terça-feira, 27 de junho de 2023

O calvário e a matéria


Algumas afirmações ninguém jamais esquece, a exemplo de que ao nascer se inicia o caminho do fim. Nesse meio tempo, flui o itinerário da existência. Só quase poucos levam em conta a realidade disto. Qual lâmina de um rio à busca do oceano, a história significa. São seres, objetos, acontecimentos em constante relacionamento vidas e vidas. Mudam as línguas, os hábitos, os rituais, as construções, situações distintas, vestes, ornamentos, pretensões, todavia em puro sistema de falecimento, desaparecimento inevitável.

O que impressiona por vezes é raros sentirem de perto o procedimento de tudo em convulsão e desgaste, numa espécie de aceitação tácita de quem sabe e faz de conta que... No entanto bem assim tem que ser, porquanto a ciência disto pouca ou nenhuma diferença faz. Quais conspiradores de si, aceitam de bom grado o tal sistema sob o que realiza os sonhos impossíveis.

O que seria apenas o meio de encontrar a resposta torna-se uma farra, uma festa de êxitos passageiros e mordazes. Disso as filosofias desenvolvem seus postulados e alimentam o roteiro silencioso das memórias. As religiões demonstram possibilidades outras que sirvam de lição. Os exércitos aceleram o desfalecimento das massas. Enquanto cresce a população e todos aguardam o instante da solução desse drama.

Ser-se testemunha das ocorrências fortuitas dos esquemas humanos eis a função principal dos habitantes daqui. Olhos fixos nessa escuridão entontecida, porém, representa dar continuidade à raça e desfrutar da fragilidade. Acalmar os ânimos e sorrir, cantar, amar portais da fama em elaboração, que abrem de par em par o espírito e trazem o senso e usufruir da ausência imediata de uma resposta coerente.

Nós, a paisagem, o viajante e a mesma viagem...

(Ilustração: A crucificação, de Brueguel).


Entre a cera e o pavio


Mãos trançadas, agarradas, nutrem de sonho bom as jogadas geniais, no tabuleiro dos destinos. O terno desejo dos encontros das pessoas conduz esse barco através dos oceanos profundos do tempo, na permanente busca de parceiros que formarão casas, e os que delas nascerem e nelas habitarão saberem dos filhos posteriores. Espécie reverente de bailado harmonioso das abelhas em volta das colmeias, egoísmos e amores, desejos e sentimentos.

No começo, são as flores, perfumadas flores. Dois intransitivos rompem o cimento áspero, nos laços formados na cadeia do acaso, e mergulham de cabeça no confronto de dentro das novas gerações a virem. Outros, outros, outros até, deixaram o enredo coletivo das evoluções e se reduzem às equações jogadas nos calabouços, mosteiros e conventos, para, com isso, chegar à praça da apoteose dos céus. Vozes gerais, contudo, querer juntar os elementos e criar os clãs numerosos, vezes outras.

Há estudos aprofundados, realizados nos grandes centros, que dizem ser a mulher quem move o mundo. A beleza feminina, regente da orquestra das raças e dos amores, quais lindas luzes acesas, iluminadas de satisfação e alegria próximas às laterais do campo, blocos avassaladores de colombinas e odaliscas em roupas extravagantes.

Um vilão costuma, no entanto, entrar no jogo e alterar, com suas garras afiadas, o andamento saboroso das cenas, e injeta cizânia às relações, dúvidas e tons cinzentos ao cenário transcendental dos momentos indóceis dos corpos suados, apegados, rolados nas barras dos tribunais. O famigerado egoísmo, torpe propagandista da matéria em estado bruto; invade as noites platinadas e desafina os instrumentos; arrasa palco, expulsa público, escurece os camarins, rasga pautas e poltronas; e acrescenta versões sensacionalistas ao setor da normalidade açucarada.

Mas o amor ainda e sempre seguira intacto, guardado debaixo das sete capas dos humanos corações, no mais íntimo sacrário do mistério. Matizes dourados esconderam o fator principal das luas enamoradas; bem subterrâneas paixões viraram agora traços definitivos, diante dos impossíveis métodos de tonalidades que pareciam reverter a expectativa dos numerosos apaixonados. E eles sobrevivem nas ondas azuis da madrugada. Contar isso, os termos e alentos de suspiros ainda quentes, mergulha nas entranhas os pensamentos imaginosos do atual cinema nacional, e leva mais longe a roda dos destinos que resistam a preço de glórias inesquecíveis.

Alguma qualidade nova dos humanos, portanto, justificará essa resistência infinita da fibra dos amantes a toda corrente contrária, nas corredeiras dos romances medievais da Eternidade. Sei, sim, que, antes do final, o mocinho viverá fora do corpo de carne, resumo da história dessa luta entre o ego e o Eu, astronautas valentes dos choques da consciência.

domingo, 25 de junho de 2023

O silêncio e a solidão


Quer digam serem as palavras raiz da compreensão, o silêncio que elas dissolvem é a força do querer. Tais rios e rios de lágrimas, por vezes revoltas, no entanto falam bem alto de tocar as fibras do coração. Nesse mar de respostas imprecisas, ali desenvolvem o entendimento e abrem espaço ao mergulho às profundezas escuras. Permitem fazer face aos mistérios terríveis e transportam das montanhas a ignorância. Suportam as dores do cotidiano. Abrem o leque da percepção ao infinito de todos nós. O silêncio ou a solidão viram o absoluto do som de uma única mão ao bater palmas. A música do silêncio, que grita aos quatro ventos o sentido das histórias deste mundo, diante das fronteiras desse palácio de solidão. Repercutem as vozes e ampliam na alma o senso da realidade de um modo superior a tudo quanto existe. Foram milhares de séculos até quando as luzes clarearam o abismo da criatura humana. Passadas todas as aparências, epopeias e lutas, certo tempo o silêncio preencheu as impurezas dos tantos raciocínios e inundou de paz o firmamento. Dotados de toda e qualquer culpa, no entanto a profundidade dos sóis apenas indica a porta da transparência. A tudo isso caberá, todavia, reconhecer o quanto se abriu ao equilíbrio original e permite, afinal, a plena iluminação.

