obter o alimento da certeza, mesmo assim persistimos em aceitar a determinação de acreditar nos valores que tão só agradam o corpo de matéria, nosso instrumento de cura que desfazemos ao furor dos apetites físicos. Somos isto, um trecho intermediário da experiência dos sons e das horas que conosco se desmancham de fragmentos e dores.

Ainda que tal, reveremos o trilho que deixamos após entregues à dualidade dessa história. Puros aprendizes de Si, divisamos nova satisfação a todo instante, num adiamento sistemático da realidade verdadeira em nós existente.

Eis a longa caravana que impera no saber de todos, justos detentores da liberdade, porém longe que estejam do senso absoluto de uma busca incessante, contraditória. Estranhos a Si, palmilhamos o caminho da realização sob o crivo dos danos imediatos da fome de degustar o quanto permitam os sentidos. Pelos iguais motivos de contestar a fonte original da Criação, quais cativos da desobediência, deixamos de lado a certeza da libertação definitiva a viver qualquer tempo.

(Ilustração; O sétimo selo, de Ingmar Bergmann). 

sábado, 17 de agosto de 2024

O triângulo secreto


Quéfrem, Quéops e Miquerinos, as três pirâmides do Antigo Império, em reprodução preto-e-branco, claras, no deserto cinzento, ele as retivera na visão interior, antes de agarrar o sono. Há dias, começara estudos de História pelos  primórdios, desde tempos imemoriais distantes de bilhões de calendários. Transpusera os períodos geológicos, chegara na pré-história (Paleolítico, Mesolítico e Neolítico) e, agora, introduzia-se no Egito da pré-dinastia e dos três impérios de 3.400 anos antes de Jesus. 

Dormira a sono solto. Pela madrugada, meio encoberto no pano fino afastado das pernas, o sonho revelara desejos recolhidos de valores sinceros.

A princípio, dançava na quadra do colégio das freiras; ele, doutra geração, via-se caracterizado de bacamarteiro, em mescla azul e lenço vermelho amarrado no pescoço, a segurar espingarda de cartuchos e rodopiar entre jovens figurantes do folguedo imaginário, de longe observados por multidão silenciosa.

Com ênfase, adotava no espírito os passos da dança, mais talvez do que os outros. Sentia o ânimo daqueles movimentos animados. Num lapso crítico, distanciara-se   analisando os companheiros de folguedo, quando visualizou a moça alva, cabelos aparados, bela, feições reconhecidas, que observou o seu olhar masculino, penetrante, logo abaixado, contido.

Via, por perto, outras moças, todas despidas, castas, de cócoras ou sentadas no chão, de vaginas à mostra. Em relação às demais, conseguira manter a distância regular de sincera contenção, a compostura, assim dizem. Dela, porém, sentira vir força envolvente, a lhe amparar os sentimentos, esquecidos exemplares de velhas paixões abandonadas, em posição  defensiva, cura das dores inconsequentes.

Não sabe bem explicar porque; em seguida, percebeu-se ele, os dois deitados, e ele de novo, amando com gana e alegria vitalizada. Seus dedos ansiosos acariciavam prudentes o líquido viscoso escorrendo profuso da junção das pétalas de uma vagina rosada, carnes receptivas, entumecidas e perfumadas de suave frescor primaveril.

No auge dessa paixão vigorosa, renascia-lhe o drama da infidelidade, qual premido nas unhas afiadas do superego repressor, despeitado fiscal dos fulgores juvenis e da felicidade física, coisas descartadas no processo de sublimação, distanciamento útil da matéria densa,  ensinos trazidos das escolas de que aprendera os ditames da lei, corretivos de erros vividos.

Todavia, no sonho, na sequência imediata, uma programação de tv mostrava herói americano enlaçando sua dama, situação idêntica, veterano apaixonado em revivescências jovens, como quem chamega as dobras de mornos lençóis festivos, desses de renovados sonhos. Algo se acalmava por dentro e persistia feliz, legitimando as cenas multicoloridas lançadas tela afora.

Depois, desconfiado, acordara cabreiro, no entanto saciado, considerando na lista dos quadros passados as infrações cometidas, por conta automática dos códigos morais sociais, no a fio da procura da perfeição. Um misto de prazer e culpa rondava-lhe os corredores do ser, profundas cavernas individuais.

Calmo, estimava cuidadoso o preço da onírica aventura. Caçava apressado, no lençol da cama, as preocupantes poças de esperma, no pijama, na colcha, flagrante delito. Leveza na alma de nenhum sinal positivo: não ejaculara, coisa rara em ditas circunstâncias.

Ainda tocou a companheira, bem ali do lado, quente, cheia de vigor, amor a oferecer, sem, contudo, aceitar-lhe os carinhos constantes, frustrados. Somas de inúteis respostas indolentes. Sozinho...

A imagem das pirâmides outras vezes quis voltar aos pensamentos. As três. Os três. Mas quem? Onde? Quando? A quem perguntar? Em que infinita dimensão fugidia? Concreta? A outra pessoa, terceira, límpida, alva, amante, saborosa... No desejo solto, chegava as frestas de um dia luminoso, querendo rasgar normas... Mistérios... Lupas cegas, capitães de tudo, na ordem imposta, nas coisas doridas...

