Certa vez, quando visitava província distante do seu reino, percebeu o soberano que as armas do padre João Sem Cuidado predominavam na maioria dos bens daquela região. Notou também que esse senhor detinha tais posses e não levantava sequer uma palha para dar de conta de suas propriedades, fazendo-se, por isso, justo merecedor do nome de Sem Cuidado sob o qual lhe conheciam.
Após investigar a situação que encontrara, achando-a deficiente, chamou aquele religioso para maiores esclarecimentos.
- O senhor possui todos esses valores e nada faz para merecê-los. Isto que dizem de V.Sa. corresponde mesmo à realidade? - quis saber o monarca.
- El Rei, meu senhor, esta é a mais pura realidade - foi respondendo o sacerdote. - Minhas propriedades cresceram e crescem independente dos meus cuidados. Entrego sempre a Deus as preocupações por esse trabalho, pois a Ele sirvo e nem confio.
Ao soberano pareceu que houvesse alguma coisa de irregular naquilo. Em consequência, decidiu impor ao súdito uma série de enigmas os quais, não fossem decifrados, o levariam, sem apelação, à forca, dentro da rigorosa autoridade do rei.
- Quero saber, pois, de sua capacidade - impôs o soberano. - Dentro de um mês, o senhor deverá comparecer ao palácio e me dizer: Quantos balaios mede a montanha mais alta do reino, qual o peso da Lua, onde fica o centro da Terra e, para completar, o que estarei pensando na ocasião do seu interrogatório.
O padre João ficou triste com essas palavras. Recolheu-se em casa durante vários dias, examinando as questões que teria de resolver. Nisso, um dos seus irmãos, Felipe Doido, que perdera o juízo de tanto pensar nas coisas da natureza, reagiu aos enigmas e pediu a Sem Cuidado que pusesse ele no seu lugar para responder às interrogações.
Desta forma, no dia em que se vencia o prazo estabelecido, Felipe paramentou-se todo, indo à presença solene da corte. Cumpridas as formalidades, direto chegaram ao assunto.
O rei perguntou: - Quanto mede a montanha mais alta do meu reino? Ao que Felipe Doido respondeu: - Não chega a medir um balaio dos meus.
Sem poder prever o tamanho do balaio de que cogitava, nenhuma alternativa restou ao rei inquisidor que não fosse aceitar por correta a resposta do subalterno. - Qual o peso da Lua? - quis logo saber no seguimento.
- Sete arrobas e meia - respondeu Felipe. - Caso V. Alteza duvide, pague a despesa de trazer a Lua até aqui para pesar, e eu pagarei o tanto de levá-la de volta. O rei abismado aceitava, desse jeito, a correção da segunda resposta.
- Então, agora me diga onde fica o centro da Terra.
Felipe tirou do bolso da batina um compasso, traçando com ele, no solo, círculo exato e apontou para o centro da figura geométrica dizendo estar ali o centro da Terra. Esta seria mais uma resposta que admitida pelo rei, que demonstrava contrariedade pelo sucesso do interrogado.
- Por fim, quero que o senhor me diga o que estou pensando neste momento - fixou o monarca com seriedade, acreditando impossível qualquer resposta para aquela pergunta.
- V. Alteza pensa, neste momento, que está falando com padre João Sem Cuidado, quando, na verdade, fala é com Felipe Doido, irmão dele.
Vista a sagacidade rara com que o vassalo se manifestava, o rei baixou a cabeça, conformado com a derradeira resposta; em seguida, felicitou o padre João Sem Cuidado, que chegava. A partir desse dia, com justiça, ele e sua família se transformaram em fiéis e queridos servidores da casa real.
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