As palavras, que são incontáveis, chegam gradualmente e impõem o objetivo dos pensamentos, sem, contudo, trazer de vez a luz real do sentimento. Nisso, no instinto da procura, só assim virá o transe da percepção.

Pois é isto, de nada importa a multidão enfurecida de prazeres e poder, conquanto a história há de continuar eternamente. As mãos dos destinos imperam, e pronto. Grandezas menores e frágeis alimentam a ilusão que rompe o escarcéu dos dias e desmancham as derradeiras sombras das madrugadas. Lavas de monótonas gotas caem insistentes no íntimo dos abandonos e tão só replicam essa vontade de controlar o incontrolável durante as chamas da fogueira que alumia o silêncio das horas eternas.

sábado, 24 de junho de 2023

Artimanhas do Destino

... Ou as hostes do imprevisível. Quando o mistério é por demais, não nos cabe questioná-lo. Enquanto isto, toda pergunta já traz em si a resposta pendurada no próprio rabo. De tal forma que, inclusive, achei de conhecer um mito que até então ignorava, a história de Lilith. Ela que, segundo consta, haveria de ter sido a primeira mulher de Adão, segundo várias mitologias que adotam o Paraíso qual origem desta humanidade.

Lilith é também uma figura da mitologia judaica, mencionada originalmente no Talmude hebraico do exílio da Babilónia (Séc. V a III a. C.). Na Idade Média, Lilith é apresentada como a primeira mulher de Adão, criada ao mesmo tempo e da mesma forma que este. Wikipédia

No início de tudo, pois, ali nasciam os dois a um só tempo. Porém os acontecimentos posteriores impossibilitaram deles o convívio. O homem pretendeu sair à frente e dominar. Ela, contudo, exigiu o mérito da igualdade, sem ser atendida, e daí reagiria sobremodo, a ponto de, segundo o mito, fazer face ao andamento inicial e criar outra condição individual. Está lá, na Wikipédia:

No séc. XIII, na obra de Isaac ben Jacob ha-Cohen, é introduzida a narrativa de Lilith deixar Adão ao não querer submeter-se à sua vontade e recusar ser-lhe subserviente com o argumento de ser igual a ele, criada ao mesmo tempo e da mesma matéria que Adão. Lilith abandona, então, o Jardim do Éden e não regressa após cópula com o Arcanjo Samael.

Esse gesto de rebeldia  levaria ao quadro de, adiante, resultar em o Poder tirar de Adão uma costela e, no versículo 23, da Gênese, advir a segunda mulher do homem, indo, no final das contas, ambos presenciar o exílio pela desobediência.

Bom, são estas algumas considerações a propósito desse personagem que frequenta diversas culturas e mostra o aspecto dos encaminhamos do Destino no seu roteiro da evolução, até o resgate da obediência nas futuras previsões da espécie humana.


quinta-feira, 22 de junho de 2023

O rio do Tempo


Às suas margens, seguem os acontecimentos convertidos em saudade. A gente ali de olhos lavados na paisagem, a contemplar o fluir dos dias, seus filmes, suas músicas, as amizades, os livros, as viagens, os sonhos... Quais monges silenciosos, deitamos ao longe os sentimentos e as lembranças que ora banham nossos pés. Nítidas visões de antes, que permanecem vivas e intensas, sacodem as margens de nós mesmos e trazem de volta, intactos, os momentos em que vivenciamos tantas histórias e contemplamos tantas luas a iluminar as noites mais intensas da existência. Pessoas que insistem andar aqui de junto, visões do Paraíso onde habitamos de almas alimentadas de desejos e vontade que nunca sumissem... E agora descem pela correnteza de nossos pensamentos e contemplações. Há previsões soltas pelos livros de que existem os registros acásicos, imorredouras histórias que jamais deixarão de existir nalgum lugar do Infinito. Guardados sob o poder da Natureza eterna, os lapsos continuaram para sempre, passíveis de ser experienciados, revividos a qualquer hora; deles somos partes integrantes, a consultar essas estantes imorredouras.

Nisso, fixamos o foco da compreensão e assuntamos tantas vezes as horas felizes, divisamos doutras vezes o brilho das situações alegres, espectadores do Destino, aprendizes da Felicidade. Quanto de bom aqui dispomos logo hoje, a desfrutar dos enlevos conquistados nesta vida, senhores da certeza ao conduzir nossas escolhas pelos melhores caminhos. O amor nasce do merecimento que conquistarmos. Reunimos, pois, passo a passo os fragmentos desse tempo em nosso coração e elaboramos o pouso de nossas esperanças de obter a Paz. Conquanto sejamos filhos da imensa Perfeição, trazemos de origem a condição de concretizar a luz da imortalidade. Assim, enquanto presenciamos o caudal dessas luzes que percorrem nossas vistas, à margem deste rio da Eternidade, guardemos conosco a plena liberdade com que certo dia construímos dias de bênçãos e harmonia na trilha de que somos agora personagens e testemunhas.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

O enigma humano


A árvore do conhecimento do Bem e do Mal, isso é o que somos. Um universo inteiro que transportamos dias afora em nossa consciência. Pesquisadores de si à busca de revelar a sua destinação, experimentamos mil pedaços de vida até encontrar aquele que atenda o sonho da perfeição. Enquanto isto, detemo-nos em diversos pousos que a existência oferece. Conhecemos e vivenciamos. Desfrutamos da individualidade sob as determinações de um poder até então desconhecido. Sabe-se que existe a exatidão, no entanto apenas imaginamos o que seja, e sonha-se com a felicidade plena.