Rápidos instantes, após despertados, ele e a mulher viram-se, indiferentes olhares, cúmplices do triângulo secreto, mudos personagens de sonhos reais e irreais das vidas mistas, incompletas, de mundos eternos... venturosos... Quéfrem... Quéops... Miquerinos... 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Sons do Poente


Nesses finais de tarte, tudo vem à tona de novo doutros tempos aqui mesmo em Crato, época dos anos 60, nossos dias de interrogações sacudidas pelo mundo afora entre ecos distantes de guitarras, lamentos de guerras e expectativa do que estaria a caminho desde então. As emanações da Aldeia Global aos poucos expunham sua face através dos meios de comunicação de massa e chegavam aos rincões da infinitude lá de longe, nas quebradas do imenso Sertão. Nós, geração dos mais recentes aventureiros da sorte, agitávamos os anseios e saíamos claudicando na fome dos passos seguintes, a reunir versões variadas dos dramas contidos no cinema, na música fervilhante dos festivais doutras nações, bossa nova, protestos, olhos fitos no revés de um céu corado nas luzes do interior.

De tudo isso agora restam iguais emoções, amores esquecidos pelo tempo, na alma das criaturas. Reconto quais histórias nos alpendres do coração, sustentando os desejos de quantas epopeias trazidas pelos livros, filmes e discos, numa sustentação inesperada de que tudo mudaria e guardaria em si outras paisagens do Eterno que vivem aqui conosco sem cessar do jeito idêntico do que fora. Os heróis, as estrelas, as bandas, os acordes dissonantes, estridências das primeiras harmonias, viagens sem destino, noites de multidões entorpecidas no âmbito de perguntas vagas do que viria depois e que hoje somos.

Bem isto, o furor dos fins de tarde espalhados neste pé de serra silencioso, próprio a desfrutar dos instantes mágicos de uma juventude algo fantástica, dos filmes de ficção científica nunca desaparecidos, no entanto. Lembro com imensa facilidade de todos eles, detalhes, personagens intrépidos e perdidos naqueles céus cheios de lendas, à espera das luzes tão asseguradas pelas convicções dos nossos infantes adormecidos nas telas escuras.

Contudo, ainda que passemos pelas encostas disso que agora produz lembranças de ocasiões adormecidas, ainda assim quais frutos colhemos desses plantios? – pergunto calado. - Aonde foram parar nossos sonhos de Paz tão alimentados nos grupos e nas esperanças felizes que nutriram aqueles jovens sonhadores? A tarde apenas escurece no azul entre as árvores e adormece aos derradeiros clarões de nuvens avermelhadas...

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A busca da felicidade


Às portas do Infinito, longa multidão mergulha silenciosa pelas dobras do firmamento a largos passos, faces sombrias. Viagem constante onde há de tudo, porém. Fossem buscar outro sentido, dar-se-ia face a face consigo própria, os eternos aventureiros do Destino.  Meios, no entanto, são todos esses dentro dos quais vivem os humanos. Instintos. Desejos. Ambições. Numa sequência de muitas cores, criam e ilustram as artes ilustram a História e, nisso, ouvem-se os sinos da Esperança. Jamais, no entanto, haverá a razão das desistências, conquanto instrumentos de interpretar andam a todo momento.

Na verdade, as pautas e as filosofias voam pelos céus tais nuvens de possibilidades, entes vivos na alma da gente a pedir consciência e oferecer os sabores das tantas lendas, dos mitos e sonhos. A todo tempo novas possibilidades rasgam a lona do mistério e oferecem chances e valores de construir o quanto resta até chegar no outro lado de nós, a arca do quanto existe desde sempre.

Assim, nesta sociedade também afeita a uma vida provisória nos campos vastos das tradições, constam os registros aqui guardados pelas lembranças, entre palavras, livros, viagens, pura convicção do quanto valerá sermos entes dignos de libertação lá certo dia. Romper as amarras do apego e sobreviver diante do impossível que tal. Bem isto o que sejamos durante as existências, seres à procura da Luz.

Lembro das idades que ficaram e revejo a perfeição que nos comove perante os desejos esquecidos. Algo conta, convida a novos instantes definitivos que venham a ser logo ali adiante. Parceiros dessa caravana ondulante no deserto de um a um, postulamos paz no coração e neste mundo. Dobramos dias sucessivos ao clarão dos novos tempos, feitos senhores do futuro. Ouvimos, por isso, a sinfonia da certeza do que ora plantamos, numa festa de alegria e pura felicidade.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Um ser enigmático


Enquanto os outros animais apenas vivem o que ora sejam, os humanos padecem da ânsia incontida de ser mais e mais. Nem sabem o que já sejam agora e insistem noutras experiências, numa espécie de padecimento, autos sacrifícios que isto lhes atravessa o caminho milênios que haja desde sempre, solidão.

