quarta-feira, 30 de abril de 2014

Naquele primeiro trem

08 de novembro de 1926. Manhã de segunda-feira. Parava na estação de Crato o primeiro trem, trazido pela força dos trilhos e das matas. Era a inauguração da estação da estrada de ferro de Baturité. 

Sobre os ombros de meu avô, minha mãe, criança de cinco anos, a tudo observava no meio da multidão domingueirada, absorta junto dos vagões de passageiros, onde, num deles, se instalava a banda de música que rompia de dobrados bonitos os monótonos assovios da maria-fumaça.

Encantado ante os acordes, com mãos impacientes, meu avô abria espaço entre as pessoas e namorava os feéricos instrumentos de metal. Extasiado, se aproxima, invade o recinto dos músicos e se rende à pompa dos visitantes ilustres. 

Depois, logo, busca conversar com o maestro. Fixo os olhos em um banjo. A todo custo quer dedilhar as cordas do esplendoroso instrumento. Notas nervosas, precisas, rudes, tira das cordas, enquanto lá fora escorrem os discursos, na plataforma da estação. Surge-lhe a caixa de repouso forrada de veludo vermelho em que o banjo raro repousaria, de fabricação estrangeira distante. 

O maestro se admira de ver tamanho interesse. Juntos, entabularam negociações nos assuntos musicais. Compromete-se a mandar pelo vagão das encomendas, meses adiante, idêntico exemplar de banjo recamado de madrepérola.

A festa estender-se-ia com outras vindas de trem, quando, algum tempo depois, meu avô receberia a encomenda prometida. Em dia memorável, lhe chega belo estojo envolto em percalina preta, forrado de veludo escuro, motivo das inúmeras noites animadas que Antônio Monteiro e outros boêmios cratenses, naquelas décadas remotas, promoveriam ao longo dos sítios do sopé da Serra, infindas algazarras de danças e amores, realizados nas luas de latadas felizes. 

O primeiro trem trouxera, por conseguinte, esse equipamento musical que integraria os próximos anos de família até quando meu avô deixasse este mundo, permanecendo a peça rara algum tempo ainda com tio Quinco.

Minha mãe não soube, porém, explicar as razões quando lhe perguntei o fim que levou o banjo. Disse apenas que o tio dera ele de presente a Deodoro Gomes de Matos, dono do antigo Bar Ideal, à rua Santos Dumont (ex-rua Formosa).

Daí, ninguém sabe dizer onde foi parar, e restam guardadas só as lembranças do primeiro trem que viera a Crato durante folguedos especiais, na memória infantil de minha mãe aos ombros do seu pai querido.            

Nós por nós mesmos

De comum, se planeja com empenho a perfeição individual, fruto das mensagens recolhidas nas religiões do ensino dos grandes mestres, dos manuais de auto-motivação que existem em profusão nas bancas de revistas, livrarias e templos. Colhem-se daqui e dali notícias do possível na força da superação dos baixos instintos e começo de uma vida nova, o que convida à realização rumo da sonhada felicidade.

Porém essa vontade constante de transformação de sonhos em realidade esbarra, vezes e vezes, nos limites da personalidade, nos hábitos antigos, arraigados costumes rotineiros, caracteres empedernidos na lei do menor esforço, acomodação e conformismo, modelos frouxos que nos impusemos ao nosso tronco, que dizem nasce torto e morre torto. Uns sonhos impossíveis, portanto, se quer impor. Justificar a persistência nos descasos consigo, outro método inútil, faminto e sem virtude.

Há, no entanto, as fórmulas válidas ao dispor dos que pretendem realizar, independente das sereias tentadoras. 

Erguer-se nos próprios passos e determinar estradas ao deserto agressivo da mediocridade. Criar o incriado, no território íntimo de Si mesmo. Reelaborar o instinto da salvação no peito interno, e fluir outros metais liquefeitos em formas antes inexistentes.

O que distingue os inertes dos realizadores será, por isso, a coragem de ousar. A matéria prima sempre se compara; carnes, sangue, ossos, vida. O que muda, apenas, o eu que comanda o indivíduo. Jamais haverá dois eus iguais entre os seres. Ainda que clonadas, as ovelhas saem sozinhas do ventre que as pare. A natureza-mãe doa constantes suas leis à vaidade dos homens, a deixá-los na doce ilusão de sábios, meros exploradores da ciência, aventureiros da razão.

Conquanto se desejem todos vitoriosos, a queda participa das jornadas diárias desses seres viventes, o que indica valiosa lição de humildade. Ninguém queira exclusividade nos acertos, pois habitando este chão vive o risco da queda. A força desse conceito reserva um aprendizado claro. Sabedores falíveis, a diferença representa a capacidade em refazer os caminhos e começar outra vez a viagem. Da tempestade à bonança, retomar o fio da meada e dar a volta por cima.

Aula das gerações, desistir do que vale a pena demonstra fraqueza. Já que cair é lei da vida, ter forças para se levantar e recomeçar eis a grandeza que simboliza a essência de nós mesmos. Que sejam, pois, garra e persistência em tudo o que se proponha aos motivos de construir a história desta vida.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Exame de rotina

Os filhos cresceram e logo bateram asas para cuidar da sorte, da fama e da riqueza rumo das cidades maiores noutras brenhas menos abandonadas. Acostumados aos matos do sítio, eles dois permaneceram curtindo a saudade madrugadeira e saberes das distantes pela televisão da sala rústica na velha casa vazia. Conforto nunca faltara, o mesmo que não diziam das chuvas. Porém as beiras d’água dos riachos alimentavam com fruta molhada de cacimba e de aragens as tardes do nascente.

Nisso, o tempo correu célere de sempre acontecer.

Lá no aniversário dos oitenta anos do pai, a filharada resolveu marcar encontro na terrinha amiga em que nascera. De todas as procedências, vieram cercados de novas famílias; maridos, mulheres, filhos, namoradas, amigos; um festival de animação na forma da família de novo reunida. 

Numa surpresa, invadiram dos velhos a privacidade. Montaram barracas nos quintais. Armaram redes nos oitões. Lotaram casas de parentes e vizinhos. Rezaram missa. Cantaram, zoadaram bastante, multidões de felicidades. As cajaraneiras do recanto retirado nunca acolheram tanto menino a subir pelos galhos e tirar frutos de vez, na safra de fevereiro.

Baixada a poeira do programa inesquecível, os visitantes ainda de férias resolveram permanecer mais alguns dias. Preocupava-os demorados períodos ausentes, e filho pensa na saúde dos pais, vadios brejeiros de médicos e refratários a ambulatórios, desde nunca imaginar coisa o pior, mania de antigamente quando nem se falava em exame.

Sob qual aspecto, orquestraram jeito bom de levar os dois octogenários à cidade, a passeio e compras, diversões, cinema, visitas e, de quebra, entrar numa clínica e providenciar acompanhamentos mais do que necessários na idade avançada, ainda que nenhum sintoma inspirasse cuidado além das apreensões da vida longa.

Eis, portanto, a fase preparatória do que ocorreria poucos dias depois das festivas comemorações.

Consultas marcadas, ele, o pai, e junto a esposa querida se apresentaram ao clínico, ambos tímidos, desconfiados. Um pé na frente, o outro, atrás. Seguro no braço da companheira, sem ação também desvanecida, olhando de lado, por saber dos motivos da visita àquele canto granfino.

Ciente dos planos, o doutor trabalhava o quanto conseguia no sentido de auscultar os sertanejos, austeridades em pessoa. Pegar pulso, medir pressão, temperatura... E o homem cabreiro de não querer a menor palestra, nem ao menos em respeito à filha sorridente, animada, amiga do médico, ex-colega de escola primária...

Porém a prática haveria de fixar suas bases de procedimentos, rompendo a formalidade. Diante daquilo tudo, o médico indagou com espontaneidade:

- Mas diga o que o senhor sente mesmo, seu Astrogildo? 