O mais fabuloso nesse caminho é sermos responsáveis pelos próprios atos e escolhas, a ponto de responder fielmente aos frutos que gerar. Tangemos a barca do destino face às incertezas do estado atual de nossa compreensão. Sustentamos a vontade perante os mistérios aonde pisamos pela primeira vez. Criamos nossas qualidades na medida em que exercitamos o mecanismo da presença diante do imaginário. Observamos as reações da natureza em que situamos nossa atividade, senhores das consequências de agir.

Espécies de seres maravilhosos neste vasto e inesperado paraíso, constroem o sentido da história da qual são autores e protagonistas incessantes. De modo simples, a todos seu merecimento inevitável. Portanto, buscadores da Verdade Absoluta, perlustram inúmeras verdades só parciais no decorrer do tempo. De braços abertos aos fatores da sobrevivência, padecem da responsabilidade de si e pelo seu desempenho face aos demais. Tudo isto a ser pesado e medido pelo Senhor dos Mundos e Criador de Tudo.

Chegamos, crescemos, experenciamos os sabores do Universo em nossa constituição física, mental e espiritual, e seguimos a tocar nos segredos às nossas mãos. À medida que desenvolvemos a possibilidade do conhecimento, integramos em nossa constituição a Ciência de que fomos elaborados com objetivo exclusivo de evoluir e realizar o enigma em que habitamos em nosso mesmo ser. Eis a razão e finalidade exclusiva de estar aqui.

(Ilustração: Bhagavad Gita A. C. Bhaktivedanta Swami Prabhupada)

sexta-feira, 16 de junho de 2023

As noites misteriosas


Nesse mundo, quando vier a noite, livre, lerei meu caminho nos astros
. Saint-Exupéry

As tantas horas que vagam na escuridão das noites, bem ali existe a força de tudo quanto há, guardada a sete chaves. Olhos voltados a dentro, passa em silêncio o burburinho das horas esquecidas. Silêncio. O deslizar suave do vento pelos cabelos da imensidão. Um eco profundo de mundos sepulcrais permanece suspenso entre nuvens e folhagens. Na sombra da Eternidade, nesse lugar, persiste só o momento. Lá longe o latido insistente de algum cão tresmalhado, esquecido talvez no meio das ausências encapuzadas de antes. E, nisso, um ruído intermitente dos relógios doutros lugares, ao passo dos mistérios. O que mais persiste, a vontade que nunca de novo cantem os galos e acordem o dia que virá.

Qual quem abre baús enormes de solidão adormecida, esse desejo de que a noite se estenda ao longo das horas quero crer fustigue o senso de muitos. Aguardar em si, de olhos abertos, o cessar da escuridão, esperando o despertar da claridade nas fimbrias da alma, que revela até sempre o instinto de paz que habita nalguns desvãos das noites. Às vezes, insones, trabalhadores comprometidos em fazer valer a sorte, acreditam poder ficar um tanto mais no leito aquecido e sobreviver ao impulso dos dias. Quantos, tantos, sonham permanecer junto dos seus e desfrutar da alegria das manhãs ensolaradas.

Em mergulhos infinitos, no entanto, logo, da distância, vem o som cavo das palpitações no coração, enquanto escutamos assustados seus segredos que datam das longas noites largadas aos céus. Músicas de mundos desconhecidos, assim nascem todas as canções. Dessas melodias atônitas  chegam as trilhas do sentimento, razão das saudades e lembranças vagas do passado que fugiu sorrateiro pelas dobras do horizonte.

Um passarinho longe


Num tempo que sobrevive na memória, persiste a minha infância das tardes quentes de final do ano quando me deitava de bruços sobre o piso de cimento queimado da casa de meu avô, no Tatu. A vista sertaneja tremia nos olhos com o sol causticante a rebrilhar nas pedras da bagaceira. Os viventes do lugar se mantinham reservados no pouso, que ninguém arriscava sair ao relento debaixo daquela explosão luminosa. Até os trabalhadores do eito aguardavam chegar às três horas para voltar ao cabo da enxada e preparar as terras, na esperança incerta de chuvas próximas.

Friozinho gostoso na barriga me grudava ao solo. Na casa, todos dormiam a sesta. Janelas fechadas e a porta da frente, de duas bandas horizontais, abria apenas a metade superior, trazendo de longe o canto de um passarinho na distância das matas. Intensos trinados teimavam falar de mundos ignotos, o que calava no mais íntimo da criatura. E nele viajava no espaço da imaginação solitária de menino.

Mergulhava por dentro dos abismos de mim mesmo, na lembrança das histórias ouvidas no serão das noites anteriores, expedientes coletivos antes de chegar o sono. Eram as visagens daquela casa construída por dona Fideralina, a bisavó de meu pai e quem primeiro ali habitara e deixara enterrada, em algum ponto ainda hoje intocado, botija de prata e ouro, no que pese haver sido a preocupação constante de alguns adultos da família por um bom tempo.

Meu avô, dormindo de rede no quarto da frente, porta entreaberta, ressonava em tons diversos. Do outro lado, o quarto da cera, sempre de portas e janelas lacradas de pano, era o mistério principal da construção. Nele rasgavam trabalhadores palmas de carnaúba e tudo invadiam de poagem esverdeada, com isso formando os tijolos de cera transportados no lombo de burros e vendidos em Lavras.