Daí seguem a viver quantas condições defrontem pelas jornadas em trâmites afetuosos. Aqui observam o exercício da histórica liberdade. Ali meros aprendizes de práticas insanas, enganos e cascalhos. São tantas as histórias, o suficiente de preencher, todos eles, resultados em elaboração de uma busca incessante. No mínimo criaturas existindo sob os véus do desconhecido.

Vez em quando, afloram esses diferentes seres daquilo que antes apenas imaginavam que fossem. Nutrem de camadas geológicas as civilizações, os monumentos, as narrativas, que deles restaram. Dão voltas sucessivas em torno de si mesmos, afoitos criadores de obras inexistentes às folhas do Tempo. Seres quais parceiros da Natureza, no entanto suas produções em movimento face a face com o Infinito. A si caberia conhecer do que experimentam, contudo logo esquecem no passar das luas pelo céu, e sofrem, gemem, desaparecem.

Isto, este algoz enfurecido, nas portas do invisível no decorrer das idades, porquanto esteja fiel ao Destino, contudo se reveste de pergaminhos que somem nos movimentos aos pés de onde persegue a fama. Na exatidão matemática do mistério, carrega o íntimo de cada humano todas as respostas agora existentes, que representam o senso aproximado desses tais que a tanto vieram a então responder. Assim, qual o quê, esdrúxulo, mistos de fama e talento, raiz e coração, aventureiros de noites escuras e escombros das guerras atrozes que inventam. Nem de quantas gerações sabemos, vêm os espíritos agregados aos séculos nas presas do inevitável. Argumentos, realizações e relíquias, eis os tais habitantes desses veleiros que desaguam nos olhos perfeitos de quem os comanda.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Os lugares e as lembranças


Surpreendente a força que as lembranças retiram dos cantos do que aconteceu naqueles palcos vivos. Uma enxurrada dos pontos fixos permanece ali deixados nas encostas donde se deram, agora no formado de vivências individuais. Tantas, muitas situações vivem soltas assim pela memória, trazendo de volta, com clareza meridiana, mínimos detalhes daquilo tudo vivido naqueles lugares. Isso deixa margem à certeza de que os registros permanecem guardados para sempre diante dos acontecimentos que somem logo a seguir, e que de dentro da gente nunca mais se apartam, servindo de lições, fragmentos a serem juntos, razão do desfilar dos momentos na tela das almas aqui de fora.

Numa hora ou noutra, paro e vou só mudando os alfinetes de lugar nesse mapa da consciência, fixando em pontos diversos o que quero nisso recordar, exercício por demais valioso a que interpretar as peripécias do Destino pelos vagos das existências. São infinitas, quase, tais presenças mesmo atuais no instante que desejemos reviver, pois.

Isto sobretudo na infância, de quando atravessamos experiências inéditas, frutos do desconhecimento tantas vezes, das primeiras visões de horas e os transes inesperados. Marcam a perder de vista o sentimento através das emoções, das dores e alegrias conquanto provenientes, talvez motivo sem o qual não tivessem tamanha consistência nos charcos dessas lembranças definitivas cicatrizadas nas pessoas.

Pois bem, patrimônio inarredável conosco transportamos vidas adiante, caudal primitivo de quantas verdades dali reunidas em formato de saudades e firmes recordações. Essas marcas silenciosas é que somos nós, passageiros das estradas deste mundo, um a um, valiosas criaturas e senhores de seu passado. Disso tiramos conclusões e formamos o quanto existirá no tempo que ora significamos, depois lá de onde estivemos e das histórias que movimentamos na essência de infinitos seres em crescimento neste Chão.

(Ilustração: Brueguel, o Velho).

domingo, 11 de agosto de 2024

A eternidade do instante


Invés de deixá-lo ir, sigamos juntos. É a ciência de tudo, enquanto. Sustentar do Destino nas próprias mãos. Ser isto, Amor antes de tudo. Conviver diante das sequências naturais desse álbum de figurinhas que significar existir. Sobreviver aos embates das ondas deste mar infinito do que somos a parte mais significativa, porquanto sabemos e asseguramos à luz da Consciência. Nos olhos abertos ao fogaréu do momento presente, assim desenhamos nas rochas dos céus a vida que somos ao luar de quantas noites e sóis de longos dias.

Bem isto de uma melodia perfeita, todas as notas habitam fieis a pauta da presença, barco de cores e sons, risos e beleza, autores que escrevem roteiros intermináveis, geração após geração, na tela multiforme da alma. Nessa jornada de todos os reinos, perlustramos de belas histórias o credo nascido das florestas do entendimento.

Daí o esforço de prosseguir na ânsia de se encontrar consigo mesmo, reunião de mil desejos e desejo de um Só na essência de Si. O gesto sideral das alvoradas, na certeza da compreensão plena do que nos trouxe até aqui desde sempre. O sentimento sabe decerto contar essa longa epopeia das origens de tudo quanto há. Isto de um simples fragor das verdades a preencher de perfeição as arcas do mistério de onde viemos dalguma circunstância justa e perenal.

