Num tempo que sobrevive na memória, persiste a minha infância das tardes quentes de final do ano quando me deitava de bruços sobre o piso de cimento queimado da casa de meu avô, no Tatu. A vista sertaneja tremia nos olhos com o sol causticante a rebrilhar nas pedras da bagaceira. Os viventes do lugar se mantinham reservados no pouso, que ninguém arriscava sair ao relento debaixo daquela explosão luminosa. Até os trabalhadores do eito aguardavam chegar às três horas para voltar ao cabo da enxada e preparar as terras, na esperança incerta de chuvas próximas.
Friozinho gostoso na barriga me
grudava ao solo. Na casa, todos dormiam a sesta. Janelas fechadas e a porta da
frente, de duas bandas horizontais, abria apenas a metade superior, trazendo de
longe o canto de um passarinho na distância das matas. Intensos trinados
teimavam falar de mundos ignotos, o que calava no mais íntimo da criatura. E
nele viajava no espaço da imaginação solitária de menino.
Mergulhava por dentro dos abismos
de mim mesmo, na lembrança das histórias ouvidas no serão das noites
anteriores, expedientes coletivos antes de chegar o sono. Eram as visagens
daquela casa construída por Dona Fideralina, a bisavó de meu pai e quem
primeiro ali habitara e deixara enterrada, em algum ponto ainda hoje intocado,
botija de prata e ouro, no que pese haver sido a preocupação constante de
alguns adultos da família por um bom tempo.
Meu avô, dormindo de rede no
quarto da frente, porta entreaberta, ressonava em tons diversos. Do outro lado,
o quarto da cera, sempre de portas e janelas lacradas de pano, era o mistério
principal da construção. Nele rasgavam trabalhadores palmas de carnaúba e tudo
invadiam de poagem esverdeada, com isso formando os tijolos de cera transportados
no lombo de burros e vendidos em Lavras.
Nos fiapos suaves do canto longe
do passarinho, pisava as veredas dos sítios em torno, por vezes, trotando nas
montarias que cruzavam o beco entre a casa e o engenho, curso da parede do
açude velho e da cancela ao término do trajeto que marcava com batidas secas o
ritmo monótono do relógio perdido naqueles tempos imaginários.
Enquanto retornava pelo fio do
canto do pássaro, na brisa morna da soalheira vespertina, distinguia também o
som enjoado de moscas a zumbir no ar, contradizendo o silêncio instigante do
trinado remoto. Virava de costas ao chão e observava o teto antigo, linhas de
carnaubeira e telhas manchadas de goteira.
Ao fim do corredor, escada e
corrimão davam a sótão escuro, de portas trancadas. Logo embaixo, a sala de
jantar. Uma mesa imensa de madeira escurecida e bancos laterais rústicos
escondiam cães adormecidos, aonde, nas épocas de moagem, comiam as turmas de
empregados taciturnos. Em rumo da cozinha espaçosa, no fundo da casa, três
potes enchiam a cantareira umedecida de lodo emoldurada de bandejas na parede e
copos de alumínio areiados pendurados em tornos de madeira.
Depois, os moradores da casa
acordavam meio sonolentos, aos poucos enchendo de ânimo ao rotineiro movimento
do resto de tarde. E longe prosseguiam os acordes maviosos do passarinho...
Longe... Bem longe.
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