Nos fiapos suaves do canto longe do passarinho, pisava as veredas dos sítios em torno, por vezes, trotando nas montarias que cruzavam o beco entre a casa e o engenho, curso da parede do açude velho e da cancela ao término do trajeto que marcava com batidas secas o ritmo monótono do relógio perdido naqueles tempos imaginários.

Enquanto retornava pelo fio do canto do pássaro, na brisa morna da soalheira vespertina, distinguia também o som enjoado de moscas a zumbir no ar, contradizendo o silêncio instigante do trinado remoto. Virava de costas ao chão e observava o teto antigo, linhas de carnaubeira e telhas manchadas de goteira.

Ao fim do corredor, escada e corrimão davam a sótão escuro, de portas trancadas. Logo embaixo, a sala de jantar. Uma mesa imensa de madeira escurecida e bancos laterais rústicos escondiam cães adormecidos, aonde, nas épocas de moagem, comiam as turmas de empregados taciturnos. Em rumo da cozinha espaçosa, no fundo da casa, três potes enchiam a cantareira umedecida de lodo emoldurada de bandejas na parede e copos de alumínio areados pendurados em tornos de madeira.

Depois, os moradores da casa acordavam meio sonolentos, aos poucos enchendo de ânimo ao rotineiro movimento do resto de tarde. E longe prosseguiam os acordes maviosos do passarinho... Longe... Bem longe.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Largas e aparentes contradições


Se a Ordem afirma uma coisa, a Desordem, sua inseparável companheira, imediatamente afirma o contrário. Não podem viver uma com a outra nem uma sem a outra.
Hegel

Estampas rasgadas ao vento, assim que tocam adiante no caudal dos acontecimentos inevitáveis. Nem de longe pensar que há séculos, milênios, sempre foi e o mesmo tanto continuara eternamente. Até fechar cada uma das folhas secas individuais que carregamos conosco, o campo das contradições permanecerá aberto aos quantos detalhes de tudo, no entanto. São eles, os atores do velho drama da sorte a direito de todos. Fossemos calcular os perjúrios, haveria de sobra papel aos finais de tarde e tudo continuaria qual desde sempre.

A paisagem dos céus, portanto, segue seu destino. Horas a fio desertam das maravilhas e caem das árvores mais altas em forma de pó. Descem os rios no sentido deste oceano das possibilidades. Muitos, multidões, apenas erguem os olhos ao firmamento e sustentam a casa dos amores que vive solta no âmbito do peito. Símbolos de paz sacudindo aos céus, vivem e aguardam dias de serenidade ao mérito de quem obteve a resposta aos valores em andamento.

Isto do que o Tempo constitui a rede da liberdade, preenche na alma o sonho da esperança constante. Nem de longe interessa fugir do que aconteça, sobremodo face ao desconhecer da maior parte na pura consciência em movimento.

Viajássemos, pois, rumo ao desconhecido e saberíamos o porquê de ser dessa forma viver. Seguro diante do Infinito, alternativa inexiste de outros modos. Eis a razão fundamental de aceitar os aparentes recalques da Lei que a tudo rege sem falha alguma. Viver e conviver. Abrir o íntimo das horas no pomo absoluto da certeza, única forma de habitar o limbo deste momento. Aceitar de bom grado o cenário atual de tudo o que circula o furor das histórias que ora preenchem o teto deste Chão.

(Ilustração: Narcissus, de Caravaggio).

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Saltimbancos do destino


Na busca do Santo Graal, espalhados aos céus, viajamos todos a braços com os penhores em volta de que quase nada sabemos. Houve um tempo antes, o tempo das coleções, que reuni um tanto de pequenos objetos e resquícios doutros mais. Colecionei flâmulas, caixas de fósforo, lápis, selos estrangeiros carimbados, quadros de fita de cinema, postais, revistas em quadrinhos, de tudo um pouco. Tinha uma cômoda com quatro gavetas. Numa delas, as roupas. Nas outras, os exemplares de tudo aquilo que inventava reunir, qual quem busca o sentido através dos objetos e suas formas e cores. Depois, quando adquiri minha primeira bicicleta, então, esqueci aquelas afeições, que se perderam na voragem de anos posteriores.

Sempre assim, colecionadores de tempo é o que, na verdade, seríamos. Nos intervalos, as refeições, os adereços, viagens, pergaminhos, moafos, gente que encontrar, artimanhas em movimento e ausências profundas. Vez em quando, as lembranças que regressam e fazem ver o que restou, depositando nas dobras da memória os cacos que ficaram. Noutras palavras, significamos quase nada nesta conta de querer dominar os momentos e fazer deles instrumentos do destino. Representamos bem pouco ao sortilégio de jogos individuais, onde o aventureiro e o prêmio andam a braços com ninguém que descubra  a que veio.

Existem as teses, no entanto carecemos compreender e aceitar de bom grado o vazio em queda livre. Alguns padecem nessa impaciência do desejo e deixam ir por terra relíquias de si, trajes luminosos da alma que carregam bem dentro do ser. Eles, nós próprios, atores e expectadores de nossa expedição ao firmamento inalcançável. Senhores nem da imaginação que ferve no coração, apenas existem face a face com o Infinito, fragmentos de longas epopeias esquecidas.

Aqueles quadros de fita dos filmes, que guardava com cuidado, ainda agora dizem das histórias que hoje vivo; falam dos seres a bem saber iguais a mim que, todavia, são apenas tochas acesas num mar de emoções fugidias. Quando quero falar, são as palavras que dominam à frente e contam, sem pudor, tudo aquilo que antes dormia em silêncio pelas horas sem conta.  