Esse pomo do segredo qual constituímos de nossas ânsias e saudades guardadas a sete capas nos refolhos da presença, assim qual sejamos perante as horas e perante o definitivo de contar as lendas do Sol. Ente no entanto à busca do instante que nos constitui, aqui tangemos vagas sucessivas no leito dos sonhos, senhores absolutos da exatidão de onde agora chegamos, seres pequeninos, porém portas abertas da totalidade de um Ser único, magnânimo.

(Ilustração: A persistência da memória, de Salvador Dali).

Apólogo III


Numa bela manhã do inverno sertanejo, eis que sapo dorminhoco se viu acachapado na lama, debaixo das patas de touro pachorrento, descuidoso, muito bem nutrido e indiferente, que se deliciava no pasto de uma represa dadivosa.

Aflitos momentos atravessava o pobre animal, debatendo-se no propósito firme de reaver a inestimável liberdade; reconhecia, no entanto, as dimensões restritas do próprio esforço, querendo, ainda assim, preservar a qualquer custo os benefícios raros de permanecer inteiro e sadio na face da Terra, desejo partilhado pela grande maioria dos muitos que moram neste chão. 

Via-se empenhado no trabalho circunscrito, quando, na mesma hora, uma sariema, que descia para beber água no alagadiço da vazante, passou pelas imediações e percebeu, dado o aperreio daquela situação vivida pelo inditoso batráquio, ocasião ímpar de prestar-lhe solidariedade, por se tratar de um outro irmão da Natureza, cuidando logo de tomar chegada para descobrir mais sobre o caso, e (quem sabe?) auxiliar, permitissem os meios disponíveis.

- Camarada Sapo - foi o modo como a sariema prestativa se dirigiu ao bicho encalacrado, - o que fazes nessas circunstâncias tão desconfortáveis, constrangido sob o peso descomunal de tamanho gigante bovino?

- Nada não, dona Sariema - respondeu o sapo, que, esforçando-se ao máximo para demonstrar sinais oportunos de espontaneidade, ainda  teve fôlego para acrescentar: - É que estou apoiando, seu Touro, no zelo de prevenir que ele não viesse escorregar e cair neste traiçoeiro lodaçal. Aí, sim, me faria sofrer muito mais além da conta.  

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

E essa carta que não chega

 Bem ali, deitando na cama, barriga virada para cima, mãos entrelaçadas detrás da cabeça, ele acionara e aguardava abrir o computador. Lembrava do palco de teatro imaginário onde pudesse presenciar uma peça que nunca vira, mas que reconheceria pelo nome... Esperando Godot... Encenando a tal peça, morreu Cacilda Becker... Sabia, no entanto, que o autor, Samuel Beckett, nela, fala por meio de um diálogo de dois aflitos, na expectativa de lhes chegar algo hipotético, todavia coisa que não pára de se anunciar, nas frestas das conchas, nas histórias do povo, na prática obstinada de esperar o que vindouro vem; não viera; viria um dia. Os personagens, sempre de olhos postos nas dobras do infinito, guardam certeza de chegar essa encomenda do depois, aos toques impetuosos no teclado longo de um piano surdo, nebuloso; aquilo de drama-comédia, ranhuras definitivas no horizonte da alma, todos em si mesmos cientes da infalível anunciação sideral.

- Aquele não sei quem me disse que, não sei onde, feijão custa não sei quanto – das notícias do sertão.

Pacote amarrotado, ou carta boa, recheado dessas quaisquer coisas-surpresa. Há, sim, patentes, à espera, festas alegres, na força do otimismo, na saudade do feliz que passou e soube-se com o atraso de vários meses. Bonito. Esse mais bonito do que aqueles outros jogados fora. Achar, ou não, indica pouca mudança, entretanto.

O que sabia disso, contudo, alimentava seus sonhos o suficiente, esquemas e planos políticos favoráveis, na luz do merecimento das prendas positivas, escondidos sob as pálpebras ressequidas. Pois ninguém aceita resposta inadequada, ainda que pergunte do jeito que quiser, dizendo o que quer, sem querer ouvir o que não quer.

Tardes mormacentas sucedem manhãs de frias madrugadas, oferecidas nas noites silenciosas e promissoras. O inferno são os outros, afirmava Jean Paul Sartre. Todavia se ter no peito perfeição de realizações plenas, ideais.

O noticiário repete que os americanos invadirão o Iraque, à procura de Bin Laden. As fortes chuvas européias preocupam, nas cheias a confirmar graves transformações de clima na Terra, resultado das descargas constantes de gases poluentes na atmosfera. Lucro insano virou mania irresponsável das elites da raça. Imensa nuvem tóxica paira sobre a Ásia, com três quilômetros de espessura e milhares de extensão, a interceptar a claridade do Sol. As neves do Kilimanjaro agora no calor escorrem numa proporção estúpida. O mar sobe de nível. Pólos se desmancham na água salgada, sob o brilho da lua cheia de agosto, no céu. Números apontam segundo turno para as eleições no Brasil. Castas persistentes fitam o poder temporal, de lábios secos, olhos vermelhos. De garras afiadas, pêlo eriçado, vorazes candidatos observam atentos suas presas inocentes.