Sem pretender levar longe mais meia braça do drama que já embaraçava a todos, extenso e fora de propósito, alto e bom som, o paciente rebateu o facultativo:

- Quer saber de sinceridade, doutor? O que eu sinto muito é fome! Tá chegando a hora do almoço e quero ir pra casa. E estamos conversados – com isso arredondou de vez as cogitações do médico em pedir qualquer exame daquele paciente.

Nota: História ouvida de Henrique Costa. 

sábado, 26 de abril de 2014

Páscoa ou Travessia

Levados ao Egito por José, os israelitas permaneceram na nova pátria o tempo suficiente de formar uma população numerosa, a princípio dotada dos reais privilégios da corte, situação que, com o passar do tempo, se reverteu noutro destino. A sucessão do Faraó e o desaparecimento de José os transformaram em cidadãos de segunda classe, a ponto de serem vistos como estorvo, perseguidos e jogados na escravidão.

Diante do sofrimento judeu, veio Moisés, emissário da libertação movido de sentimento messiânico. Sob ordenamento superior, manteve conversações junto do soberano para conduzir seu povo de volta à Palestina, sem, no entanto, obter maiores chances, vista a importância econômica daquela mão de obra escrava no reinado.

Por causa de pragas cruéis a lhes arrefecerem os ânimos, os egípcios permitiram a saída do povo de Israel. A data desse acontecimento marcante representa o que se conhece por Passach, Páscoa, ou Travessia, momento em que os judeus saíram da sujeição do Egito para a libertação da Terra Prometida. Nesse mesmo dia, o Senhor tirou do Egito os filhos de Israel ordenados em exército, diz o livro do Êxodo (12, 51).

A décima praga corresponderia à perda dos primogênitos, o que se abateu inclusive sobre ao próprio rei, impondo a condição premente de deixar ir embora os judeus, que, liderados por Moisés, ainda perseguidos de perto pelas tropas de Ramsés II, cruzaram as águas do Mar Vermelho e rumaram para o Deserto da Arábia, onde viveriam por mais 40 anos até chegar ao Sinai, onde se instalaram.

Naquela noite, para identificar suas casas, receberam a determinação de matar um cordeiro, ou um cabrito, sem defeito, macho e com um ano de idade, e marcar com seu sangue dois batentes e a porta.

Nas imediações de Jerusalém, essa data veio de ser celebrada também por Jesus, seguindo a mesma tradição, e às vésperas da paixão que viveria, para indicar a salvação à Humanidade, exemplo que significou o seu transe de se libertar da escravidão da carne para a libertação do espírito.

Reviveu Jesus idêntica travessia, para simbolizar os instantes que viveria ao ser imolado pelos romanos e príncipes do Sinédrio, demonstração cabal a todos os humanos da mansuetude do cordeiro face às contingências da Libertação.

Por isso, o gesto se repete ano após ano, para avivar o instante da mudança definitiva naqueles que pretendam cumprir a Profecia da transcendência entre os dois mundos. Numa das margens, o reino temporal, privilégios mundanos, faustos e posses. Na outra, a esperança verdadeira do espírito iluminado pelas luzes de Tempo Novo, forjado na paz das consciências.

Eis a porta que se abre aos corações, no exercício da Verdade imortal.

As possibilidades

Há um ilimitado que fascina através do enorme desejo de superar as distâncias infinitas, as elevações intransponíveis de fronteiras inatingíveis, sonhos dourados dos inalcançáveis contos de fadas... Esse travo de viver acordado as experiências do mais perfeito que disseram morar no alto das cordilheiras geladas, bem lá em cima, nas perdidas agulhas do teto deste mundo.

Sei, sim, que as almas imaginaram herdar a eternidade por prêmio do quanto seria possível existir para sempre pela felicidade eterna dos virtuosos santos. Nem morrer, nem de fazer doer nos outros a própria morte... Sem deixar quaisquer saudades indesejáveis nos que se ama quando chegar no estágio final do percurso vida.


Claro que sei, pois o tempo senhor dos objetos passando na velocidade estúpida dos momentos impacientes grita, todo dia, essa linguagem contundente do desaparecimento e escapa insistente nos programas realistas da televisão em redes nacionais.

Porém quero aqui falar nas possibilidades dos seres que já habitam a morada dos deuses (lá no Sois deuses e não o sabeis, de que falam os evangelhos). Por dentro da gente mesma, nas malhas dos valores imortais, das virtudes que mantém o homem vivo, alegre nas ruas. Eles, que gargalham fácil nos mercados; que têm dedos que se detém nos cabelos da amada; que beijam, abraçam os filhos queridos; chegam apressados nas repartições públicas à busca do pão de todo dia.

Falar na força da criatividade, que descobre as vacinas, os circuitos elétricos, o voo do mais pesado que o ar, as sementes das lendas, o espírito das artes, o cinema, as folhas de zinco que cobrem os estádios de futebol. Do possível das marcas intransponíveis dos gênios aos sons universais das estrelas, ouvidos a milhões de quilômetros, nas coloridas produções cinematográficas. Da necessidade dos estágios jamais interrompidos das galáxias pelos céus do Universo.



Trabalhar, por isso, à luz inextinguível da fagulha que reside o íntimo coração das florestas indevassáveis e receber a energia imbatível da consciência que a tudo preserva com vontade soberana. As possibilidades insuperáveis das humanas fragilidades que, contudo, persistem lutar diante das ondas fenomenais do desconhecido, e revelam, no âmago de Si, o mistério de chegar da lama às estrelas faiscantes dos céus.    

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Montes e Feitosas

Era o início da presença do homem branco nas terras do Novo Mundo. Duas famílias de origem lusitana, instaladas no Sertão dos Inhamuns, adquiriram a posse do território e a confiança dos silvícolas, que atraiam às suas hostes na disputa territorial, Montes e Feitosas. Não tardariam as primeiras escaramuças que abalariam o sul do Ceará na primeira metade do século XVII.

Ali próximo do rio Jucá, os irmãos Lourenço e Francisco Alves Feitosa, provindos de Alagoas por volta de 1707, obtiveram algumas das sesmarias distribuídas pelo Reino, o que expandiriam até as margens do rio Jaguaribe e do Icó, ampliando a pulso o poder original. Antes desses, vindos de Sergipe, haviam chegado os Montes, em 1682, se fixando no Icó sob a liderança do coronel Francisco do Monte Silva, o patriarca da família.


Ambos os troncos familiares, unidos, até combateriam os índios que enfrentassem a presença estrangeira, mas discórdia surgira segundo alguns historiadores em face do casamento de Francisco Feitosa com viúva irmã do coronel Monte. Outros, no entanto, justificam a desunião vista a ambição pelo poder das terras.

Nisso, de 1710 a 1720, propagandas a épocas seguintes, explodiriam os confrontos de sangue, com assassinatos de índios e vaqueiros, combates abertos, emboscadas, saques, destruição gerando os piores descalabros, indicando a pouca valia dos meios administrativos daquele período. 

O agravamento das hostilidades envolveria o próprio ouvidor do Ceará da ocasião, José Mendes Machado, que tomaria o partido da família Feitosa, merecendo daí a alcunha de Tubarão e se incompatibilizando com o capitão-mor da capitania e com a Câmara de Aquiraz. As fraquezas morais daquela autoridade só agravariam o estado das coisas, que, em 1715, chegaram a clímax insustentável diante da invasão do Icó pelas tropas feitosistas sequenciadas que foram pelo mesmo Tubarão. Os Montes, então, realizaram revide em largas proporções ao reduto dos Inhamuns, sem, contudo, levarem de vencida o adversário, visto o equilíbrio entre aquelas forças bélicas.

Apenas por volta de 1725, o capitão-mor Manuel Francês conteria os ânimos dos dois clãs, os obrigando a depor armas sob ameaça de pena de morte e confisco dos bens.

O rescaldo das lutas final da luta revela graves perdas humanas, dizimação de tribos inteiras de nativos, isto com raras punições de responsáveis. Houve também o empobrecimento dos Montes e preservação da riqueza dos Feitosas, num capítulo de tristes das lembranças nos primórdios da civilização nordestina.     

