segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Sísifo

Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz. Albert Camus

(Sem idade, nos sulcos da mesma montanha, subia Sísifo tangendo o trabalhoso rochedo, carnes banhadas no suor macilento de bronze derretido na lama das eras.)

Rei de Corinto, ele decidira enfrentar os deuses e seus roteiros caprichosos e nostálgicos no momento em que, escondido, testemunhou Zeus raptando Egina, bela filha de Ásopo, o senhor dos rios, cena que assistiu com insatisfação. 

Em Corinto, de tempos em tempos, crises de abastecimento de água sacudiam a população. Via nisso, portanto, oportunidade rara de saber de Ásopo por uma fonte de águas permanentes (o que não seria pedir muito, pensou), e disse ao pai infeliz aonde encontrar sua filha. 

Por tal motivo, Zeus, superior também nas respostas severas que usava para punir quem lhe ferisse os brios, determinou a Tânatos, deusa da morte, que eliminasse Sísifo. Astucioso, este desenvolveu modo de enganar a mensageira do fim, oferecendo-lhe um colar de contas, que prendeu no pescoço da deusa qual coleira de amolados dentes, tirando-a de circulação por algum tempo, prisioneira que ficou nas matas, longe do conhecimento dos outros deuses do Olimpo.

(Na função monótona de rolar a pedra enorme montanha acima e vê-la sempre retornar ao início da jornada, Sísifo via passar, na lente dos pensamentos, imagens da vida passada, fase por fase, a ritmos desordenados, febris.)

Em pouco, os deuses perceberiam a ausência de Tânatos, devido a percepção de Ares, o deus da guerra, e de Hades, o responsável pelo reino dos mortos. Onde andariam seus pacientes, que haviam sumido das estatísticas diárias? Ninguém morria mais entre os humanos com a prisão de Tânatos. Alguma mudança, pois, se registrara na rotina dos acontecimentos.

Aprofundadas investigações, logo descobriram em Sísifo o autor da traquinada. E vieram-lhe no encalço. Dessa vez (ele ria de si para consigo) a coisa fora longe demais. O poder das potestades exigiu de reparação que morresse e chegasse no Inferno, sem qualquer dó ou piedade. 

Morrer, morreu; mas antes pôs a teste Mérope, sua doce companheira. Que ela atirasse seus restos mortais na praça principal de Corinto, sob as vistas dos súditos, deixando de encomendar o corpo no ritual sagrado.

(Assim, passo a passo, ia lembrando o dia em que chegara no Inferno, magoado pelo gesto da esposa aceitar de bom grado a sua proposta rebelde.) E buscou Hades para reclamar aquilo, reclamando punição à esposa pela indiferença às leis do seu reino.

(Lembrou, então, seu retorno à Terra por conta do artifício utilizado, e do período que viveu escondido, nos braços carinhosos dela, de Mérope, até os extremos da resistência física.)

No dia estabelecido, chegara de volta ao Inferno. Desconfiado, zanzava pelos corredores, quando Hades chamou-o a termo pelas antigas presepadas. (Todavia jamais imaginara que o justiçariam como o fizeram, com esse castigo de repetir o gesto constante de erguer, ladeira acima, ladeira abaixo, o bloco granítico que no alto não permanecia, machucando-lhe dedos, mãos, braços, ombros, pernas, pés, na sucessão interminável dos séculos, tudo fruto da sua desatenção para com os deuses severos.)

(Incontinenti, ergueu aos céus olhos famintos de alegrias, batendo-se na fronteira da liberdade, por força dos eternos vínculos. Passou a mão pela testa ressequida, observou ao longe o vale de rara beleza penetrando os íntimos do horizonte e respirou fundo. Saboreava cada detalhe mínimo do tempo que vivera. Sorriso matreiro franziu o canto dos lábios, quando repetia mais uma vez a rigorosa tarefa, qual subisse pela primeira vez a estrada íngreme, tingida no vermelho alaranjado da manhã.)...

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