quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Severino Medeiros


Existem conteúdos de memória que fixam residência no juízo e de lá dificilmente descobrem o caminho de ir embora. Isso, de comum, tem origem nos idos da infância, quando imprimem no vazio, gradualmente, marcas a bem dizer inapagáveis.

Este senhor, Severino Medeiros, o conheci quando menino pequeno. Compadre de meu pai e proprietário do caminhão que fazia a feira de Lavras a Crato às segundas-feiras, trazendo mercadorias e gente. Era veículo de duas boleias (caminhão misto, qual denominavam), aos moldes daquele tempo dos anos 50. Na cabine dupla vinham as senhoras; os homens ficavam instalados na carroceria, no meio de caixas, sacos e outros cacarecos. A estrada era de piçarra, cheia de surpresas, onde mal dava passagem a dois carros.

Em um desses transportes fiz minha primeira viagem até o Crato, isto ainda de braços, quando minha mãe veio me mostrar aos seus familiares daqui. Nada lembro, no entanto. Adiante vim saber da aventura de sol quente e poeira, passando pela Serra de São Pedro, com ladeiras de grotões, abismos e curvas estreitas, hoje a Rodovia Padre Cícero, agora de asfalto e menos arriscada.

Ainda na década de 50, meu pai resolveria morar em Crato. Primeiro, nos deixava e vinha às segundas e retornava aos sábados, enquanto permanecíamos no Tatu. Na sequência, em 1953, viríamos em definitivo. Mesmo em Crato, seguiu administrando o sítio, pois meus avôs também se instalariam nesta cidade.

Nesse ir e vir a Lavras, quando regressava numa segunda-feira, em cima do caminhão de Seu Severino (como era conhecido), numa das curvas perigosas do trecho de São Francisco (hoje Quitaus, distrito de Lavras), sofreriam virada, o que lhe machucaria uma perna, com corte e fraturas, fazendo-o permanecer algumas semanas internado no Hospital São Francisco. Era época de seca no Ceará. Eu ia visita-lo diariamente, levando as garrafas de café, nisto atravessando a cidade inteira, e permanecendo bom tempo ao seu lado.

São tais vivências que se estabelecem nas nossas lembranças, quais peças de nossa própria existência, nítidas e fortes, calcadas de sentimentos por certo definitivos.

(Ilustração: Um misto, de Areia Branca, Rio Grande do Norte) https://areiabranca.wordpress.com/tag/caminhao-misto/).

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