quarta-feira, 10 de maio de 2023

Sonhos vagos


Quando criança, eu ficava horas a contemplar as nuvens no céu do Sertão. Mil personagens deslizavam no azul formando cenas que se desmanchavam numa sequência interminável. Viajava nas asas do vento e presenciava histórias imaginárias que as nuvens ali descortinavam, eu e minha solidão afeitos a contemplá-las. Notava sem conta o instinto da visão interior no formato que fazia dos acontecimentos dentro da gente. Lá depois que vim considerar esse laboratório escondido que move a literatura, suas histórias, avaliações e camadas, dada a força poderosa que ativa a percepção e dilui pensamentos em forma de palavras, ideias, gestos, variações, tudo, enfim. Abstratos mistérios, expressões, nasce disso os segmentos que expandem a gente na produção do que se vive horas a fio nesse corredor da Eternidade. Nós, protótipos das consciências em elaboração.

Qual sonho vivo assim o é fluir pelas horas tais nuvens a percorrer o firmamento do tempo que transportamos nas mãos. Uma a uma gotas, gestos da correnteza viva que percorre nossos pensamentos e sentimentos, vão se agregado de modo a criar significados nos aspectos vários dessa vida externa, unida à interna em nós ao que conceituamos horas e horas, que resolveram classificar de existência.

Pedaços de um todo invisível, presenciamos as reações desse todo através do que somos, espécies de instrumentos de compreensão, moageira da mais intensa função. Trabalhamos os fragmentos dessas horas que vemos e que deixam marcas profundas ou superficiais na elaboração da presença. Tangedores, pois, dessas manadas de tantas nuvens que circulam o céu da atualidade, com restos largados ao passado e o desejo incontido de continuar para sempre nos laços do vento, desfazemos aparências em ilusões. Expectadores e atores dos dramas, aguardamos o fruto de nós próprios, na medida que necessitamos prosseguir, conquanto alternativa não existe de puro desaparecimento, a não ser comungar as visões e assistir enfáticos os olhos de alguém que precisamos conhecer e distinguir dos seres que passam em um mundo que apenas some a todo momento pelos ares do Infinito.


(Ilustração: Shamanicarts (reprodução).

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