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Chips em humanos

A empresa Applied Digital Solutions, há poucos anos, defendeu na justiça seus direitos sobre o Verichip, um dispositivo que garantia empréstimo da IBM.

A ADS, que pedira empréstimo de US$ 77 milhões à IBM, alegou que a gigante corporação norte-americana usava a situação para controlar subsidiária que detinha propriedade intelectual sobre o Verichip, microprocessador que pode ser implantado sob a pele humana e lido por sensor externo. 

Lançamento recente, o Verichip será usado na segurança e identificação de emergência, dentre outras situações. Autoridades afirmaram que a empresa não poderia vender o produto para aplicações médicas porque ele ainda precisaria ser testado.


A companhia considerou que a IBM quis com isso impedir que a ADS recebesse financiamentos de outras fontes, o que permitiria que honrasse seus pagamentos, segundo consta do processo.

O presidente da ADS, Scott Silverman, afirmou que a companhia pedira reparação de danos: Temos a obrigação de proteger os bens da companhia e nossos acionistas do que consideramos como pirataria corporativa, disse.

Tais mobilizações jurídicas demonstram o quanto avançaram as pesquisas com a tecnologia de controle dos indivíduos nos tempos quando esses ficam sujeitos ao acompanhamento das máquinas quais coisas, contextualização de causar espécie aos autores de ficção que previram o domínio da liberdade coletiva, porém de jeito tímido e distante da realidade presente.

Não se sabe a quem recorrer, nem a quem interessam ditos artefatos, no entanto são mais os países ricos que recorrem a tais instrumentos de domínio, para evitar o assédio de forças das populações marginalizadas e seus modos imprevisíveis de reagir, o que, porém restringirá ao máximo o direito e ir e vir, sob o argumento dos governos de se defender dos agressores potenciais.

Por essas e outras, as pesquisas inovadoras da IBM e das suas subsidiárias parecem ganhar corpo e invadir dimensões do direito fundamental da pessoa humana com esses possíveis chips implantáveis sob a pele, ineditismo de espantar a multidão.

Em consequência, pois, dos avanços virtuais, o futuro ultrapassará as raias da imaginação e penetrará os mistérios mais profundos da imponderabilidade.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Caroço de milho

Morar nos matos às vezes sujeita a reações imprevistas, quanto mais nesse calorão sertanejo de torrar o juízo de roceiros e passarinhos, pleno sol de novembro, na preparação do campo e espera de sonhadas chuvas.

Bom, mas o que se deu se deu com Alarico, pai de família, sete filhos e força nos braços. Caboclo destemido. Tronco largo. Nascido e vivido no fole dos riscos grosseiros do ambiente rude, perigoso. Quase nunca adoecia, máquina feroz de semear, colher e alimentar a população.

A primeira crise veio numa tarde depois de noite inteira na dança com o samba de latada na casa de João Preto, dessas festas do sábado. Desvairou de uma hora a outra, sem pedir licença ou bater cartão.

De indício, o mal pareceu coisa simples, menor. É que ele achou de se imaginar, veja só, no lugar de gente comum, um mero caroço de milho, sintoma grave de quem resolve endoidar varrido e fechar a cancela do brejo da sanidade.

Não viesse na sua direção qualquer galinha ou pato ou pinto que fosse; que bicho aparecesse, ele destampava correndo, desandado, na busca de esconderijo, tremendo, com medo da devoração incontinenti no papo desses animais pequenos. Fugia ligeiro, igual curinga de baralho em noite de lua nova nas mãos de freguês esperto.

Nisso de notar seu agregado tonto, o patrão, homem bom, cuidou de consultar, na cidade, um doutor de cabeça, que pegou a examinar os reflexos tardios do sertanejo antes forte, agora alienado de vez.

- Uhhh! Vai ter de virar interno alguns meses, na casa de saúde – prognosticou reticente o psiquiatra. – Logo há de voltar ao trabalho e cuidar de esquecer essas coisas desandadas.

Depois mais, o tempo passou seguindo estrada feito gente. Alarico pensava pouco, nem sei se pensar pensava no tipo de pensar das outras pessoas. Ficava desconfiado pelos cantos, de cigarro brabo transido nos beiços ressequidos, mordendo desolado o lasca-peito, amofinando pelo bico, dia a dia.

Lá numa dessas horas de fevereiro ou março, quando os perfumes da brisa indicavam marmeleiro florando noutras folhas e os açudes cresciam bonito, o matuto quis saber de falar com o doutor e pedir de volta sua querida liberdade antiga.

- Sim, senhor. Então agora reconhece que virou de novo gente sadia, não é? – indagou o médico do arisco paciente. – Pois diga mesmo isso de verdade, seu moço?

- Duvida não, doutô. Que coisa besta querer eu ser grão de milho. Nada a ver com aquilo tudo lá detrás. Sou homem vivo, bicho grande, e tem mais, quero voltar a casa do sítio.

Feliz da vida, o médico tratou ligeiro de assinar a alta do paciente e despachá-lo com o endereço da fazenda.

Nessa hora, o roceiro se levantou, deu uns passos, saiu de mansinho pela porta do gabinete. Ainda quis segurar o trinco da porta, e devolveu meio corpo à sala, a dizer num devagar apreensivo:

- Sim, doutô. Eu sei bem que não sou mais um caroço de milho. Sei, sim. Mas... o senhor já se lembrou de mandar avisar a notícia pras galinhas lá de casa? – rosto aflito, isso uns olhos de Alarico preocupado clamavam a resposta afirmativa do atônico profissional da medicina.          

Personalidades intrusas

Na casa em frente, a festa prosseguiu pelo romper da barra no horizonte. Claro do dia e os ruídos roucos da música giravam no som falhado de bandas zoadeiras e a voz de cantoras trepidantes pelo ar, na vizinhança contrafeita. Vozes gritadas de homens barulhentos. Saídas de motos. Portões batidos. Furor destemperado.

O clima frívolo e a movimentação deixaram-me a tecer no juízo algumas considerações alusivas à natureza humana.

Em seu livro Nosso lar, Francisco Cândido Xavier (pelo espírito
André Luiz) fala dos canecos vivos, entidades desencarnadas que, em bares e ambientes de bebida, se enlaçam aos espíritos encarnados para os vampirizar.

Aproveitam os eflúvios do álcool através da carne e quais tomadas elétricas grudam naqueles que bebem, os tornado parceiros inconscientes da vontade alheia que sujeita incluir na vida de relações invisíveis.   

Com relação a esse fenômeno, vale distinguir alguns aspectos: As obsessões, denominação que recebem os laços de seres visíveis e invisíveis, se dividem em três categorias, ou estágios. 

obsessão simples, quando a influência mental se restringe a ocorrências fortuitas de pequena monta, rotineiras, causa de menores danos e comuns no dia a dia. 

fascinação, segundo nível de contato, que denota mais gravidade, levando as vítimas a sucumbir às ordens de forças nocivas, as sujeitando ao ridículo em situações públicas, limitadas que sejam na livre autonomia das suas atitudes.

E no terceiro caso, a subjugação, ou possessão propriamente dita, quando as ações se tornam insustentáveis, motivos por vezes delituosos, sujeitando aos vícios mais severos, irreversíveis dependências, dentre elas o alcoolismo, as drogas e as práticas morais destrutivas, desagregadoras, antissociais.

Alcoolizados e drogados, portanto, no afã de encontrar o prazer, expõem a saúde nos modos impróprios, inutilizando reservas positivas, submissos às circunstâncias de viver perniciosas.

Em frase célebre, o autor inglês William Shakespeare afirmou: Há mais mistérios entre o Céu e a Terra do que supõe a vã filosofia.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O judeu errante

Submetido ao juízo do Sinédrio, em seguida Jesus passou pelo crivo de Pôncio Pilatos e foi entregue aos soldados romanos. Tiraram-lhe as vestes, envolveram-no com manto púrpura, açoitaram-no, puseram-lhe sobre a cabeça uma coroa de espinhos e fizeram com que transportasse a cruz da própria execução.

