A música no rádio trouxe alguma lembrança de décadas atrás, Coração de papel (gravação original de Sérgio Reis), que então fazia sucesso. Demorava-se nas paradas, tocando com facilidade nas emissoras do interior.
Há pouco descera a serra, chegava de Jardim. Naquele café de duas portas, em Barbalha, pleno meio-dia, aguardava transporte para Brejo Santo. Nesse ponto paravam os carros que se destinavam às localidades próximas. De toalhas no ombro, pessoas entravam e saíam; homens a mostrar no bolso da camisa a escova de dente; algumas mulheres traziam chapéu de palha preso ao queixo por fitas coloridas. Em torno da velha mesa de madeira rústica, passageiros insones mordiscavam biscoitos, pães, regados com café forte, ou deglutiam refrescos mornos, enquanto do rádio de pilha situado no alto da cristaleira encardida ressoava na sala os acordes da música.
Manhã cedo, e por mais que insistisse, perdera de vista mais outra vez a namorada. Saíra tarde, depois das nove, pegando a estrada de terra que descia as encostas friorentas da Serra do Araripe. O respeito que ela dedicava às tias não concedera que pusesse o rosto lindo tão cedo na calçada, após a festa da noite no colégio. As pessoas, nesses lugares menores, observavam tudo e era sempre sujeito fazer comentários fora de propósito sobre qualquer assunto.
- O conjunto ontem tocou essa música - pensou, envolto no sentimento que anestesia os corações arrebatados e pouco permite que escute inteiras as letras das canções. Mas lembrou que ouvira os acordes, no meio da bebida quente para desfazer a timidez de conhecer os parentes dela, metido no terno improvisado, bem maior do que seu tamanho. Toparia qualquer parada, contanto que vivesse os momentos inesquecíveis da noite. Dançaram juntos repetidas vezes. Chegou a pensar que impressionara bem, desejo nutrido com carinho há muito.
Nos olhos, a ardência de quem dormiu pouco sem dar conta do tanto de aquietar a vista. Na porta da rua, olhava transeuntes e automóveis; observava o panorama esquisito da alma flutuando no vazio, sem pouso certo na existência além do emprego no banco, a algumas léguas dali; de patrimônio fixo apenas dezenas de livros que lia com fome, com sede, qual prisioneiro no cais das direções, a flutuar nas ondas do improvável.
A emoção melancólica dessa época antiga chegou ao presente, no eco distante daquele antigo sucesso popular, agora tocado noutro rádio de pilha. Lá fora, a tarde, o sol dos fins de maio. Dentro do peito qualquer coisa semelhante a saudade, na força do impossível de reviver.
Alguma janela do passado guarda (sabe Deus) o vulto da namorada, de novo a se desfazer na música de sonhos esgarçados ao vento, pelas ruas da cidadezinha, na despedida deles dois. Ninguém imaginava isso vir tão cedo. No entanto, bem assim aconteceria.
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