quarta-feira, 31 de maio de 2023

Vozes em tudo


Basta silenciar um pouco e escutar o instante; dali nasce um som impertinente que circula suave pelas encostas de tudo. Sons de cores, presenças, movimentos. Quais meros ouvintes, e aqui vivemos recolhendo nas horas os sentidos, os hábitos e criamos este ser que somos, arrastando vidas a fora. Longos mastros de embarcações diversas, disso resulta o todo que ocupamos num lugar do espaço. Aguçamos as vistas e presenciamos a sequência dos ventos e das ondas. E salientamos na alma os frutos das circunstâncias.

No seriado desses tais acontecidos vêm os pensamentos, impressões, sentimentos, máquinas incessantes de perfazer a individualidade pelos refolhos da consciência. Fragmentos de tempo soltos nesse universo estreito da criatura são a sua atenção permanente. Essa existência particular, abstrata, no entanto, é  parcial, porquanto dentro de tais percepções é que existe o perceptor de verdade, a gente mesma ainda em formação. Durante o período da experiência na carne, trabalhamos milhares, milhões de avaliações que nos amaciam o caminho de chegar à maturidade. Meros viventes, pois, criamos mundos à parte do grande todo e neles nos arranchamos durante o Infinito inesgotável. Avaliamos, presenciamos, observamos. Desta fantasia em forma de existência trabalhamos a versão definitiva do que lá um dia seremos.

Diante da gente passa este tempo imaginário e nele pessoas e lugares, numa atividade inevitável, constante, face às razões materiais que preenchem de vozes o vazio e o nada. Arrecadamos paulatinamente motivos apenas pessoais desses estados provisórios e deles criamos as histórias que se desfazem na medida das nossas próprias conveniências.

De um episódio a outro, assim montamos a versão que, talvez, devesse constar dos anais da Eternidade, porém num caráter  limitado às nossas atuais ilusões. Enquanto isto tocamos o barco da realidade pelo deslizar dos momentos e aceitamos de bom grado que eles sejam a base de cálculo das vidas que escutamos sem pausa na nossa caminhada através do mistério e suas vozes incessantes.

(Ilustração: Paraíso perdido, de Gustave Doré).

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