Conta lenda européia do século XVII que o Mestre Divino cumpria o seu itinerário de dor através de vielas, becos e caminhos, diante da multidão ruidosa de palestinos, quando, exausto, tombou sob o peso do madeiro infamante que aos ombros carregava.

Na ocasião, um homem se destacou do populacho, veio próximo dele, aplicou-lhe violenta chicotada e, desdenhoso, vociferou:

- Levanta! Rápido! Vamos logo com isso!

O Justo, erguendo a vista, identificou quem falara tais palavras, olhando-o nos olhos. Nisso sentenciou:

- Vou, mas tu irás caminhar longe tempo esperando por mim, até que eu volte à Terra.

Naquele instante nascia a lenda de Ashaverus, o homem que recusou Deus, presença constante da literatura universal através de autores vários, dentre esses Schiller, Goethe, Chamiso, Shelley, Borges e Eugenio Sue, o qual, na obra O judeu errante, também contribuiria para disseminar o mito pelo restante do mundo.

No Brasil, o autor Machado de Assis escreveu um conto narrando as aventuras do personagem que percorre várias civilizações e épocas, sempre na espera da libertação prevista, submetido às condições de imortalidade do decreto angustiante. Ainda defronte perigo fatal cumpre ileso o destino estabelecido durante ali na Via Dolorosa.  

Dizem tradições que, depois do incidente, Ashaverus continua anônimo de cidade em cidade, onde para nada além de três dias no mesmo lugar; contudo, jamais perde o ânimo de caminhar, pois não morrerá antes do Juízo Final, na segunda vinda de Jesus.

Nesse período, terá retornado a Jerusalém uma vez, para observar as ruínas previstas por Jesus deixadas na segunda dispersão da raça que saíra mundo afora. Desde então, vaga ignorando a origem dos recursos que o alimentam. Caso receba mais do que precisar para viver, ele toma a iniciativa de passar aos necessitados o que ficar.  

Para o escritor José Alarcón, esse anônimo (lendário) acha-se encarnado e simbolizado, segundo algumas interpretações, por todos aqueles povos do mundo que são obrigados a dispersar-se, fugitivos e errantes, como rebanhos acossados pelo fogo, por todas as terras conhecidas, sem pouso certo, sem reino nem país que possam dizer que seja seu.



Eis a lenda do judeu errante, manifestada pelas diferentes culturas humanas.

Os bois mandingueiros

Nos tempos do boi eirado, em Tauá, a Terra do Vaqueiro, confins da região dos Inhamuns, sertão cearense, não havia cercas que dividissem as mangas do gado deixado nas engordas. O poeta tauaense Edson Massilon Mathias fala disso com propriedade. O território de solta das reses preenchia o horizonte aonde alcançassem os olhos, local de esconderijo das manadas livres, selvagens, animais que se entocavam nas quebradas de terreno, abandonados ao eito do garranchal ressequido, feitos feras impossíveis de dominar. Sumiam autóctones das savanas nordestinas, integrados ao habitat rude, frutos da mata semi-árida, a fim de crescer e virar carne de charque nos abates adiante praticados.

Em épocas próprias de colheita da carne, se promovia uma chamada geral aos vaqueiros da redondeza para pegar os bichos nascidos e vividos naquelas matas abertas, bois que nunca conheceram currais e que só mostravam a silhueta agreste no escuro das noites, ariscos, caprichosos. Eram esses os bois mandingueiros, no falar do caboclo; dotados de manha, astutos, agressivos, imprevisíveis, só viriam a pulso custear a vida econômica dos homens cá de fora.

No terreiro das fazendas, se formavam as turmas de vaqueiros afamados, provenientes dos distantes lugares daqueles sertões, vestidos de couro dos pés à cabeça; chapéus de barbicachos coloridos, perneiras, esporas, luvas, peitoral, chicote; experientes, hábeis, zelados pelos senhores das terras e viventes quais jóias raras. Vaqueiros não raro também mandingueiros, rezadores, e que sabiam como poucos correr de noite junto das almas dos companheiros mortos, trazendo nos bornais as figas do outro mundo, afeitos no trato de antigos vaqueiros tombados na luta dos rebanhos afamados.

O boi tinha de vir, custasse o que custasse, vivo ou morto, mas tinha de vir; por vezes sangrado no fragor das corridas, emparelhado com os cavalos possantes. Rolava ao solo diante da força do homem, tempera da honra, no compromisso fiel da anônima batalha. 

Ao vaqueiro se requeria as cicatrizes dos estragos noutras jornadas, credenciais em forma de pele marcada, sinais das refregas, um olho vazado, faces latanhadas, mãos retorcidas, ossos partidos.

Nessa faina, os vaqueiros persistiam semanas a fio. Alguns não mais retornariam; outros se perdiam e ficavam esquecidos mais tempo; extraviam montarias; viravam visagem.

As legendas dos bois eirados, ou mandingueiros, ainda agora permanecem no imaginário dos Inhamuns, quando pessoas se orgulham de registrar os feitos de vaqueiros notáveis de antanho, lembranças do Ciclo do Couro na história da primeira metade do século XX.    

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Thomaz Osterne de Alencar

Dos líderes proeminentes da comunidade caririense na segunda metade do século XX, Thomaz Osterne de Alencar merece destaque na qualidade com que cumpriu papéis de logista, idealizador de projetos revolucionários para a Região e incansável precursor das iniciativas e providências que abraçaria no decorrer da sua existência.

Nascido a 17 de outubro de 1914, no município de Pio IX, Piauí, logo adolescente veio com a família fixar residência em Crato, onde efetivou seus estudos junto à Escola Técnica de Comércio, estabelecimento que formaria grandes vultos da história cearense.

Dedicado às atividades mercantis, com o tempo, Thomaz Osterne demonstraria firme competência também à frente de órgãos comunitários, vindo exercer funções importantes na Diretoria da Associação Comercial do Crato, onde, desde 1963, esteve na Presidência da entidade, até seu falecimento, ocorrido a 13 de outubro de 1979.

Presença constante pela defesa dos ideais caririenses, nunca mediu esforços quando  postulou melhorias e encetou lutas em favor do nosso progresso. Exemplos de tais vitórias significam a idealização e a construção do Açude do Inxu, oficialmente denominado Thomaz Osterne de Alencar, dos maiores do Ceará; aberturas de avenidas, estradas, e promoção de asfaltamentos; duplicação da rodovia Crato – Juazeiro do Norte; o asfalto das estradas de Assaré e Campos Sales; abertura da agência do Banco do Nordeste do Brasil em Crato; a edificação do primeiro conjunto das Casas Populares; ampliação da eletrificação rural aos municípios regionais; acréscimo de limite do crédito bancário; se considerando ainda campanhas em defesa do comércio diante dos entes fiscais arrecadadores.

Espírito vanguardista, permaneceu sempre atento a oportunidades de desenvolvimento, havendo participado com brilho das ações do Lions Club, em Crato, instituição que presidiu durante três mandatos, durantes os quais realizou três convenções distritais. Por dois anos, cumpriria mandato de Presidente da Cooperativa Agrícola do Cariri.

Viajaria pelo Brasil em missões coletivas empresariais, marcando participações em diversos simpósios e congressos. 

Outro destaque da personalidade de Thomaz Osterne de Alencar seriao empenho extremado com que constituiu a família, casado que foi com Da. Maria Dayse de Alencar, mãe dos seus filhos Pedro Ernesto, Maria Elisa, Bárbara, Vicente Carlos, Maria Cecília e Maria Dayse.

O reconhecimento da população de Crato aos serviços prestados pelo ilustre piauiense nas terras do Cariri propiciou que o Legislativo Municipal denominasse de Thomaz Osterne de Alencar a avenida perimetral, das vias principais da cidade.