No rádio, velhas canções da infância. Perfume de flores secas no ar desse canto de quarto. Dez Anos, Linda Batista. Cigarro de Paia, Luiz Gonzaga. Cerejeira em Flor, Carlos Galhardo. Enquanto pulsa o tempo no relógio de plástico sobre a cômoda, ritmo cíclico, utópico, nas dimensões comovidas. Existe, sim. Ele existe, sim. Precisa-se conhecê-Lo de perto, o quanto antes. Mora dentro da gente, na casa das máquinas.

Em todos os lugares e nalgum lugar específico, Ele existe. Carece-se descobrir e chegar a esse canto dEle existir. Fora ou dentro das pessoas, ou nos dois lados de mundo. Há olhos de ver. Olhos abertos na luz ao meio-dia. 

A cigarra não toca faz dias avisando o correio no portão. E essa carta que, chegando, nunca chega. Chegará. De algum modo virá. O caminho mais curto?... Não se sabe, não. Sabe-se, sim, que vem; até um passarinho contou a Chico Buarque que vem vindo... passos longos-breves no corredor interminável das horas... 

Pela Internet, via satélite, telefone, avião, trem, navio, cavalo, bonde, a pé, de ônibus, no vento, nos livros, nas garrafas, nas cheias do próximo inverno, em editais, bancas, letreiros, cartazes, petições, jornais, no cinema, teatro, televisão, mercado, canaviais, praças, música alternativa, janelas, pregões, porres, escolas de samba, naves metálicas, jogos, comícios, telegramas, shoppings, panfletos, colagens, festivais, missas, cultos, etiquetas, cupons, reprises, universidades, reuniões secretas, poluição sonora, sessões, mototáxis, caminhões, curtas-metragens, passeatas, celulares, carruagens, andores, museus, agências de viagem, reembolso postal, quermesses, serestas, pichações, folhas corridas, fotografias, radiografias, faixas, pesquisas, catálogos, cordéis, decretos, metrô, mandados, revistas, discos, teses, locadoras, matinais, copos descartáveis, xerox, mobilizações, tevês a cabo, cardápios, conferências, telas, quadros, fitas, representantes comerciais, cd-rom, planos de governo, prostíbulos, carros alegóricos, de som, correntes, vitrines, programas de auditório, manuais, fogueiras, receitas, bulas papais, cadernos b, suplementos dominicais, trios elétricos, show de milhão, repartições públicas, loterias, correio mesmo (por que não?), solidão, realidade virtual ou coisa definitiva... Vem ela a caminho... Caetano viu numa música que virá... E descerá no Planalto Central... 

Por conta disso, olhos fixos nas movimentações do comboio, rua acima e abaixo, ouve passar o caminhão do lixo; lembra ser sábado e que não passará correio nesse dia. Então, assim também é bom, porquanto ficará mais tranquilo, noutra tarde. Não chegará correspondência. Vai cuidar mais uma vez dos bichos, no quintal, do banho, de si, lavar o carro; de novo, amar a companheira; duas, dezenas, milhares. Sonhar, filmar, contar suas iguais fantasias eróticas; contemplar as flores no jardim na praça, escutando pássaros, nos começos de noite. Quando chegar, pretende recebê-la a caráter, braços abertos e modo melhor, essa tal missiva, tantas vezes horas, meses, séculos, alimentada nos seios flácidos do coração insistente; com os braços pregados em cruz na mesa do jantar, entre xícaras, talheres, bolos e bules fumegando...    

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Algum ser inanimado


Isso diante do Tempo, este ator que nunca para. Face a face vão os dois nessas longas estradas do Destino, às vezes cobertos de andrajos, noutras senhores dos demais e envoltos de plumas e estanho. Eles os mesmos mergulhadores desses mares que cercam os continentes esquecidos. Seguem as estórias azuis; outras tantas na forma de longas nuvens avermelhadas tangidas do Nascente. Quiséssemos ou não, contudo seria assim até sempre. Palavras circundadas de brisa intensa durante horas a fio, só aguardando ocasião de saírem na busca dos céus vivos das almas em crescimento. As circunstâncias falam disto a todo momento, determinando normas e lutas, jovens mendigos ao abandono da sorte. Falam o quanto permite ao fôlego grandes massas de ilusão a cada momento. Secundados de velhas lendas, carregam o princípio da sobrevivência no trilho das melhores vidas ainda em fragmentos. São líderes, nalgumas situações, porém circunscritos aos valores criados nas entranhas de si, quais meros cativos de epopeias feitas nas rochas e largadas ao céu aberto do Infinito.

Aos primeiros passos, vieram civilizações ora desparecidas, viradas relíquias destes seres esquisitos. No entanto insistem os tais na sobrevivência a todo custo, sob os ardis de fatores até então ignorados. Querem marcar a ferro e fogo o prisma dos séculos, e constroem, tementes dos sóis, as ruínas escuras que os alimentam durante séculos sem fim.