(Ilustração: Alegoria da Luxúria, de Hieronymus Bosch).

Sentimentos


De comum, existe essa mania de resistência aos sentimentos, porquanto se vive numa sociedade mecanicista e quem for podre que se quebre. E nisso vão passando ligeiras as chances de conhecer aspectos outros da personalidade, ali onde habitam os seres da floresta da alma, quase sempre deixados em segundo plano, só trazidos nos instantes de fraqueza e desespero, na solidão dos tortos. Porém bem outra compreensão persiste aberta, isto nos contos, na arte, nos romances proibidos, nas noites escondidas dos mistérios.  

Criou-se o tal conceito de que sentir é debilidade; que saudade significa perdas e derrota; que poesia representa falta do que fazer. E nisso imperam os fortes, os gigantes das montanhas, os grandes, poderosos. Chorar significa danos morais, pouca iniciativa e nenhuma verdade neste mundo sórdido e cruel. Conquanto as dores compõem o quadro da história da raça, esconder pede atenção em defesa do status dos impérios. Vencer, vencer, vencer, eis a meta suprema das visões.

Nesse diapasão, padecem as multidões atiradas à lama das injustiças quais seres insignificantes face o potencial soberano das classes que dominam. Detêm o furor sem tréguas e quem for podre que se quebre. Daí vêm os filmes de guerra, o valor dos impávidos, das grandes corporações em movimento; dos vitoriosos no trono das nações. Esquecidos, pois, aos museus de antigamente, relíquias recuperadas nas ruínas e nos guetos, ressurgem os poucos que exerceram o papel de sentir no âmago as angústias da solidão e da fúria dos bárbaros.

Vezes sem conta vem sendo assim, dos boêmios nascem as canções do exílio, das telas dos ditos gênios resta a paisagem da destruição do que sumiu nas catástrofes das civilizações. Eles, os filósofos, os místicos, santos, profetas, preenchem o sol de antigamente, de quando havia amor e paz nos sonhos dos humanos. Tudo a crédito dos sentimentos, razão menor das existências. E permanecem os valores arcaicos das outras possibilidades até então quase nunca exercitadas pelos habitantes das estrelas que vivem neste chão de pedras.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Sonhos do inesperado


Dentre outros mistérios dos centilhões que habitam o Infinito, lá vêm os sonhos no meio das noites. Filmes produzidos por nem sei quem, invadem o âmbito das consciências e veem concretizados os mais diversos significados. Sacodem os laços do impossível e, não sei quantas vezes, seguem os seriados noturnos das horas antes ignoradas. Às vezes, contam de civilizações desaparecidas, povos vivos a conversar entre si ou com a gente mesma, nos idiomas nativos que desaparecem logo depois, indo ninguém sabe aonde. São máquinas assim inexplicáveis nos dias atuais que, por maior esforço se faça, a memória rejeita trazer de volta e desaparecem nos para sempre dos sonhos, sujeitos a retornaram de uma hora a hora. Vi recentemente mães de tribo inca as quais nunca imaginara existissem a conduzir filhos no colo. E noutro sonho lugares onde passei e que a memória havia esquecido houvesse, trazendo de novo quando menos esperei a iguais sensações. Enquanto isso, noutro, a realidade presente de todos que existem nesse pedaço de chão, submissos a condições imponderáveis, cercados de circunstâncias coercitivas, prisioneiros que fossem das ilusões que vivem na matéria. Grupos de pessoas a combinar as próximas ações de cena, tais atores de dramas realizados na atmosfera. Rostos claros, porém desconhecidos, de pessoas a compreender o sentido de participar da película, dotadas de nítidas histórias que também fazem parte daquela produção, nisto conscientes do nível de submissão a essa vontade superior que rege a dimensão onírica em constante formação através dos sonhadores. Noutros, é gente conhecida que, junto da gente, realiza missões, funde compromissos, determinados a cumprir deveres internos daquela montagem cinematográfica que acontece no círculo das noites e, decerto, guardam razão de ser até com outros seres que estejam na mesma sintonia. Mas ficou bem nítido isso de ser prisioneiros das determinações maiores às quais em outras alternativas inexistem senão de obedecer, cumprir papeis evidentes e uteis por meio dos sonhos, isto a ponto de pensar até que estejamos aqui apenas aguardando a ocasião prevista de entrar em cena e concretizar naquela função de adormecer e sonhar pelas horas escuras antes do amanhã de vez das criaturas humanas.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Artifícios


Isso de algum tempo antes, de quando a internet passava a funcionar com intensidade, e os professores agora vivem de orelha em pé  face ao risco de os alunos adotarem só o método de copiar e colar nos trabalhos acadêmicos. Tudo fruto dos meios desenvolvidos pela tecnologia, dos recursos provenientes da inteligência humana.

Lembro o uso, pelos partidos políticos, ao redigirem os programas das agremiações, num tal de transcrever o que vinha dos outros e colar num quanto mais avançados, idealistas, progressistas, melhor. Sem maior cerimônia, os reacionários viravam avançados, e punham no papel o que atendia às suas intenções, apesar de quase nada, ou nada, vier à tona no decorrer das práticas de governo. As filosofias políticas trazem disto com facilidade, a não dizer demagogia (me engana que eu gosto), no fazer das tradições. Quanta facilidade em criar fantasias, promessas, segundas intenções. E enchem as folhas dos jornais, dos cartórios, da ingenuidade popular; mera formalidade de uso constante.