Por isso e mais razões, nada tão justo do que esta manifestação de apreço, em nome do Instituto Cultural do Cariri, ao valoroso ser humano que ora perfaria cem anos de história rica e benfazeja, obtendo lugar cativo na alma de nossa gente.

Obra pesquisada na elaboração desta matéria: Roteiro biográfico das ruas do Crato, de autoria do jornalista J. Lindemberg de Aquino, 2ª. edição, UFC/Casa  de José de Alencar, Fortaleza, Ceará, 1999 . 

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Acreditar

Tempos sombrios em que por mais se ouça dizer – Paz! há dúvidas viajando pelos ares. Ouve-se contar de sonhos e se acorda de olhos fundos de chorar apreensões... Que tempos sombrios, carrancudos, isolados... E apenas pisar os primeiros passos no campo largo de um deserto de flores vivas. Porém é necessário acreditar de ânimo cheio, durante as noites quais dias de sol intenso. Ver alegria no poder do Criador que chegou conosco até aqui. Saber disso e nunca perder o sentido das estradas rumo aos firmamentos, caminhos de estrelas espalhadas pelo vento das madrugas ainda escuras.


Alimentar felicidades enquanto rolam os bailes que indicam força de novas esperanças. Viver intensamente a festa da existência no ritmo de muitos corações. Sorrir, perto ou longe de arbitrariedades que exijam posições fortes de sobreviver a todo custo nos desafios das horas vagas. Olhar em volta as histórias de criaturas aflitas, no entanto a nutrir convicções de construir por meio de outros valores, bem melhores e positivos.

Quantas vitórias pela vida a gente descobrirá na poeira dos dias... Tantas conquistas obtidas em lugares incertas... Amigos conquistados... Aprendizados trazidos ao sentimento, que jamais largarão da memória de bons resultados.

Aceitar limites quais fronteiras de chagar à justiça do esforço pessoal e coletivo. Somar forças de construir mundo quando os demais exercitam os ideais do amor verdadeiro em plenos pulmões; igualdade, liberdade, fraternidade; o direito ao justo, ao honesto, a revelação do Ser.


Quando palavras ditas mereçam respeito, na voz de cada momento. Fora com os facínoras da dissimulação, maquinação triste dos fracos. Que as ações individuais representem, pois, só gesto de carinho em prol dos irmãos, de hoje em diante. Acreditar, sobretudo na construção da sociedade ideal de partilhar harmonia no silêncio das esperas, pulsar de beleza pura no clamor das estações. Adivinhar atitudes leais na confiança de quem espera melhor sabedoria do próximo, prática das lições aprendidas nas escolas da Luz.

Ainda há juízes em Berlim

Quando ouvi as recentes notícias do decreto de prisão preventiva para os acusados em processo de irregularidades licitatórias na administração municipal de Senador Pompeu, por parte do Tribunal de Justiça do Ceará, logo me lembrei de uma narrativa que cabe aqui contar.

Desenvolvida em forma de versos pelo escritor François Andrieux com o título de O moleiro de Sans-Souci, ela diz que, no ano de 1745, na Prússia, Frederico II desfrutava das benesses de um novo castelo que acabara de construir, quando, da sacada do edifício monumental, analisando a linda paisagem em volta, notou a existência, bem ali nas proximidades, de um moinho que destoava do contexto e enfeava a beleza tão escolhida para o seu desfrute. Nisso, o rei tratou de chamar seus emissários, que buscaram o proprietário da construção oferecendo adquirir o moinho e acabar de vez com o desgosto revelado nos caprichos do monarca. Não contavam, no entanto, com uma pronta recusa do moleiro. 

O governante insistiu com veemência nas poderosas intenções, as quais não lograram quebrar a resistência do modesto vizinho.

Vai lá, vem cá, mesmo diante de veladas ameaças, a compra deixou de acontecer. Sob o peso das pressões, o dono do moinho manteria o propósito, recorrendo, em consequência, aos tribunais, sendo dele a expressão famosade que Ainda há juízes em Berlim!

Apelou às instâncias superiores na Capital do país e ganharia a causa. Manteve o lugar do seu moinho. Falam até que, ainda hoje, podem se vir resquícios daquela modesta edificação exemplo de uma justiça isenta e forte, a detrimento dos desejos de quem ocupava o cargo máximo da Prússia naquela ocasião.

...

Em fases nebulosas das crises de moralidade pública, nada mais benfazejo, pois, do que um Judiciário fiel aos propósitos sobre os quais são firmados os poderes constitucionais de uma República de verdade. Por mais audaciosos e hábeis que sejam os meliantes, eles baixarão a crista perante os rigores da Lei bem aplicada nos momentos certos, servindo assim de balizamento às práticas sociais e políticas durante todo o tempo da História. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Agenda positiva

Sem medo e sem culpa – posições pessoais inevitáveis, encaminham ao sucesso – independente de credos políticos, religiosos, quaisquer que sejam eles, nesse mundo lotado das ocupações mentais, a impor compromissos. Agir de tal modo que a religiosidade dos pontos de vistas sirva para nortear atitudes livres na relação com os mistérios. 

Quando o sujeito se imagina que obteve de Deus e manda ver a autorização de andar na Divina Graça, lá acima, nessa hora, o Bem e o Mal correrão por conta e risco desses mandantes, a querer posições além da imaginação. Ninguém pariu Deus só no interior do pensamento, onde a parte não comportaria o Todo. Ainda que haja leis profundas que regem o assunto, a Liberdade de Deus. A Liberdade é Deus.

Transcendem a força humana os domínios superiores. Ordenar os fenômenos da natureza, espécie de maestro feiticeiro, significa excesso de confiança dos homens nas cabalas e convenções, palavras do encantamento criadas pelos próprios autores a título de comandar os fenômenos. Milhões falam alto frases de poder, sem, no entanto, saber o que dizem, e pecam nessa hora.

Contudo existirá faixa valiosa de exercício da bondade suprema à medida que usufruam os aprendizes da condição de praticantes do bem que exercitam o que ensinam, porquanto os ditames da coerência em tudo convergem. As ações e reações imperam os acontecimentos gerais do Universo. A essência dos valores invisíveis administra a medida exata do quanto existe, longe da vontade limitada dos expertos comerciantes. 

Imaginar um Deus humanoide, mesquinho, interesseiro, que se convence diante da fraqueza dos bajuladores, aliciados nas bancas dos cambistas, confronta o mínimo de bom senso, a querer transformar plano mais elevado em meros joguetes de quintais da fama fácil desse chão carcomido nas contradições de poeira. 

Distante, infinitamente transcendente, dentro, bem dentro da importância de valores exatos, matemáticas da fé e da consciência, ali se viverão experiências inigualáveis, comunhão do Eterno Amor, saborosos postulados da bondade plena, soltos das amarras paroquiais da matéria. A coragem extrema da ânsia de realização do Ser assim revelará na alma da gente o Sol. 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O domador de cavalos

Em fazenda humilde das remotas planícies do Cáucaso, na velha Rússia, exposta aos riscos de uma vida afastada e rude, habitava família de pastores, pai, mãe e quatro filhos, três mulheres e apenas um homem, a lutar quais guerreiros para descobrir formas de sobreviver. Nessa peleja, mantinham rebanhos de ovelhas e cultivavam o solo.

Um dia, chegou à região manada de cavalos selvagens, animais imprevisíveis que surgiam do mundo estranho das florestas e desapareciam do jeito que chegaram, livres e sem dono, soltos pelas vastidões oceânicas, fugindo da aproximação de qualquer ente humano.

Corajoso, no entanto, o filho lançou-se na busca de prender esses bichos bravios, indo conseguir depois de muitos esforços, detendo-os ao cercado existente junto da casa onde moravam.

- Rapaz de sorte o teu filho, ainda na flor da idade e já adquiriu riqueza - comentou vizinho, a observar, na companhia do pai, as atividades do moço no curral a domar o rebanho que espanava impaciente pelos gritos e chicotadas do trabalho bem difícil.