Mas dizem inesquecíveis seus registros e mostram o desejo maior dos sonhos e amores adormecidos sob a relva do impossível. Fossem estruturas em desaparecimento e, de há muito, o teriam feito, sumindo pela escuridão das quantas guerras infindáveis. Justos motivos seriam insuficientes a contar essa história antiga de reinos em destruição. Vivem, outrossim. Insistem nas jornadas emocionais que lhes conduzem. Serão, por isto, herdeiros da espécie deste tempo, autores persistentes de existências sucessivas ao sabor dos instantes, marcas definitivas de eternos caprichos à luz do mais tenebroso mistério.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Sonhos reais


Estudiosos orientam que busquemos lembrar dos sonhos e deles fazer anotações, porquanto esse comportamento facilitará que deles recordemos gradativamente com maior facilidade. Dado serem provenientes do Inconsciente, nosso Eu interior, na medida do tempo estabeleceremos comunicação providencial com esse universo e enriqueceremos o nosso desenvolvimento psíquico.

Meus sonhos preenchem as noites inteiras, dos quais busco aprendizados e significações. Quando me vêm claros e ordenados, quase sempre os quero registrar e, eventualmente, os dou a publicação nos meus escritos.

Ao levar em conta este cuidado em anotá-los, venho percebendo isso de permanecerem mais tempo na memória, o que resgato pouco a pouco no decorrer dessa prática de querer utilizar de seus conteúdos. Conquanto exercito o tal método de rever seus conteúdos, nisto venho desenvolvendo conhecimentos, independente até de qualquer intenção fora das outras rotinas.

Todos temos essa alternativa de nos conhecer pelos sonhos, dotados de enredos precisos, roteiros cinematográficos, temas de romances e contos, ricos de valores, mudanças, avisos, espécies que sejam de uma criatividade formada de histórias, cenas, revivescências, arte plena de sustentação dos melhores autores. Às vezes, ao adormecer, levamos conosco dúvidas, ansiedades, questionamentos, e nos sonhos advêm respostas precisas daquilo, nos instantes mágicos dessas viagens inesperadas.

Este instrumento valioso, inclusive, consta de inúmeros registros místicos, avisos de seres doutro espaço a transmitir respostas elaboradas no mistério, a narrar segredos, soluções, tal provenientes de lugares espirituais, em seguimento de missões e compromissos. Os sonhos dos santos, dos profetas, cientistas, inventores, por exemplo, dotados de significados e prenhes de conotações inesquecíveis e úteis, no tempo e no espaço.

Dados tantos motivos, os sonhos ocupam território ainda pouco compreendido, além das razões que consideramos acima, de oferecer matéria prima às interpretações pessoais do Inconsciente, portal do desenvolvimento interior nas criaturas humanas. Diante das conquistas da Ciência e da Tecnologia, decerto virá quando, um dia, desenvolverem um instrumento que possa gravar sonhos, algo de rara potencialidade, donde conhecer-nos-emos através de meios avançados, talvez que já esteja em fase de aprimoramento nalgum canto deste mundo, a máquina de gravar sonhos.

(Ilustração: Sonhos, de Akira Kurosawa).

Na busca da essência


Circunstâncias variadas assim norteiam avaliações periódicas mais do que oportunas nesta época de muito acontecimento e raros intérpretes fiéis. A massa noticiosa enverniza mentes, criando viciados, homens ou números, a transportar canga cotidiana quais bois de carro; paisagem onde o Estado virou mandatário pluripotente e amargo signo de aço tecnológico entre filas, decretos e conferências de cúpula...

Nestes tempos, o patrocínio dos instintos achou sua moeda de troca. Valores morais tiveram de ser adaptados às necessidades momentâneas. Detalhes minoritários pesam pouco ou inexistem nas democracias convenientes dos regimes produtivos, quais terrorismo de poder. Uma conversa nos recorda propaladas esperanças de paz.

Tem-se comentado que tudo mudou, e que as armas serão destruídas. Que verbas destinar-se-ão, dagora em diante, a financiar bens de sobrevivência e progresso (como arrependimento tardio de consciência inusitada, para não dizer impossível. Soa tal e qual).

Nisto, o grande sistema (Moloc, máquina enlouquecida) desembala histérico rumo do Poente, largando carcaças abaixo da ribanceira, fogo e carvão, céus cinzentos, explosões e desertos.

A propósito e com sua permissão, quero encaixar aqui famosa lenda, imortalizada num dos monumentos do Egito, o da Esfinge de Gizé. Certo guerreiro, que procurava o pomo da felicidade, depois de vencer os obstáculos intransponíveis, afronta monstro de aspecto feroz, corpo de animal e cabeça de gente, que lhe apresentar como um enigma (decifra-me ou te devoro):

- Quem, de manhã, caminha de quatro pés, de tarde, de dois, e, de noite, de três?

A resposta, que não poderia ser diferente:

- O homem, pois engatinha na infância; cresce a se desenvolve nas duas pernas; vindo a carecer, na velhice, de um apoio para equilibrar-lhe os passos.

Daí, vencendo o desafio, alcançaria seu objetivo e deixaria lá atrás, imobilizado em pedra, no Vale dos Reis, o belo símbolo das perquirições humanas.

