Bem que aquela manhã de domingo poderia ser igual a outras manhãs de domingo em Lábrea, no Amazonas, não houvesse a procissão sinistra, que apontava dolente na esquina, acelerando os corações dos moradores da rua calma, que saiam à porta, sacudidos de chofre no meio da rotina ensolarada, em espasmo sensacionalista para as brenhas remotas das cidades pequenas.
À frente, retido
com vigor pelas de dois guardas fardados de caqui, um meliante e
protagonista de contravenções, bares, drogas e luares escondidos nas matas do
lugar, recebia no corpo, em ritmo tenaz, pêndulo infamante de cassetete escuro
de um terceiro guarda, a contundir-lhe as costas sangradas e suarentas de
prisioneiro perdido nos caminhos da delegacia.
Os gritos
carregados rompiam entre as casas feitos lâminas de facão enferrujado rasgando
os cipós da sensibilidade rude das pessoas, mistura de gente e animais daquelas
selvas adormecidas, no clima sedento do Norte úmido.
Quando o tropel
violento chegava mais perto de sua casa, Ednelza viu romperem-se as comportas
do coração de jovem de 15 anos e, decidida, interpôs-se no caminho da turba
fantasmagórica. Em confronto àquelas pessoas hipnotizadas a tanger indiferentes
a cena, pôs-se de joelhos num susto, ergueu os braços em desespero e gritou aos
céus, na propulsão de reclamar em nome dos milhares de pulmões injustiçados:
- Por amor de
Deus, eu peço, por amor de Deus, parem com isso! – clamou com vontade, cheia da
indignação de que carecem tanto abandonados de justiça neste mundo.
Surpresos, quais
contidos por mãos procedentes de outra dimensão, os policiais contiveram o
passo e levantaram olhos frios à moça alva, franzina, de cabelos longos, que
lhes impunha respeito na força da atitude que detivera os seus instintos
brutais. Refeitos do impacto inesperado, deixaram de moer o lombo do infeliz,
andando a levá-lo quase desfalecido à cadeia pública.
Os populares,
acompanhantes frustrados da estranha cerimônia às custas da dor alheia, se
dispersaram nos becos, aos poucos restabelecendo a paz. Tão só Ednelza ainda
manteve o tremor e as lágrimas, lembrança da judiação, mercê de quem aplaude os
perversos em nome da Lei, nesses rincões afastados.
...
Tempo
transcorrido, torno de mais de década após aquilo, perante apressados
transeuntes no centro de Manaus, o ex-detento de Lábrea encontrou um dos irmãos
de Ednelza, reconhecido seu, e testemunhou o quanto lhe fora importante para o
resto da vida o grito de compaixão que sustara os guardas, naquela manhã de
domingo, no interior do Amazonas.
Em consequência
disso, cientificara-se do valor que possui cada um ser, defendido a troco de
tudo, ao preço da comoção de pessoa dele desconhecida, distante, porquanto a
coragem de Ednelza lhe salvara a vida. Na cadeia, pesara os desmandos
praticados na existência que levava e estudou as chances de mudança através de
modos e compromissos, sempre acreditando na firmeza autêntica de quem punira em
seu favor.
Depois,
reconstruíra sua história noutros termos, cônscio das reais possibilidades de
que dispõem as criaturas e tratou de mudar para melhor, apressando-se a contar
o efeito do gesto da jovem, que hoje é mãe de família e reside em Juazeiro do
Norte, no Ceará.
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