Nos tempos de hoje, pelo mundo inteiro, a moda pegou. A teoria é outra do que a pratica. Querem forjar, no estilo sofisticado das palavras, e encher a boca de largas tiradas e circunstâncias que carecem na intenção de enganar, de uma hora a outra viram notícia e ocupam cargos e dominam os destinos. Digo agora, mas a história vive cheia disso. da luta pelo poder e a enganação das massas, sujeitas ao furor dessa ganância. O que classificaram de Democracia, na tradição grega, claudica e corrompe as práticas sociais.

Para Nicolau Maquiavel , os homens são tão simples que quem quer enganar sempre encontra alguém que se deixa enganar. Destarte as próprias sociedades precisam evoluir a partir dos cidadãos, o que resulta na demora que vemos e que necessita ser vencida, a fim de termos, um dia, o mundo ideal que todos sonham.

(Ilustração: O jardim dos prazeres terrenos, de Hieronymus Bosch).


quarta-feira, 7 de junho de 2023

Revolução


A madrugada ia alta quando o 23.º Batalhão, estacionado em Sousa, mantenedor da legalidade na fronteira da Paraíba com o Ceará face às movimentações da Revolução de 1930, teve sua aparente calma rompida pela aproximação de um automóvel que trazia as definições do conflito. Logo na chegada, parando o veículo, Juarez se dirigiu à sentinela, transmitindo ordens para o oficial da guarda.

- O batalhão se acha rendido, quero disso assegurar - foi dizendo. - E avisem ao comandante que vim receber o posto; espero urgente resposta. A guarnição deverá, pois, obedecer às minhas determinações.

Sem demora, aquela mensagem seguiu até a casa do comando, na praça ao centro da povoação. Bem nesse instante, frio metálico percorreu a espinha dos combatentes, qual rastilho de pólvora, enquanto friagem cortante ritualizava as bordas do alvorecer sertanejo. Era a gravidade do momento em via de solução, após dias angustiados de espera.

Despertos no roldão da tempestade, os militares agiram rápidos a compor o fardamento, meio tontos de sono passado, corpos oscilantes, envoltos no clarão fumacento das lamparinas dependuradas no teto. Agitação desconformada estonteava os homens.     

Na sala de visitas, o titular da tropa, olhos baixos, semblante grave, refletia o extremo da situação. Reunira todos; impunha-se uma decisão frontal: entregar armas, apanágio dos guerreiros, ou ao máximo resistir.

Depois de vistos em detalhe todos os acontecimentos,  foi ouvido, sem exceção, quem restava presente. A tendência de rendição parecia inevitável, quando, num ímpeto, a voz rouca do oficial de comando se fez ouvir:

- Não tenciono me render; ouçam isto como à minha palavra final. Tem outra coisa além dessa; vou explodir o paiol - em Sousa ficava situado depósito de munição suficiente para causar danos num raio de vários quilômetros, caso fosse pelos ares. - Quem quiser me acompanhar, irá ver agora mesmo.

Falou e, de pronto, se ergueu no prumo de um dos cantos do cômodo escuro, onde duas latas cheias de gasolina davam azo à manipulação pretendida. Debalde procuraram os outros milicianos dissuadir o comandante de qualquer gesto tresloucado, ainda que em vão resultassem os esforços, talvez pela falta de habilidade, dir-se-ia; assim, não dominaram o suficiente para impedir outras atitudes. Ele, armado de dois revólveres, abriu de chofre as rótulas da porta principal do casarão, saindo a esmo na busca dos inimigos, Juarez Távora e os demais que juntos vieram, para efetuar, no depois, carga de sucessivos disparos, sendo atingido pelo fogo de resposta e levado exangue ao solo já vermelho nas claras do dia vindouro.

A viúva desse soldado, residente em Fortaleza, ao receber telegrama que o dizia preso após rendição, ignorou a notícia, observando conhecê-lo o suficiente para saber que jamais se entregaria vivo; e admitiu haver sido o marido morto numa ação de luta aberta, como aos bravos cabe sobrevir.   

(Ilustração: Reprodução (https://www.facebook.com/VictorFidellis/).

 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

O senso da imortalidade


O limite do ilimitado é limite nenhum
. Chuang Tzu

No ímpeto da correnteza voraz, os acontecimentos pedem o silêncio. Há pesos enormes sobre os ombros das criaturas humanas. Fardos de proporções inimagináveis constrangem o firmamento de encontro às montanhas do Ser. Algo tal que me parece nuvens de tempo a impor condições evolutivas. Por mais se deseje interpretar as normas do destino, elas apenas seguem a raiz de suas origens, quais fragmentos de pequenas atitudes a seres imaginários. Nisso, ninguém apresenta o rosto de mostrar a que veio. Vultos encapuzados deslizam pelas sombras. Gestos esquecidos e respostas inúteis. Há que ir adiante por força desse quadro cheio de passado morto e perdidas ilusões, horas a fio, enquanto os autores procedem neste anonimato. Ausência. Ansiedade. Expectativas. Resumo desses dias de silêncio, das filosofias, do clamor das religiões, dos conflitos e dores.

Resta saber o quanto somos sós em nós mesmos pelo que ansiemos de respostas. Vontades extremas de superar a escuridão deste momento, tão apenas gestos de sobrevivência é o de que vive a multidão. Ninguém que aventure as hipóteses precisas de resposta. Permanecem em súplicas face ao desconhecido. Época que abrange tudo em volta. As afirmações vieram à tona sem, contudo, preencher as urgentes necessidades.

De quem eu consigo lembrar, nesse ainda prevalece a dúvida crescente de querer praticar o inevitável confiantemente. Todos pedem paz, e as superpotências fabricam, sem cessar, armamentos que destroem o princípio da razão. Conheço pessoas que rezam constantemente. Fixos na contrição, sustentam o equilíbrio de si e clamam novos dias.