Nós é que ainda não conseguimos vencer o nosso enigma desta época, tanto individual, quanto coletivo, a fim de poder conquistar os anelos da raça. Enquanto se fala numa Nova Ordem, ficamos atentos em descobrir donde virá a próxima tramoia, durante o que pagaremos as contas de festa de que não desfrutamos, nem soubemos onde aconteceu, em que reino maravilhoso, esfera ou lugar desconhecido.

 

domingo, 4 de agosto de 2024

Quando o amor existe


Em revoada alegre, há um bando de marrecos a fazer evoluções no espaço sobre a tarde, no açude. Em leques perfeitos e pios constantes, numa comunhão existente ao nível dos sonhos, verdes bolas de capim, no outro lado da vazante, emolduram quadro perfeito de mundos imaginários. Do outro lado das águas ali as aves criam seus filhos nos ninhos e vivem misteriosamente, distantes do mundo cá de fora onde a gente mora, na casa grande. Os ramos d´água bem que impressionam pelo seu afastamento do corpo do reservatório, nas represas, uma obra da engenharia cabocla do reservatório. Bem feito e infinito na impressão dos que aqui se redimensionam, às vistas do escorrer das ondas doces, nas tardes de estio, o Sertão que é a elaboração de mundos talvez inexistentes, que agora só lembranças distantes doutras ocasiões largadas no tremor do Tempo. Assim, numa apenas estreita do que antes passara, entre saudades e esperanças vivem histórias de paciência do que se revoltou muitas vezes. Sempre pensando em voltar lá certo dia, na certeza de que o papel é como uma tela a suportar, a sentir ser o instante em que a luz se dilui na própria consciência pela Vontade maior de quem lhe ofereceu o conteúdo de prazer e certeza no que haverá vir a todos nós, SERES HUMANOS, os seus filhos.

 

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Ritos de passagem


Nas sociedades primitivas de que se avistam modelos vivos em diversos lugares da Terra, inclusive no Brasil, existem aplicações de costumes arcaicos, trazidos nos hábitos do tempo, de quando jovens atingem a puberdade, e se vêem no instante da superposição dos elementos anteriores do grupo, lhes apresentam portal introdutório para as práticas comunitárias de poder.

Denominados ritos de passagem, essas iniciações funcionam quais corrida de obstáculos, gincana a fim de testar, numa prática severa, inclemente, os aspirantes a novos guerreiros, quando eles deverão responder, na forma de capacidade e resistência, sacrifícios extremos impostos, num teste da consistência primordial que prevalecerá depois desse crivo de força prática e materiais de personalidade em cheque.

Transcorre dessa maneira o rompimento do hímen que divide a morte do ego infantil para nascer o ego adulto, onde só os mais hábeis e fortes sobreviverão intactos, em que tantos, contudo, desistem, ou sofrem danos irreparáveis, inválidos crônicos passada a luta ritual.

No entanto, cumprir-se-á o inevitável processo de depuração coletiva, seleção natural da qualidade superposta no decorrer das gerações, têmpera do pano social, garantia da coesão do hálito da espécie sequente.

Numa equivalência aos testes de qualidade da indústria, a superposição desses elementos que compõem o sistema atravessa desafios e adquirem méritos a quem resistir à altura os procedimentos depurativos.

Assim nas tribos indígenas. Aqueles que pretenderem negar o costume e procurar fugas às regras do jogo de restabelecimento dos estoques humanos se deparam com sanções discriminatórias, atirados aos escalões inferiores do desempenho das funções grupais, vistos no âmbito das cidadanias inferiores e castas impuras.

Isso atualizaram as culturas modernas, através dos ditos concursos institucionais, vestibulares dos padrões curriculares nacionais, das provas de fogo da profissionalização, das drogas clandestinas, do álcool, das doenças sexualmente transmissíveis, testes de carteira de motorista, alta velocidade nas autopistas e avenidas de mão-dupla, violência das ruas, burocratização perpétua dos estados plenipotenciários, criminalidade organizada, família em crise, subalimentação crônica das classes menos favorecidas, aparelhos policiais onipresentes, serviços militares obrigatórios, códigos cifrados iniciatórios, filtros vários espalhados no decorrer do tempo, agravados na malha dos tempos atuais, em que máquinas de guerra sofisticadas impõem dobras de joelhos a nações pouco subdesenvolvidas sob a pecha cruel dos juros internacionais da agiotagem dos poderosos e suas dívidas externas impagáveis, agravadas na dominação de segmentos políticos oligárquicos, donatários dos passados nebulosos, História espúria, vagarosa.

A juventude defronta, pois, esses bloqueios das restrições, na sofisticação tecnológica sancionada pelas corporações de governo, domínio das máquinas e da informação, fardos pesados impostos desde antiguidades ainda recentes das guerras mundiais de conquista originárias da Europa, produto das invasões bárbaras que integraram o Império Romano em solene decadência ilustrada na Era do Papel.