- Isso é o que hoje a gente pode ver - respondeu pausado e cauteloso o pai, que também admirava as iniciativas do filho querendo amansar os cavalos inquietos. – Pode ser, ou não, essa boa sorte dele - completou.

Passadas algumas semanas, quando apareciam os frutos iniciais da custosa tarefa, o jovem se viu arrebatado pela fúria de um dos animais, que lhe jogou ao chão, indo, na queda violenta fraturar com gravidade o turno superior de uma das pernas, prostrando-se ao leito longas semanas.

- Lembro agora o que disseste daquela vez - recordou o vizinho, enquanto visitava o doente e a família abalada pelo acontecimento, acrescentando: - Na verdade, o que poderia ser boa fortuna tornou-se perda para teu filho, meu amigo. Com isso, também sofro contigo!

Sem muitas palavras a dizer, o pai, tristonho, respondeu: - Não é assim que analiso as circunstâncias, não. O que sucedeu pode ser de bom alvitre, todavia.

Entrementes, alguns meses transcorridos e sérios conflitos explodiram na fronteira, com povos em litígio motivando guerra descomunal, à qual foram levados aqueles viventes do campo russo.

O sossego do lugar amargou período brutal. Gastos imensos. Tributos pesados. Os jovens engajaram nas tropas, dentre eles os amigos do domador de cavalos, que persistiu ainda meses inválido, face do acidente, a ponto de só ele de sua geração ficar de fora das escaramuças.

Não tardou e, de novo, se ouviu, entre os dois vizinhos, outras considerações quanto ao jovem: - Ah! Disseram bem tuas palavras de que aquilo tudo traria a sorte do teu filho.



Ensimesmado, olhos acesos e semblante pensativo, o pai permaneceu envolvo no silêncio, sem externar o que lhe dominava o coração, deixando o próprio tempo contar ao amigo da sabedoria infinita do Destino.  

domingo, 13 de abril de 2014

As águas do Castanhão

Quando chove no Cariri, encharcando o solo e reverdecendo a vegetação, se considera o início do abastecimento do maior reservatório cearense, o Açude Castanhão, denominado em decreto do Senado Federal de açude Padre Cícero, aonde escorrem as águas que descem da Chapada do Araripe, dentre outras, bacia do rio Jaguaribe após receber o Salgado, no município de Icó.

Nas quadras de boas precipitações esse aspecto histórico lembra outra relação do Cariri com o mesmo reservatório. É que na área hoje de seu perímetro se verificou a execução de um valoroso caririense, Tristão Gonçalves de Alencar Araripe, herói emérito da Confederação do Equador.

No ano de 1824, a 02 de fevereiro, junto com Pereira Filgueiras, Tristão reabilitava em Fortaleza a junta governativa da qual Filgueiras era o presidente e ele o comandante de armas, que instalada mediante a deposição do presidente Costa Barros.

Emissários haviam sido despachados a outras províncias, na busca de adesões, o que não se concretizaria. A repressão dominava o movimento em Pernambuco, onde ocorreram fuzilamentos, prisões e debandada. Lord Cochrane redera José Félix de Azevedo e Sá, substituto de Tristão Araripe em Fortaleza, quando este viajara até Aracati para combater monarquistas resistentes. Nesse meio tempo, Pereira Filgueiras depusera as armas em Crato, e José Martiniano fora preso no interior pernambucano.

Sem alternativa de prosseguir a luta, Tristão Araripe fugia pelo vale do Jaguaribe, quando, dia 31 de outubro daquele ano de 1824, perseguido pelas tropas adversárias, seria baleado pelas costas no lugar Santa Rosa, agora município de Jaguaribara, vítima de um cerco feroz. Seu corpo, mutilado pela sanha do inimigo, permaneceu alguns dias exposto às intempéries, no mais completo abandono, nessa tórrida região, jogado sobre moitas de jurema e unha de gato, vegetação típica do lugar, para depois ser sepultado numa capela das proximidades.

Ao centenário dessa efeméride, por iniciativa do Instituto Histórico do Ceará, se erigiram monumento de tijolo e cal no lugar da execução do bravo caririense, acrescido este de cruzeiro e placa metálicos, alusivos à data fatídica. 

Sabedores, pois, da inundação da área pelas águas do açude, membros do Instituto Cultural do Cariri, no ano de 2002, formaram caravana indo até o citado local e de lá trouxeram ao Crato a placa e o cruzeiro que compunham a homenagem. As autoridades do município de Jaguaribara, sabedoras da iniciativa, reclamaram a posse das tais relíquias históricas e buscaram-nas de volta dentre breve tempo, comprometidas, no entanto, de construir, sob a permissão do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS, órgão que administra o reservatório, um monumento flutuante na intenção de lembrar o revolucionário. 

Antes da devolução, Manoel Patrício de Aquino, à época o presidente do ICC, providenciaria cópia da placa em tamanho idêntica à original, fundida em duro alumínio, a ser exposta na praça Filemon Teles, defronte ao Parque de Exposições, onde fica a sede do órgão, em Crato. 

sábado, 12 de abril de 2014

Trilha sonora

A música no rádio trouxe alguma lembrança de décadas atrás, Coração de papel (gravação original de Sérgio Reis), que então fazia sucesso. Demorava-se nas paradas, tocando com facilidade nas emissoras do interior.

Há pouco descera a serra, chegava de Jardim. Naquele café de duas portas, em Barbalha, pleno meio-dia, aguardava transporte para Brejo Santo. Nesse ponto paravam os carros que se destinavam às localidades próximas. De toalhas no ombro, pessoas entravam e saíam; homens a mostrar no bolso da camisa a escova de dente; algumas mulheres traziam chapéu de palha preso ao queixo por fitas coloridas. Em torno da velha mesa de madeira rústica, passageiros insones mordiscavam biscoitos, pães, regados com café forte, ou deglutiam refrescos mornos, enquanto do rádio de pilha situado no alto da cristaleira encardida ressoava na sala os acordes da música.

Manhã cedo, e por mais que insistisse, perdera de vista mais outra vez a namorada. Saíra tarde, depois das nove, pegando a estrada de terra que descia as encostas friorentas da Serra do Araripe. O respeito que ela dedicava às tias não concedera que pusesse o rosto lindo tão cedo na calçada, após a festa da noite no colégio. As pessoas, nesses lugares menores, observavam tudo e era sempre sujeito fazer comentários fora de propósito sobre qualquer assunto.  

- O conjunto ontem tocou essa música - pensou, envolto no sentimento que anestesia os corações arrebatados e pouco permite que escute inteiras as letras das canções. Mas lembrou que ouvira os acordes, no meio da bebida quente para desfazer a timidez de conhecer os parentes dela, metido no terno improvisado, bem maior do que seu tamanho. Toparia qualquer parada, contanto que vivesse os momentos inesquecíveis da noite. Dançaram juntos repetidas vezes. Chegou a pensar que impressionara bem, desejo nutrido com carinho há muito.    

Nos olhos, a ardência de quem dormiu pouco sem dar conta do tanto de aquietar a vista. Na porta da rua, olhava transeuntes e automóveis; observava o panorama esquisito da alma flutuando no vazio, sem pouso certo na existência além do emprego no banco, a algumas léguas dali; de patrimônio fixo apenas dezenas de livros que lia com fome, com sede, qual prisioneiro no cais das direções, a flutuar nas ondas do improvável.  

A emoção melancólica dessa época antiga chegou ao presente, no eco distante daquele antigo sucesso popular, agora tocado noutro rádio de pilha. Lá fora, a tarde, o sol dos fins de maio. Dentro do peito qualquer coisa semelhante a saudade, na força do impossível de reviver.