Enquanto isto, dissemos prisioneiros dessa cápsula, a cápsula que contém o que já somos, células em ebulição dentro de tudo. Pouco ou nada importam nomes e números que sejamos, conquanto sempre sejamos nomes e números. Vasos comunicantes da gente com a gente, formamos seguimentos do que logo existirá aonde quer que seja. Blocos de notas do mistério, escrevemos na alma e no coração, em letras brilhantes, segredo guardado debaixo de sete capas. Vidas provisórias, paraísos em transformação, no entanto que seguem o trilho da Realização do ser que seremos de nossas mesmas mãos.

 

domingo, 4 de junho de 2023

O caçador e as onças


Num tempo quando não havia televisão, internet, celular, se é que acreditem hoje que houve esse tempo, eram os circos que prevaleciam. De empanadas coloridas, viviam de cidade em cidade. Tinham palhaços, trapézio, animais ferozes meio domesticados, orquestra e, no final da função, uma peça de teatro, isso tarde da noite, quando os espectadores já começavam a sair. Era uma festa só. Cheguei a conhecer alguns desses circos famosos. Ficavam montados em um terreno baldio lá defronte da estação ferroviária. Enchia os olhos, inclusive durante os dias, quando íamos conhecer os atores e os bichos na preparação do espetáculo noturno.

Bom, mas quero mesmo é contar uma história engraçada, do anedotário popular, em relação a um dono de circo que precisou de umas onças a ser usadas nos seus espetáculos e buscou a primeira floresta, onde lhe disseram haver o tal felino. Lá encontrou um caçador conhecido pela habilidade em capturar onça e encomendou a captura das feras, conhecidas daquelas imediações.

Acertaram os custos e foram juntos ao meio da floresta. O caçador se embrenharia na mata e o proprietário do circo e seus assessores permaneceriam numa pequena choupana vazia em que se arrancharam, à espera das providências do caçador.

Este, no faro que possuía, logo acho a primeira das feras. Cerca daqui, cerca dali, e foi perdendo a oportunidade mais exata de aprisioná-la. E qual o quê, a onça partiu na direção do profissional, querendo levar a melhor. Ele, na iminência de perder o feito, arrancou às pressas na direção do casebre onde os outros ficaram. Pega daqui, pega dali, até que chegou na casa e avistou uma das janelas aberta. Num salto monumental, quase cai em cima do tabuleiro de dama em que eles jogavam, isto seguido de porto pela onça voraz. Dai, foi logo gritado:

- Segurem essa que eu vou buscar as outras, - e, no mesmo, saiu às pressas pela porta da frente que tinham deixado aberta.

Ilustração: Circos antigos (https://marcozero.org/fotografo-da-mz-expoe-fotos-do-universo-do-circo-no-recife-antigo/).

Aonde eles se escondem


Vivem disso, de buscar esconderijos. Habitantes das sombras, fogem do dia quais quem quisesse desaparecer, mas não obtêm êxito. Percorrem as multidões, no entanto de rosto lavado, desconfiados e matreiros. Correm léguas de serem reconhecidos. Acho que, talvez, precisem sabem o valor de tudo, enfim. Ninguém foge ao destino, diz a língua comum.

Dessa abertura, vale buscar um pouco mais do que iniciamos. Eles que vivem forasteiros de si por vezes seremos nós próprios e nossas armaduras enferrujadas. Submetidos aos ressentimentos da sorte insistente, cheios de escafandros e lesmas, seguem estrada afora, longe de saber a que veio, o que fazer e aonde se esconder dos afazeres da evolução inevitável. Atrasam séculos, milênios, porém constrangidos aos golpes da fatalidade dos dias. Uns, menos apressados, vestem as túnicas dos vaqueiros e mergulham pelas matas à procura de animais enfurecidos. Outros, mais afoitos, invadem as plataformas sociais e dançam, e farram à luz do dia. Nós, eles, os transgressores desse planalto misterioso.

Prudentes nalgumas ocasiões, noutras mostram os dentes, rasgam tempestades, vendem a alma nos leilões das vaidades, conquanto sabendo que nunca irão entregar o que não lhes pertence. São sombras, meras visagens no escuro dos sonhos apressados. Visões de menos avisados, deitam e rolam no placar dos estádios cheios. Isso dos céus aqui no chão, pedaços do todo universal que vacilam e crescem nas hostes do impossível. Alimentam medos, culpas, fracassos, distâncias abandonadas, e descem, sobem, sustentam a tese de existir com a carne que lhes contém o espectro teimoso.

Passados que foram tantos comboios desta constituição de astros e estrelas em movimento nos céus, muitos explicam e poucos compreendem, entretanto aqui vertem o tempo no seu líquido esplendoroso. Ainda que quisessem, jamais venceriam o trilho implacável do Infinito. Apenas mera vontade, mesmo assim que insiste vencer a Luz e sustentar as hostes do mistério enquanto dispuser de força a contrariar o Poder nas horas soltas ao vento.

sábado, 3 de junho de 2023

Ilusões de um messias indeciso


Era uma manhã de sol aberto, quando, na sombra de uma árvore, lera o livro de Richard Bach cujo título encima esse texto. Isso há duas ou três décadas, antes de viajar e demorar pelo mundo afora. Guardara, no entanto, as emoções que a história lhe passara. Espécie de identificação com tudo aquilo que vivenciara da ficção, sinais permaneceram consigo tempos e tempos, a ponto de agora, nalgum lugar, à mesma hora daquelas leituras, retornarem nas mesmas proporções  que, ao que parece, ficaram fazendo parte dos espaços de memória. Algo assim qual razões principais de interpretar ao pé da letra o que lera.

