Bem ali,
deitando na cama, barriga virada para cima, mãos entrelaçadas detrás da cabeça,
ele acionara e aguardava abrir o computador. Lembrava do palco de teatro
imaginário onde pudesse presenciar uma peça que nunca vira, mas que
reconheceria pelo nome... Esperando Godot... Encenando a tal peça,
morreu Cacilda Becker... Sabia, no entanto, que o autor, Samuel Beckett, nela,
fala por meio de um diálogo de dois aflitos, na expectativa de lhes chegar algo
hipotético, todavia coisa que não pára de se anunciar, nas frestas das conchas,
nas histórias do povo, na prática obstinada de esperar o que vindouro vem; não
viera; viria um dia. Os personagens, sempre de olhos postos nas dobras do
infinito, guardam certeza de chegar essa encomenda do depois, aos toques
impetuosos no teclado longo de um piano surdo, nebuloso; aquilo de
drama-comédia, ranhuras definitivas no horizonte da alma, todos em si mesmos
cientes da infalível anunciação sideral.- Aquele não
sei quem me disse que, não sei onde, feijão custa não sei quanto – das notícias
do sertão.
Pacote
amarrotado, ou carta boa, recheado dessas quaisquer coisas-surpresa. Há, sim,
patentes, à espera, festas alegres, na força do otimismo, na saudade do feliz
que passou e soube-se com o atraso de vários meses. Bonito. Esse mais bonito do
que aqueles outros jogados fora. Achar, ou não, indica pouca mudança,
entretanto.
O que sabia disso, contudo, alimentava seus sonhos o
suficiente, esquemas e planos políticos favoráveis, na luz do merecimento das
prendas positivas, escondidos sob as pálpebras ressequidas. Pois ninguém aceita
resposta inadequada, ainda que pergunte do jeito que quiser, dizendo o que
quer, sem querer ouvir o que não quer.
Tardes
mormacentas sucedem manhãs de frias madrugadas, oferecidas nas noites
silenciosas e promissoras. O inferno são os outros, afirmava Jean Paul
Sartre. Todavia se ter no peito perfeição de realizações plenas, ideais.
O noticiário repete que os americanos
invadirão o Iraque, à procura de Bin Laden. As fortes chuvas européias
preocupam, nas cheias a confirmar graves transformações de clima na Terra,
resultado das descargas constantes de gases poluentes na atmosfera. Lucro
insano virou mania irresponsável das elites da raça. Imensa nuvem tóxica paira
sobre a Ásia, com três quilômetros de espessura e milhares de extensão, a
interceptar a claridade do Sol. As neves do Kilimanjaro agora no calor escorrem
numa proporção estúpida. O mar sobe de nível. Pólos se desmancham na água
salgada, sob o brilho da lua cheia de agosto, no céu. Números apontam segundo
turno para as eleições no Brasil. Castas persistentes fitam o poder temporal,
de lábios secos, olhos vermelhos. De garras afiadas, pêlo eriçado, vorazes
candidatos observam atentos suas presas inocentes.
No rádio,
velhas canções da infância. Perfume de flores secas no ar desse canto de
quarto. Dez Anos, Linda Batista. Cigarro de Paia, Luiz Gonzaga. Cerejeira
em Flor, Carlos Galhardo. Enquanto pulsa o tempo no relógio de plástico
sobre a cômoda, ritmo cíclico, utópico, nas dimensões comovidas. Existe, sim.
Ele existe, sim. Precisa-se conhecê-Lo de perto, o quanto antes. Mora dentro da
gente, na casa das máquinas.
Em todos os
lugares e nalgum lugar específico, Ele existe. Carece-se descobrir e chegar a
esse canto dEle existir. Fora ou dentro das pessoas, ou nos dois lados de
mundo. Há olhos de ver. Olhos abertos na luz ao meio-dia.
A cigarra não
toca faz dias avisando o correio no portão. E essa carta que, chegando, nunca
chega. Chegará. De algum modo virá. O caminho mais curto?... Não se sabe, não.
Sabe-se, sim, que vem; até um passarinho contou a Chico Buarque que vem
vindo... passos longos-breves no corredor interminável das horas...
Pela Internet,
via satélite, telefone, avião, trem, navio, cavalo, bonde, a pé, de ônibus, no
vento, nos livros, nas garrafas, nas cheias do próximo inverno, em editais,
bancas, letreiros, cartazes, petições, jornais, no cinema, teatro, televisão,
mercado, canaviais, praças, música alternativa, janelas, pregões, porres,
escolas de samba, naves metálicas, jogos, comícios, telegramas, shoppings,
panfletos, colagens, festivais, missas, cultos, etiquetas, cupons, reprises,
universidades, reuniões secretas, poluição sonora, sessões, mototáxis,
caminhões, curtas-metragens, passeatas, celulares, carruagens, andores, museus,
agências de viagem, reembolso postal, quermesses, serestas, pichações, folhas
corridas, fotografias, radiografias, faixas, pesquisas, catálogos, cordéis,
decretos, metrô, mandados, revistas, discos, teses, locadoras, matinais, copos
descartáveis, xerox, mobilizações, tevês a cabo, cardápios, conferências,
telas, quadros, fitas, representantes comerciais, cd-rom, planos de governo,
prostíbulos, carros alegóricos, de som, correntes, vitrines, programas de
auditório, manuais, fogueiras, receitas, bulas papais, cadernos b, suplementos
dominicais, trios elétricos, show de milhão, repartições públicas, loterias,
correio mesmo (por que não?), solidão, realidade virtual ou coisa definitiva...
Vem ela a caminho... Caetano viu numa música que virá... E descerá no Planalto
Central...
Por conta
disso, olhos fixos nas movimentações do comboio, rua acima e abaixo, ouve
passar o caminhão do lixo; lembra ser sábado e que não passará correio nesse
dia. Então, assim também é bom, porquanto ficará mais tranquilo, noutra tarde.
Não chegará correspondência. Vai cuidar mais uma vez dos bichos, no quintal, do
banho, de si, lavar o carro; de novo, amar a companheira; duas, dezenas,
milhares. Sonhar, filmar, contar suas iguais fantasias eróticas; contemplar as
flores no jardim na praça, escutando pássaros, nos começos de noite. Quando
chegar, pretende recebê-la a caráter, braços abertos e modo melhor, essa tal
missiva, tantas vezes horas, meses, séculos, alimentada nos seios flácidos do
coração insistente; com os braços pregados em cruz na mesa do jantar, entre
xícaras, talheres, bolos e bules fumegando...