Na lenda, quando Noé recebeu a atribuição de construir uma arca e esperar que chovesse o tanto de tudo cobrir, por certo jamais imaginara vir a ser escolhido para aquela missão. No entanto, nem por isso duvidou, a despeito das polêmicas motivadas pelo assunto. Transformou fraqueza em força, animou seus parentes ao trabalho, reuniu os bichos que viviam nas imediações, acreditou (sobretudo), e ainda hoje ficamos admirados como pôde o engenho humano chegar tão longe nas fainas da sobrevivência.
A nós não compete julgar, como também a cada um não cabe duvidar que exista o Poder Supremo, fonte irradiadora de vida, essa função do Ser, do dizer para que viémos, que coisas por si só se determinam, quando muito com nossa compreensão.
O gesto de escrever permite que se jogue no papel os primeiros lances de sonho
por vezes inatingível, onde possamos nos reunir à ficção e trabalhar as
ferramentas do dizer, na intenção de fechar contatos e acender consciências. Lê
quem sabe e continua quem quer. Mas o espaço tem que ser preenchido, catado de
letras, sílabas, palavras, ideias, sob o pretexto de que alguém nos acompanhe.
Isto, todavia, não é o bastante para que fiquemos a observar (um observar
apenas passivo) os trilhos ininterruptos da História, espalhados pelos diversos
departamentos do comboio, muitas vezes perdidos nos melhores propósitos, presas
de obsessões que querem a qualquer custo permanecer, mesmo sem autorização, no
que pesem resoluções planejadas, recomeços, fitas, velas, enquanto prosseguímos
a confundir espelho com fotografia. (O espelho inverte a imagem, equivocando,
trocando os lados de nossa cara, enganando, nos remetendo de volta à caverna
primitiva de onde saímos; pura irrealidade narcísica que se instala; ilusão que
tritura tempo certo, até secar e cair do pé).
Escutamos que se deve suscitar resposta à nossa presença rude neste chão, que
nos espreita de dentes afiados e goela escancarada. Vem aí prejuízo ou lucro na
conta dos talentos recebidos. Não fazer o bem é também fazer o mal. O
mal da indiferença perante a inércia do sofrimento alheio, aos borbotões.
Novos tempos, novas luzes sem mácula, horizontalizam o Céu, no respiradouro para se suportar mudanças de casa dos pouco afeitos à imposição de criar raízes, quais pedras paradas juntando lodo, atitude quase sempre de quem aceita ficar para fermento, mesmo sem condições de admitir ser a Verdade o caminho de Deus, senso fundamental, destino sadio que transmutamos em crise, recessão, sofisticada neurose depressiva.
Temos de perceber a fórmula mágica de auto transformação, reflexo contido qual direito latente sob o princípio da superação dos desafios, onde e como nos achemos, independente de esperar hora mais propositada. Noés de hoje, alertemo-nos, ligados através das parabólicas atentas nos jardins ensolarados, pois de algum lugar sopra o vento. E nossa fantasia quase se gastou dos tantos filmes repetitivos de ação, sexo explícito, muitas superproduções, sem que ainda sejamos heróis além dos banheiros, quintais, churrasqueiras, castelos confeitados, arquibancadas vazias, por nada além de l5 minutos, duração provável do sucesso, segundo rezam as estatísticas oficiais.
Nesse girar de pneus, rastros apagados e calendários vencidos, aqui vamos nós, de estômagos opressos e bocas amargas, quais robôs fora de uso.
Estacione um pouco e sinta que a presença da luz se faz em cada criatura - conforme o faro da vontade, nos protestos imperfeitos, entre faixas, flores, sorrisos, estágios preconcebidos desta nova semente.
Nuvens e naves riscam rápidas o tapete silencioso das estrelas ainda molhadas. Fria noite do inverno sertanejo. Os animais já dormiram, obedientes. E insisto a me perguntar:
- Quanto ainda falta para outra vez nascer o Sol?...
(Ilustração: Johannes Gutenberg).
Nenhum comentário:
Postar um comentário