quarta-feira, 2 de abril de 2014

Vozes na madrugada

Passara a Segunda Guerra. Enquanto aguardavam terminar a casa que construíam numa colina fronteira ao pátio principal do sítio, próxima da capelinha, meus pais ocuparam alguns meses dependências da casa grande da fazenda, juntos de meus avós paternos. 

Haviam casado em Crato, e logo se deslocaram para Lavras da Mangabeira, onde, no Tatu, fixariam residência durante nove anos. 

O lugar guardava existência própria, simples na precariedade que detinha. Dúzia de casas de taipa habitadas por famílias de agregados. Dois açudes. Canavial. Moagem. Lavouras de subsistência nos incertos períodos chuvosos. Arroz. Feijão. Milho. Fruteiras. Além da fama misteriosa de lugares mal assombrados. 

Minha trisavó, Fideralina Augusto escolhera, na segunda metade do século anterior, estabelecer ali por sede do clã que formara, filhos e genros senhores de  baraço e cutelo na política e nas terras em volta. Construíra engenho a boi, o açude maior, uma casa senhorial e, no contar dos mais antigos, deixara enterrada botija de moedas de ouro, prata e ouropéis preciosos. 

Desde sua morte em 1919, vitimada por febre destruidora espalhada no mundo, vezes tantas apareceu nos sonhos, ou em vulto, causando transtorno fora e dentro dos antigos domínios. Queria a todo custo entregar o legado aos que ficaram, para escapar das chamas do engano e das maldições de alma penada.

Minha mãe buscava não se impressionar com as histórias das aparições da matriarca. De formação católica, nutria outros pensamentos a respeito do assunto. Punha as histórias de alma na caixa de folclore, tradições e lendas sertanejas, coisas fantasiosas da mentes férteis.

O tempo, senhor de tudo, no entanto, desfila dias e noites e modifica até os mais arraigados conceitos.

Naquela hora, ainda acordada no meio de fria madrugada, escutava as rajadas do vento no escuro da telha, quando ouviu de longe o trotar de montarias. Vinham se aproximando. Pela estrada, percorriam o lado da bagaceira do engenho, passavam o terreiro da casa e mergulhariam pelo beco formado entre a casa grande e o engenho, indo desembocar na cabeça da parede do Açude Velho. Ao final, cruzariam a cancela da cerca de vara trançada que batia forte à passagem dos viventes, eco a viajar na mata abaixo do brejo.

O som da pisada dos animais chegava mais perto, realçando o vazio de silêncio e ausência. Quase defronte da casa, vozes se destacavam em conversa animada.

- Hoje seu Amâncio começou a moer foi cedo?! – distinguia nítidas as palavras de um dos cavaleiros.

Até então, nada incomum. No instante, contudo, ela lembrou ser aquele dia de domingo, feriado da semana, em que não se moia, a tornar irreal o estranho comentário, a causar pavor, sem uma razão que lhe justificasse.

Ainda sob o impacto da afirmação descabida, frêmito percorreu seu corpo de cima a baixo sob os lençóis, durante o tropel que marchava, deixando gravado no coração o ferro sombrio do inexplicável, presença constante na época que, desde então, viveria na longa permanência do sítio depois daquilo.   

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