domingo, 9 de junho de 2024

Uma nova chance

Bem que aquela manhã de domingo poderia ser igual a outras manhãs de domingo em Lábrea, no Amazonas, não houvesse a procissão sinistra, que apontava dolente na esquina, acelerando os corações dos moradores da rua calma, que saiam à porta, sacudidos de chofre no meio da rotina ensolarada, em espasmo sensacionalista para as brenhas remotas das cidades pequenas.

À frente, retido com vigor pelas de dois guardas fardados de caqui, um meliante e protagonista de contravenções, bares, drogas e luares escondidos nas matas do lugar, recebia no corpo, em ritmo tenaz, pêndulo infamante de cassetete escuro de um terceiro guarda, a contundir-lhe as costas sangradas e suarentas de prisioneiro perdido nos caminhos da delegacia.

Os gritos carregados rompiam entre as casas feitos lâminas de facão enferrujado rasgando os cipós da sensibilidade rude das pessoas, mistura de gente e animais daquelas selvas adormecidas, no clima sedento do Norte úmido.

Quando o tropel violento chegava mais perto de sua casa, Ednelza viu romperem-se as comportas do coração de jovem de 15 anos e, decidida, interpôs-se no caminho da turba fantasmagórica. Em confronto àquelas pessoas hipnotizadas a tanger indiferentes a cena, pôs-se de joelhos num susto, ergueu os braços em desespero e gritou aos céus, na propulsão de reclamar em nome dos milhares de pulmões injustiçados:

- Por amor de Deus, eu peço, por amor de Deus, parem com isso! – clamou com vontade, cheia da indignação de que carecem tanto abandonados de justiça neste mundo.

Surpresos, quais contidos por mãos procedentes de outra dimensão, os policiais contiveram o passo e levantaram olhos frios à moça alva, franzina, de cabelos longos, que lhes impunha respeito na força da atitude que detivera os seus instintos brutais. Refeitos do impacto inesperado, deixaram de moer o lombo do infeliz, andando a levá-lo quase desfalecido à cadeia pública.

Os populares, acompanhantes frustrados da estranha cerimônia às custas da dor alheia, se dispersaram nos becos, aos poucos restabelecendo a paz. Tão só Ednelza ainda manteve o tremor e as lágrimas, lembrança da judiação, mercê de quem aplaude os perversos em nome da Lei, nesses rincões afastados.

...

Tempo transcorrido, torno de mais de década após aquilo, perante apressados transeuntes no centro de Manaus, o ex-detento de Lábrea encontrou um dos irmãos de Ednelza, reconhecido seu, e testemunhou o quanto lhe fora importante para o resto da vida o grito de compaixão que sustara os guardas, naquela manhã de domingo, no interior do Amazonas.

Em consequência disso, cientificara-se do valor que possui cada um ser, defendido a troco de tudo, ao preço da comoção de pessoa dele desconhecida, distante, porquanto a coragem de Ednelza lhe salvara a vida. Na cadeia, pesara os desmandos praticados na existência que levava e estudou as chances de mudança através de modos e compromissos, sempre acreditando na firmeza autêntica de quem punira em seu favor.

Depois, reconstruíra sua história noutros termos, cônscio das reais possibilidades de que dispõem as criaturas e tratou de mudar para melhor, apressando-se a contar o efeito do gesto da jovem, que hoje é mãe de família e reside em Juazeiro do Norte, no Ceará.

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