No ano de 1958, morando com a família em Crato, meu pai seguia, ainda por certo tempo, vinculado aos negócios do sítio, em Lavras da Mangabeira, onde deixara animais e eito de cana, de que renovava o cultivo e participava das moagens, nas épocas próprias. Nesse sentido, ia lá quase todo mês, através da rodagem de terra que cruzava a Serra de São Pedro, cheia de trechos estreitos e arriscada, conhecida pela periculosidade e acidentes fatais que provocava, percurso que agora abriga a Rodovia Padre Cícero e reduz em dezenas de quilômetros a distância para Fortaleza.
Houve uma ocasião, nessas viagens, quando já próximo do
distrito de São Francisco (hoje Quitaiús), o caminhão em que viajava, de
propriedade de Severino Medeiros, tombou em trecho de curvas fechadas e
piçarrentas. Dentre as vítimas mais graves se achava meu pai.
Machucara uma das pernas à altura do tornozelo, fraturando
ossos em três lugares e sofrendo profunda contusão, o que lhe custou séria
perda de sangue e demorou um tanto para cicatrizar. Veio trazido ao Hospital
São Francisco, em Crato, onde permaneceria pelo período de um mês, ou pouco
mais.
Durante esse turno, não poucas vezes lhe visitei e permaneci
junto dele. Era eu portador constante das encomendas entre nossa casa e o
hospital.
Nunca antes havia estado naquela construção de tantos
corredores, salas, lugares sombrios, silenciosos, ruídos típicos; de pessoas diferentes,
agitação incessante. Andava onde podia. Menino aceso, observava as
movimentações e acompanhava os acontecimentos diários.
Relembro de enfermeiras, médicos, amigos de meu pai que lhe
visitavam; das áreas internas e solitárias do casarão escurecido; as rampas; os
portões vetustos quase nunca abertos; e da calma da capela, que tocava o íntimo
da criança de nove anos com melancolia intensa, sobretudo aos finais das
tardes, quando deixava ouvir os acordes da Ave Maria, de Schubert. Misto de
saudade e distanciamento fervilhava meu ser; algo de uma solene paz que envolvia
o ar no véu luminoso da penumbra e, aos poucos, vinha decrescendo os restos das
tardes, modificando, nas notas suaves da música, a noite e seus aspectos quase
adormecidos, afastando de vez, com mãos veludosas, os clarões retardatários do outro
dia.
Essas marcas especiais daqueles instantes passados costumam,
depois, preencher minha memória, quando ouço o canto da Ave Maria, às 18h, nas
emissoras de rádio, que tocam o disco nas suas programações, avivando em mim emoções
que, nessa quadra, tomaram conta de nossa família, permitindo, no entanto, que
tudo chegasse a bom termo, com o restabelecimento de meu pai, o ponto forte na
condução de todos nós.
(Ilustração: Angelus, de Jean-François Millet).
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