segunda-feira, 28 de abril de 2014

Exame de rotina

Os filhos cresceram e logo bateram asas para cuidar da sorte, da fama e da riqueza rumo das cidades maiores noutras brenhas menos abandonadas. Acostumados aos matos do sítio, eles dois permaneceram curtindo a saudade madrugadeira e saberes das distantes pela televisão da sala rústica na velha casa vazia. Conforto nunca faltara, o mesmo que não diziam das chuvas. Porém as beiras d’água dos riachos alimentavam com fruta molhada de cacimba e de aragens as tardes do nascente.

Nisso, o tempo correu célere de sempre acontecer.

Lá no aniversário dos oitenta anos do pai, a filharada resolveu marcar encontro na terrinha amiga em que nascera. De todas as procedências, vieram cercados de novas famílias; maridos, mulheres, filhos, namoradas, amigos; um festival de animação na forma da família de novo reunida. 

Numa surpresa, invadiram dos velhos a privacidade. Montaram barracas nos quintais. Armaram redes nos oitões. Lotaram casas de parentes e vizinhos. Rezaram missa. Cantaram, zoadaram bastante, multidões de felicidades. As cajaraneiras do recanto retirado nunca acolheram tanto menino a subir pelos galhos e tirar frutos de vez, na safra de fevereiro.

Baixada a poeira do programa inesquecível, os visitantes ainda de férias resolveram permanecer mais alguns dias. Preocupava-os demorados períodos ausentes, e filho pensa na saúde dos pais, vadios brejeiros de médicos e refratários a ambulatórios, desde nunca imaginar coisa o pior, mania de antigamente quando nem se falava em exame.

Sob qual aspecto, orquestraram jeito bom de levar os dois octogenários à cidade, a passeio e compras, diversões, cinema, visitas e, de quebra, entrar numa clínica e providenciar acompanhamentos mais do que necessários na idade avançada, ainda que nenhum sintoma inspirasse cuidado além das apreensões da vida longa.

Eis, portanto, a fase preparatória do que ocorreria poucos dias depois das festivas comemorações.

Consultas marcadas, ele, o pai, e junto a esposa querida se apresentaram ao clínico, ambos tímidos, desconfiados. Um pé na frente, o outro, atrás. Seguro no braço da companheira, sem ação também desvanecida, olhando de lado, por saber dos motivos da visita àquele canto granfino.

Ciente dos planos, o doutor trabalhava o quanto conseguia no sentido de auscultar os sertanejos, austeridades em pessoa. Pegar pulso, medir pressão, temperatura... E o homem cabreiro de não querer a menor palestra, nem ao menos em respeito à filha sorridente, animada, amiga do médico, ex-colega de escola primária...

Porém a prática haveria de fixar suas bases de procedimentos, rompendo a formalidade. Diante daquilo tudo, o médico indagou com espontaneidade:

- Mas diga o que o senhor sente mesmo, seu Astrogildo? 

Sem pretender levar longe mais meia braça do drama que já embaraçava a todos, extenso e fora de propósito, alto e bom som, o paciente rebateu o facultativo:

- Quer saber de sinceridade, doutor? O que eu sinto muito é fome! Tá chegando a hora do almoço e quero ir pra casa. E estamos conversados – com isso arredondou de vez as cogitações do médico em pedir qualquer exame daquele paciente.

Nota: História ouvida de Henrique Costa. 

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