quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Conflito de terra

Isso de lembrar apresenta aspectos por vezes misteriosos. Numas horas, de manhã bem cedo, acordo querendo rever cenas de sonho da noite e, quanto mais pretendo, parece que as lembranças criam asas, fugindo quais fumaças no tempo infinito. Noutras, sem imaginar situações do distante passado, elas afloram com tamanha intensidade que chegam a impor ao pensamento histórias esquecidas de longa data, fincando garras e impondo condições, a ponto de prevalecer sobre preocupações contemporâneas.

Há coisa de cinco ou seis dias, cresceu nas vistas de minha recordação momento desses, de época em que, menino, vivi com meus pais nas terras dos meus avôs, em Lavras da Mangabeira.

No alpendre defronte à casa grande, observava movimento de homens a retirar do quarto das selas os arreios de dezena de burros e cavalos. Percebia algo de incomum nas atitudes, porquanto, além de esteiras, cabeçadas, selas, ferragens, via balas, cartucheiras, bornais, revólveres e rifles.

O patrão e seus comandados falavam baixo apenas necessárias palavras. Ainda assim, consegui compreender o que se dava. Nas extremas das terras, ao lado poente, depois do Riacho do Meio, vizinhos deslocaram os marcos divisórios e invadiam posições, motivo da apreensão manifestada.

Ao som de esporas, relhos, ordens e gritos aos animais, seguiram enfileirados, na direção do confronto. À frente, austero, de chapéu de massa escuro quebrado na testa, o coronel levava junto consigo fiéis caboclos. Cruzaram o brejo de cana, depois do estalar da cancela na cerca pegada ao engenho. De longe, ainda se ouvia o tropel da solene procissão, armas da religião arcaica da violência. 

Abraçado em um dos balaústres da varanda, apreensivo, presenciara o desenrolar tardio daqueles costumes do desforço físico, testemunha inútil do que, por sorte, redundou numa solução negociada. 

No mesmo período, a fazenda possuía vida própria. O sertão lhe permitia a mínima sobrevivência, no estrito penhor da gleba mantida a ferro e fogo, mundo feudal de antanho.

Por si, o quadro enfeixou nas lembranças, mostra do jeito humana de funcionar, guardiões que somos de carcomidos mundos sociais, psicológicos, físicos, urbanos, rurais, sentimentais, nas fronteiras tênues entre realidade e imaginação.

Era a veemência com que laboravam os fantasmas do drama de possuir de corpo e alma bens só transitórios largados depois lá onde permaneceram só no passado, a servir de medida ao volume das ilusões perdidas. Terras que logo  se desvalorizariam. Agregados, senhor, vizinhos, famílias, habitantes de paragens longínquas. Conflitos, no entanto, que prosseguem pelo caminho dessa gente: Palestina, Macedônia, Coréia, Colômbia, Irlanda, Paquistão, Ucrânia, Afeganistão, Iraque, etc. 

Tudo algo que reclama mudanças de procedimento nas raias quentes do sonhado coração, todavia lições ainda pouco aprendidas, de pequenos a maiorais, nas lutas da liberdade verdadeira...  

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