Alguma janela do passado guarda (sabe Deus) o vulto da namorada, de novo a se desfazer na música de sonhos esgarçados ao vento, pelas ruas da cidadezinha, na despedida deles dois. Ninguém imaginava isso vir tão cedo. No entanto, bem assim aconteceria.   

terça-feira, 8 de abril de 2014

Era no dois de julho

Primeiro de julho de 1971. Viajáramos de Crato para Ouro Preto, eu e Tiago Araripe, a fim de conhecer o Festival de Inverno daquele ano, realizado em meio às incertezas políticas do governo Médici. Pela primeira vez ultrapassava o rio São Francisco, porquanto conhecia apenas interior e algumas capitais das bandas de cá.

Duas da tarde e pegamos o ônibus da Pernambucana, itinerário por cima da Serra do Araripe, chegando a Juazeiro da Bahia no dia seguinte ainda com escuro. Daí bem cedo, tomamos outro ônibus, da São Luiz, que nos levaria até Salvador, onde eu iria morar, a partir do mês de agosto próximo, durante sete anos. Pedira remoção no Banco do Brasil, isso influenciado pelos livros de Jorge Amado, canções de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, além das amizades que fizera com grupo de baianos que morara em Crato quando de uma experiência de teatro sob os auspícios da Secretaria de Cultura, nos fins da década anterior.

Por volta das quatro da tarde, instalados no Hotel São José, na Avenida Sete, por indicação de Fani Norões, amiga de minha mãe, nos organizamos e saímos ao primeiro passeio, e qual surpresa nos aguardava naquela noite soteropolitana.

Logo que descemos a escada do prédio, nos deparamos com enorme e feliz multidão mobilizada numa portentosa homenagem a Castro Alves, a transplantar os restos mortais do Poeta desde o Cemitério São João Batista, no bairro de Brotas, ao monumento da Praça Castro Alves, na confluência da Rua Chile com a Avenida Sete, centro de Salvador.

Naquela data, dois de julho, no ano de 1823, se travara, nos cerros do Recôncavo Baiano, o mais ferrenho combate das lutas da Independência, eternizado pelo Vate em célebre poema (Ode a Dois de Julho). 

Jamais avistara tamanho civismo, colégios, guarnições militares, ordens religiosas, representações esportivas, autoridades, outras instituições e população em geral, nas calçadas, jardins, praças, lojas, edifícios. Assistíramos a demonstração inesquecível de reconhecimento público ao gênio literário Antônio Frederico de Castro Alves, nascido a 14 de março de 1847, em Curralinho (hoje Castro Alves, na Bahia), que findou ainda jovem.

Sonho vivo de gente, luzes, bandeiras, cores, instrumentos musicais festivos, fanfarras de bandas marciais em cadência surpreendente, inimaginável; fardamentos, carros alusivos, coreografias, grupos típicos, trajes, danças, ornamentos esfuziantes. Só depois conheceria melhor o espírito reverente daquele povo rico de cultura, raízes exponenciais da nacionalidade, preservador de valores originais, símbolos e cores fortes de sua gente. 

Dormiríamos de alma leve com tanta suntuosidade e bom gosto. 

Poucos dias passados, viajaríamos a Minas e ao Rio, onde encontramos outras oportunidades de conhecer de perto fontes vivas da civilização brasileira sob a qual resistem condições libertárias testificadas na obra imortal do Poeta dos Escravos.

A galinha e o pé de arruda

As duas, dessas vizinhas briguentas, moradoras de bairro simples da periferia, vivendo os dramas, a braços com rotineiras impossibilidades, debulhavam, aqui e ali, os mesmos mistérios de cada dia. As casas, parede e meia, dotadas de quintais quase comuns, tecidos nas cercas baixas, de faxina. 

Nem sempre, no entanto, mantinham-se paz nessa fronteira, porquanto uma delas, mulher mais empertigada, muitíssimo rigorosa nas questões ocasionais, numa volta e noutra pisava o couro da comadre do lado. Vale lembrar, igualmente, imperar solidariedade nos momentos críticos, como ocorre nos universos humildes dessa gente. 

Em certa fase do convívio, em umas semanas de relações aperreadas, elas duas se envolveram num imenso quiproquó, estremecido por conta das malinações de galinha buliçosa, logo de quem! Da comadre menos brava. 

Quando era de botar ovo ou procurar galo, a penosa lá ia inventar de saltar a cerca do quintal, isso quase todo dia, o dia todo. Contanto, nunca faltava motivo forte para as discussões que a partir daí travaram sucessivas.

Mudava de território a galinha, de pronto se escutava do outro lado da cerca imprecações agoniadas do vozeirão da vizinha, dizendo-se prejudicada devido à importunação. À outra, no seu modo pacato, sobrava tirar por menos as ocorrências. Aquietava ouvidos, reações, prendia a ave, a respiração, no enquanto dos ânimos aos poucos se arrefecessem, de novo serenando a tradicional relação.

Numa dessas ocasiões, porém, o debate azedou:

- A senhora veja que grande absurdo! - instigou feroz a prejudicada. - Dessa vez, sua galinha exagerou na dose. Não só pulou a cerca, como veio devorar meu pé de arruda. Também seus bichos nada comem que mereçam – acrescentou exaltada. 

- Mas... Vejo não, comadre, nisso nenhum absurdo, não - rebateu a outra, buscando amenizar o problema.

- Como não? É isso, sim, um verdadeiro absurdo! – determinou a vizinha furiosa.  

- Acho não, comadre. Absurdo, nesse caso, seria seu pé de arruda pular a cerca e vir comer, do lado de cá, minha galinha - ousou dizer a reclamada, querendo restabelecer os revoltados ânimos. 

A vizinha, surpresa com as palavras sensatas da vizinha de paz, só baixou os olhos e ainda deixou vir pequeno sorriso ao canto dos lábios, reconhecendo o argumento da amiga. Dali em diante, elas duas retornaram às boas e cuidaram de deixar por menos as filosofias da vida.

domingo, 6 de abril de 2014

Qualidade rara

Sábios afirmam que a felicidade depende de cada um, que se deve evitar o risco de vincular felicidade a pessoas e coisas, afirmação evangélica de Jesus que orienta não guardar tesouro onde a traça e a ferrugem podem consumir.

No entanto raros conseguem praticar essa tal virtude inteligente das normas do viver bem e reunir os dados consistentes do sucesso. Quase na unanimidade, os seres humanos atrelam sonhos a elementos fugidios, os quais escorregam pelos dedos no decorrer das horas intermitentes.

O que fazer, porém, no sentido de preservar a coragem, ainda que diante das mazelas sociais e crises individuais, exige atitude positiva de emergência.

Por vezes a onda parece maior do que as resistências, a reclamar valores no decorrer dos itinerários individuais, sem contar o espaço vazio e os despreparos da sociedade materialista e frágil, aonde imperam o imediatismo e a lucratividade urgente, pano de fundo e drama existencial diário.

Plantar em solo fértil as tradições da sabedoria milenar, numa prática de salvação pessoal e consolo necessário, regra de ouro da paz interior, chega a grau de compreensão que demanda força de personalidade e objetivos claros de alcançar o infinito.

Por isso, a raridade com que se reveste a obtenção dessa felicidade vem do ser interno de cada pessoa. Ninguém espere vitória sem luta e realização sem esforço. Semelhante a corrida de obstáculos, a existência apresenta séries contínuas de exigências, na aquisição da firmeza de propósitos e sua efetivação definitiva.

De sã consciência, viver é lutar. Controlar os instintos e domar as paixões envolve estrutura mental e espiritual digna dos heróis valentes dos contos de outrora. Nisso e a seu modo, todavia, comparecem aqueles personagens anônimos da raça, heróis do povo, de comum ignorados pela fama, os pais de famílias, trabalhadores constantes da arte de sobreviver, e as mães dedicadas na continuidade das famílias, distantes do universo da riqueza, mas guerreiros honestos do drama cotidiano, santos dos templos da salvação.

Não fosse assim e jamais persistiria o desejo de continuar vida afora na epopeia da justiça, da honestidade e da paz, foco principal das estradas coletivas. 

