Mantém-se viva, nos costumes da região do Cariri cearense, sobretudo junto às famílias simples e humildes da periferia das cidades maiores, das menores cidades e da zona rural, um rito de origem católica denominado Renovação ou Entronização do Coração de Jesus, costume popular do Nordeste brasileiro.
Essa tradição diz
respeito à casa. Ao constituir a residência, os seus moradores, de livre e
espontânea disposição, estabelecem uma data para providenciar a entronização do
Coração de Jesus e do Coração de Maria. Firmam, na parede da sala principal, a
que fica defronte da porta de entrada do lar, um santuário, desse modo
estabelecendo ali um espaço sagrado, dedicado aos santos da sua devoção.
Torna-se esta a sala do Coração de Jesus. Eis o modo que se adota de também
consagrar a Deus essa casa.
Na parede, juntos da
imagem ou da estampa de Jesus e Maria, reúnem-se outras estampas e imagens de
gesso ou madeira, também conhecidas na herança do Catolicismo, desde Santa
Luzia, São José, São Jorge, Santa Bárbara, São Francisco, a Padre Cícero e Frei
Damião, os santos populares dos nordestinos, dentre outros, postos em nichos ou
molduras dos mais variados modelos. Uma decoração de flores artesanais de cores
fortes, ao vermelho, rosa, azul, dourado, prateado, amarelo, envolve o lugar,
apresentando painel intensa expressão visual, contornado de fitas e guirlandas
feitas de papel crepom, papel de seda e aluminizados.
Após a anterior
preparação da casa, através de limpeza geral dos cômodos, reboco e pintura,
naquele dia escolhido, ao primeiro ato, tudo se volta ao andamento de uma festa
social muito apreciada na região, oferecida a todos da comunidade. Dada a
proximidade dos festejos do Natal, essa data quase sempre ocupa os meses finais
do ano.
No dia aprazado, de
preferência no horário do meio-dia ou às 6h da tarde, aos acordes
imprescindíveis de uma banda cabaçal e dos estampidos de bombas e foguetes,
inicia-se a festa.
No seu livro O
Folclore no Cariri, o prof. J. de Figueiredo Filho escreveu: As
bandas-de-couro têm cerimonial especial para a louvação dos Santos. Podem
homenageá-los, em época de novenário, em casas de senhor de engenho, do morador
ou do pequeno proprietário. A mesma cerimônia executa na Entronização,
Renovação do Sagrado Coração de Jesus, ou mesmo diante do Menino Deus, na
lapinha. A banda executa, nesses casos, músicas correspondentes aos benditos
populares da Igreja: QUEREMOS DEUS, NO CÉU, COM MINHA MÃE ESTAREI e outros. A
cabaçal entra, formada, na sala e logo depois seus membros se destacam para a
louvação e sem prejuízo da tocata que prossegue. Um a um faz a reverência com a
cabeça, quase um salamaleque e logo após, em genuflexão, beija o altar ou os
pés do santo homenageado. Quando chega a vez do zabumbeiro, reverencia o orago
com a inclinação de cabeça e após isso, coloca a zabumba ao
chão, ajoelha-se, apoiando a mão esquerda sobre o instrumento. Após a homenagem
individual, há outra de dois em dois, o mesmo cerimonial, com a música sempre a
vibrar, mais zoadenta ainda por ser no interior da casa. Em seguida ao ato de
louvação, o conjunto aboleta-se no terreiro, onde executa verdadeiro concerto,
com variado repertório.
Após as circunvoluções
da banda cabaçal, restabelecido o silêncio, entra em cena a rezadeira, ou
noveneira, e suas auxiliares, a desfiar jaculatórias adequadas à cerimônia.
Diga-se que, de comum, as autoridades eclesiásticas não exercem a função de
comparecer em tais ocasiões, de exclusiva determinação do próprio povo.
Existem, nessas comunidades, pessoas afeitas ao ofício das celebrações. Em
geral, senhoras conhecidas e admiradas nos grupos sociais onde vivem. Com
distinção, cumprem sua parte no decorrer solenidade. Lêem novenas, palavras de
consagração que nutrem o ritual, seguidas nas repetições reverentes dos fiéis,
no tempo de duração aproximada de uma meia hora, o suficiente à inteira
celebração.
Como se observa nas
palavras de Figueiredo Filho, após completados todos os passos do rito formal
desse tipo de novena, os presentes retornam à frente da casa, o que nos sítios
corresponde ao terreiro, para, assim, poderem apreciar a dança e a música dos
cabaçais.
Enquanto isso, na
cozinha e a sala de jantar, os convidados são servidos de mungunzá, arroz,
farofa de cuscuz, galinha caipira, bolos de puba, de milho, de farinha de
trigo, biscoitos, pães, e de bebidas, aluá, feito de casca de abacaxi
fermentada em potes de barro, sucos e refrigerantes. Esse instante demonstra
boa vontade e a fartura da família.
Muitas dessas festas
ocorrem, de hábito, no aniversário de casamento dos donos, ou no aniversário de
nascimento de um dos seus moradores da casa, somando-se, em conseqüência, as
duas comemorações.
A partir dessa primeira
entronização, a cada ano, na mesma data, a festa se repente em obediência a
igual sistematização. Antes, com a limpeza e pintura da casa, dos quadros e
imagens dos santos; e, no dia, com o espocar de bombas, fogos; a chegada do
povo, da banda-de-couro; seguindo-se depois na distribuição de alimentos aos presentes,
sob o clima puro da mais fiel religiosidade.
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Na realização deste texto,
entrevistamos Rosiane Limaverde e Alemberg Quindins, da Fundação do Homem
Kariri, de Nova Olinda CE.
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