Ainda que propostos ao desafio dos valores carcomidos que receberam da herança questionável, uma vitalidade natural de melhor consciência requer atitudes frutos do progresso interno da vida, no eito da existência real.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Na floresta do Ser


De tudo então acontece neste universo estreito de si mesmo. São mil lembranças incontidas a crescer diante das horas, numa velocidade estonteante. Surgem cenas de filmes, instantes lá bem dos inícios, quando nem de longe contava viesse a defrontar tamanhos escombros despejados nessas noites escuras, esquecidas. Foram circunstâncias indefinidas logo às primeiras manhãs desses dias enevoados. Depois, no entanto, vieram juntos os desafios grandiosos face apegos ao corpo e suas necessidades urgentes, sobremodo as ânsias de relacionamento. Vezes sem conta dar-se-iam impedimentos vistas determinações da espécie e seus tabus arraigados, devidos aos códigos secretos escaldantes da matéria. Ninguém, que fosse, haveria de querer encontros fortuitos com seres do mesmo sangue. Normas prescritas de modo incontestável. Nisso, as tantas espécies a vagar pelas ruas estreitas de árvores e pedras quais sonâmbulos embriagados nas próprias substâncias ali deixadas no tempo. Assim tais criaturas à busca de compreender a que vieram, nunca deixaram ao léu o desejo de encontrar outras pessoas que as pudessem satisfazer essa fúria de prazer que os consome, dia após dia. Isto significa, sobremodo, outrossim, a mesma fome de alimentar o corpo no sabor dos outros corpos. Bem quais condições significaram a razão de estar aqui, somando a tanto sede incontida dos outros versos que preenchem de dúvidas o espaço nebuloso antes considerado tão só justos motivos de tocar adiante os laços entre palavras e pensamentos, e sentimentos. Destarte, durante séculos, eles viajam a meio das perguntas e nenhuma resposta clara do que possa existir já pode contar em todos os detalhes a história, seus dramas e interrogações largados pelo chão, a meio das folhas secas, esquecidas, das gerações. Antigas definições filosóficas, porém, agora vivem deixadas ao léu sem causa aparente ou definição precisa de tudo em volta. Espécie de saudade numerosa invade o rio dos anseios e todos seguem iguais neste vale de lágrimas que norteia de esperança o céu das consciências ainda adormecidas em alguma visão que virá com o Sol no penhor da madrugada, cálido sonho de luzes e cores vivas no coração da gente.

Apostadores


O jogo é uma das paixões menos nobres que há. Falo assim como se houvesse paixão mais nobre do que outra. Na verdade, sendo paixão nunca deixará de ser instinto brutal. Contudo existem pessoas que se deixam levar nesses impulsos. Por qualquer ou nenhum motivo arriscam o coração, na febre das emoções incontidas do dito ganho fácil. Ilustro essas cogitações contando duas histórias populares que bem caracterizam a disposição lúdica do homem.

Certa vez, entre apostadores contumazes, alguém afirmou que poderia morder um olho. A grita foi geral, instalando-se acalorada discussão; no fragor dos palpites, os circunstantes resolveram confrontar e casaram o dinheiro.

Em seguida, o desafiante retirou uma das vistas, globo de vidro bem confeccionado, que mordeu com naturalidade e ganhou a aposta.

Antes de cessar a surpresa, o mesmo ganhador se ofereceu para novo embate. Desta feita, afirmava que também poderia morder o outro olho. Murmúrio generalizado, pois estava evidente que não se tratava de um cego completo. Carregar dois olhos de vidro seria exagero. Deliberaram, em consequência, reaver o capital da primeira aposta e juntaram os bigodes pela segunda vez.

O adversário, então, retirou os dentes, chapa dupla, e mordeu com cuidado a outra vista. Ganhara, destarte, as duas partidas.

Outro relato dá conta de que, numa mesa de roleta, em noitada de corroer as reservas do cambista tradicional, nenhuma parada lhe estava sendo favorável, caprichosa ocasião. Os dados rolavam e caíam como quem zomba dos infelizes, conspiração imaginária da sorte faceira.

Ele, dotado de rara mutação da natureza, possuía, no lugar de dois, três testículos, o que lhe deu margem a que apelasse e propusesse uma saída diferente para o jogo, talvez buscando dessas oportunidades extremas para reverter a tendência do tabuleiro; aí, como derradeira chance, resolveu mudar de tática e propôs:

- Quero agora fazer uma rodada diferente; digo e aposto que eu e esse peru aqui do meu lado temos, somados, cinco testículos - disse e apresentou-se com oferta suficiente a recuperar tudo o que perdera naquela noite, pois trazia consigo a intuição do que se chama de certeza certa.

Enquanto os vários apostadores avaliavam as chances do tabuleiro, nisso ouviu-se nas imediações a voz sumida de quem fora citado, dizendo aquilo que desenganaria os sonhos do proponente e definiria a situação:

- O senhor aposte se tiver quatro culhões, porque eu na verdade só nasci com um - tratava-se também de um portador de anomalia. Não seria desse maneira que o homem conseguiria recuperar seu patrimônio. Tais as coisas improváveis da jogatina.