Dalgumas obras têm sido de tal modo, entranharem nas fibras internas da mente e quererem, vez em quando, retornar e ditar as regras da compreensão em tantos outros momentos vida adiante. Às vezes, versos de canções, de poemas, frases inteiras de romances, contos, novelas, filmes... Esgotadas as possibilidades desses enredos, ficam cenas de rua, de aulas, viagens, sonhos... Uma sala de projeção como que se tornou a tela das imagens do juízo, e, a todo instante, novas cargas e voltagens regressam faceiras, espécies de seres vivos da criação interior da própria pessoa, a ponto de virarem questionamentos sem causa de quem determina ou ser determinado pelos encontros vocálicos dessas aparições inesperadas.

Ele, desde então, permanece neutro face ao todo das imagens sucessivas que mais parecem laços de destinos vagos originários desse vazio dos dias. Grudaram na sede da consciência e trabalham incansavelmente pelo domínio do território antes coordenado só por si.

E o título do livro de Richard Bach ganhou margem de ente dominante, quase peça chave do novo enredo, a contar não do personagem do autor, porém de personagem distinto que noutro fez morada, a impor o desejo contínuo de querer permanecer vivo e contar aquela senão outra e outras histórias insistentes nos céus de todas as criaturas e noutros universos. Força descomunal de vontade incontida, se sobreviver nas existências daquele e doutros leitores, tanto agora quanto para sempre.

(Ilustração: Reprodução (https://paragrafo.org/artigos/recomendados/64-a-ilusao-da-certeza).

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Mundo de ficção


Mas que outro se não esse daqui, palco da mais pura ficção, aonde os seres jamais morrem, e sim se encantam feitos pedras sagradas?! Eles, os alienígenas do espaço que fogem apressados quais farsas debaixo das nuvens, nas horas, e só desaparecem livres. Somem, simplesmente, astros de outras histórias que, de uma hora a outra, resolvem aceitar que autores os excluam da memória dos deuses e do capítulo seguinte, aqueles tais que antes fizeram a alegria de gerações inteiras, nos programas de auditório dos domingos à tarde, ou das tiras matutinas dos jornais, nas segundas-feiras. Surpresas desfeitas no ar, espécies de mágica de saltimbancos alucinados em feiras distantes, e nem apresentam as derradeiras cenas de despedida; só vão embora pelas portas dos fundos, e nunca mais.

São que nem peças de museus abandonados depois das guerras; elas viram sucatas de ponta de rua, largadas nas calçadas dos ferralheiros embriagados, ainda com o odor esquisito de fumo velho misturado a incenso das farras escurecidas, sombras das chuvas ao soluço do Verão. Isto que significa longas trajetórias das epopeias clássicas, heróis adormecidos e amarrados na popa dos barcos, a que nunca escutem o canto das sereias, restos de paixão e desengano.

Esses tais passageiros da agonia quando aqui descobrem, pois, que podem encantar-se nos mistérios gozosos, souvenires de antigas civilizações, saem conduzidos no bojo das naves interplanetárias. Bom saber quando descobrem o senso dessa imortalidade ainda durante o correr das luas; nisso, bem viver os acordos de paz e dormir sobre as vestes imundas de si póprios, lá longe dos temores e pesadelos. Mártires de lendas fantásticas alimentadas séculos para sempre, serão senhores de vida e morte, agora que encenam felizes diante da Eternidade. Nós, criaturas às vezes desumanas que passeiam pelas veredas da Sorte, os salvos que a isto esperam até o momento de regressar aos braços carinhosos da divina Consciência.  

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Sonhos ambulantes


Belo dia desses, de sol intenso e sons de natureza e multidões aguerridas marcham à busca de realizar as ideias vindas desde sempre à consciência; decidem seguir os sonhos alimentados pelos séculos da solidão individual. De armas em punho, instrumentos outros de consecução pessoal, livros, lenços, gravatas, arados, animais, transportes, automóveis reluzentes, distendem a fome de viver em mil pequenos fragmentos os quais largam nas estradas. Sabem que querem isso, aquilo, posses, fama, prestígio social, poder, beleza, paixões, apetites, lassidão e furor. Guardam na alma o desejo fantasioso de que, nalgum momento, talvez, fugirá da morte, nesse jogo de claro escuro em que vivem, tais o personagem de O sétimo selo, de Bergman, que desafiou a ingrata dos mares numa partida de xadrez... e venceu. São eles, os ambulantes vadios dos sonhos que nutrem a ferro e fogo as dobras da sofreguidão.

Eles, seres conhecidos de todos, que acordam cedo, banham o rosto, se repastam às pressas e saem fantasmagóricos no sentido da procura, de transformar o sem nexo em algum. Tais assim quais quem busca aonde chegar, pesquisam nos mapas eletrônicos, experimentam  as funções de que dispõem. Criam vasto universo interno, propriedade exclusiva dos seres humanos; trabalham com afinco o elã de rever as vitórias dos antigos na mesma qualidade duvidosa. Daí, surgem nas lutas inglórias de irmão contra irmão, humanos versus humanos, reprise grosseira das tardes insólitas do Inferno; e deitam laços cruéis sobre os escombros de que também fazem parte.

Nem sabemos que sonhamos, ou somos sonhados, pelos bruxos das florestas noturnas, horas essas de reconsiderar a que viemos, o motivo de estar aqui e a razão fundamental de sonhar, que seja isso apenas. O amor, portanto, só ele justifica o horizonte das quantas vidas ora em movimento. Os outros fatores serão causas perdidas e pesadelos inúteis. Elevar aos planos da Esperança o instinto de construir uma história nova e fazer valer a inteligência nos melhores ideais, eis o princípio de tudo, afinal.

(Ilustração: O sétimo selo, de Ingmar Bergman).