Basta silenciar um pouco e escutar o instante; dali nasce um som impertinente que circula suave pelas encostas de tudo. Sons de cores,
presenças, movimentos. Quais meros ouvintes, e aqui vivemos recolhendo nas
horas os sentidos, os hábitos e criamos este ser que somos, arrastando
vidas a fora. Longos mastros de embarcações diversas, disso resulta o todo que
ocupamos num lugar do espaço. Aguçamos as vistas e presenciamos a sequência dos
ventos e das ondas. E salientamos na alma os frutos das circunstâncias.
No seriado desses tais acontecidos vêm os pensamentos,
impressões, sentimentos, máquinas incessantes de perfazer a
individualidade pelos refolhos da consciência. Fragmentos de tempo soltos nesse
universo estreito da criatura são a sua atenção permanente. Essa existência
particular, abstrata, no entanto, é parcial, porquanto dentro de tais
percepções é que existe o perceptor de verdade, a gente mesma ainda em
formação. Durante o período da experiência na carne, trabalhamos milhares,
milhões de avaliações que nos amaciam o caminho de chegar à
maturidade. Meros viventes, pois, criamos mundos à parte do grande todo e neles
nos arranchamos durante o Infinito inesgotável. Avaliamos,
presenciamos, observamos. Desta fantasia em forma de existência trabalhamos a
versão definitiva do que lá um dia seremos.
Diante da gente passa este tempo imaginário e nele pessoas e
lugares, numa atividade inevitável, constante, face às razões materiais que
preenchem de vozes o vazio e o nada. Arrecadamos paulatinamente motivos apenas pessoais
desses estados provisórios e deles criamos as histórias que se desfazem na medida
das nossas próprias conveniências.
De um episódio a outro, assim montamos a versão que, talvez,
devesse constar dos anais da Eternidade, porém num caráter limitado às nossas atuais ilusões.
Enquanto isto tocamos o barco da realidade pelo deslizar dos momentos e
aceitamos de bom grado que eles sejam a base de cálculo das vidas que escutamos
sem pausa na nossa caminhada através do mistério e suas vozes incessantes.
(Ilustração: Paraíso perdido, de Gustave Doré).
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