Em toda individualidade há o anseio de ser feliz, mesmo ciente das limitações. Cabe domar em si a fera da fraqueza e renunciar fragilidades, plantar sementes de amor, apesar dos sacrifícios em que isso importar, sob enlevos de Esperança e Fé.

sábado, 5 de abril de 2014

Diagnóstico precoce

Meios existem. Aonde se virar, ali esperam notícia, reportagens, as falas, os retratos, os filmes, depoimentos, etc. Conquanto impossíveis de comprovação, ou contestação, institutos oficiais despejam estatísticas de resultados fictícios, pagos a peso de ouro. São números, afirmações e competências que convencem cidadãos manietados no isolamento, independente de eles aceitarem, ou duvidarem, pois andam hipnotizados, olhos no passar das telas e vídeos, à procura dos propalados dias melhores que andam escassos. Bom, mas o quadro é esse, da propaganda gato por lebre, fregueses do poder montados na carne seca sucessória, quando sumiram as revoluções heroicas dos tempos passados. Isso no mundo inteiro, pois entra ano sai ano submissos à indústria que desenvolve equipamentos de caça aos patos encolhidos desse chão, eleitores que parecem gostar do papel amarelecido das civilizações que se repetem.

Quem sabe disso, sabe, porquanto tonéis andam cheios de lixo moral industrial repassado a preços módicos. Cidades abarrotadas de idolatria ao deus Carro, em que muitos sorriem felizes no centro das fogueiras lentas que queimam gás rumo das casas, quando rumam aos negócios; rumam às casas; rumam às praias; rumam de volta aos negócios, círculos viciosos de ausência, ruas e rodovias. Enquanto isso, as bolsas oferecem fáceis festas vencidas de estádios inúteis. Se ninguém acha isso, ou não interessa achar, esqueçam o quando custaram em termos de virtudes e valores, mercadorias agora retalhadas no mercado da ganância de poder em substituição aos velhos nomes oferecidos.

Fase esquisita da raça mal dormida, febril de ansiedade na luta da sobrevivência. 

Quero crer haver razões em tudo por tudo, face ao fim de que seremos, um dia lá adiante, criaturas inteligentes e fiéis aos princípios de Paz e Prosperidade. Ainda assim, se reservam atitudes a quem nesse todo universal pretenda chegar, fruto das consciências, celeiros das renovações girando ordem do inevitável.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

(Im)possibilidade

A permanência das coisas 
impermanentes, ligeiras, 
que surgem, se mostram, 
perpassam e se desfazem, 
me toca em doce limitação: 
fazê-las do outro visíveis; 
isso talvez a mim mesmo. 
O que avalio, no entanto; 
as aceito quais turmalinas 
que riscam acesas o trilho 
inconstante dos espaços, 
rumo ao abismo do Nada. 
Busco, então, interpretar 
o tropel ansioso da cena, 
e passo aos olhos cá fora 
a minha angústia de ser 
largo estreito no Infinito. 
Em só única providência, 
construo castelos de forma, 
palavras reunidas, suaves, 
rendado de verde, arbustos, 
santos em prece ajoelhados 
aos pés perfeitos do Eterno, 
ébrios de esperança e amor, 
bibelôs de sonhos e saudade, 
pomos dourados, solitários, 
os monges fiéis e dedicados 
ao mistério do Altíssimo.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A dor e o menestrel

Lemos em algum lugar história triste de um palhaço que perdera a esposa e se achava na condição de comparecer, no mesmo dia, ao picadeiro de um circo e fazer rir a platéia que lotava o espetáculo onde tantas outras apresentações levara a efeito em condições satisfatórias.

No momento em que todos gargalhavam com desempenho magistral nunca antes presenciado pelo distinto público, dentro dele fervilhava a mais pungente amargura e desciam lavas amargas de dor, disfarçadas com maestria pela máscara que cobria o rosto banhado de lágrimas.

Enquanto alegria sem igual naquela hora contagiava os espectadores, no peito do homem ardia crise sem precedentes, propósito de quem conduz vida de quase nada pode exprimir da veraz realidade que impera no ser, por força de produzir emoções nos outros lá de fora.

A situação descrita, mudando o que merece mudar, caberia feita luva na circunstância que se verificou em Crato, quando, no Espaço Navegarte, assistíamos a uma apresentação musical.

Lá no palco, o cantor pernambucano Geraldo Azevedo, voz e violão, que oferecia a numerosa platéia bela música do seu repertório, boa parte de própria autoria. Aplausos efusivos animavam o clima ameno do lugar, evidenciado nos flashs constantes dos fotógrafos a registrar o acontecimento, entremeados de relâmpagos insistentes que clareavam o céu escuro à distância, cenário detrás do palco, para as bandas da Ponta da Serra.

Isso se manteve ao ritmo das letras e cordas afiadas do instrumento bem praticado, nas sombras chuvosas da noite caririense.

Duas ou três canções antes do término da cena, porém, nas falas com que ilustrava os intervalos das canções, o músico comunicou aos presentes que, na véspera daquela data, ocorrera a passagem de sua genitora desta vida para a outra, pondo-se, logo depois, a interpretar uma composição de autoria dela, refletindo na voz o sentimento que se pode imaginar de filho em situação semelhante.

Ao lembrar os detalhes disso, nos vemos, emocionado, a refletir quanto à condição dos artistas e sua proximidade com multidões desconhecidas, vínculos que se estabelecem no decorrer da existência coletiva. Enquanto dentro de si lhes sacodem no peito um coração quantas vezes macerado pelas guantes imprevistas do destino, repassam, igualmente, a imagem de quem habita condomínios eternos da mais pura felicidade.

Missão semelhante, a exemplo do palhaço de que falamos no início, uns dançam, riem, se divertem. Outros padecem, representam, dissimulam. De íntimo transtornado pelos ardores do sofrimento de perder a mãe querida, o músico prosseguiu com a função até o fim, debulhando versos e notas, na batida intensa do expressivo violão solitário, ausente das convenções deste mundo. Isso tudo em nome do amor ao sonho da arte, herói sobranceiro da magna inspiração, porquanto o show haverá sempre de manter o curso ininterrupto ao âmago dos corações em festa.        


            

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Vozes na madrugada

Passara a Segunda Guerra. Enquanto aguardavam terminar a casa que construíam numa colina fronteira ao pátio principal do sítio, próxima da capelinha, meus pais ocuparam alguns meses dependências da casa grande da fazenda, juntos de meus avós paternos. 

Haviam casado em Crato, e logo se deslocaram para Lavras da Mangabeira, onde, no Tatu, fixariam residência durante nove anos. 

O lugar guardava existência própria, simples na precariedade que detinha. Dúzia de casas de taipa habitadas por famílias de agregados. Dois açudes. Canavial. Moagem. Lavouras de subsistência nos incertos períodos chuvosos. Arroz. Feijão. Milho. Fruteiras. Além da fama misteriosa de lugares mal assombrados. 

Minha trisavó, Fideralina Augusto escolhera, na segunda metade do século anterior, estabelecer ali por sede do clã que formara, filhos e genros senhores de  baraço e cutelo na política e nas terras em volta. Construíra engenho a boi, o açude maior, uma casa senhorial e, no contar dos mais antigos, deixara enterrada botija de moedas de ouro, prata e ouropéis preciosos. 

Desde sua morte em 1919, vitimada por febre destruidora espalhada no mundo, vezes tantas apareceu nos sonhos, ou em vulto, causando transtorno fora e dentro dos antigos domínios. Queria a todo custo entregar o legado aos que ficaram, para escapar das chamas do engano e das maldições de alma penada.

Minha mãe buscava não se impressionar com as histórias das aparições da matriarca. De formação católica, nutria outros pensamentos a respeito do assunto. Punha as histórias de alma na caixa de folclore, tradições e lendas sertanejas, coisas fantasiosas da mentes férteis.

O tempo, senhor de tudo, no entanto, desfila dias e noites e modifica até os mais arraigados conceitos.

Naquela hora, ainda acordada no meio de fria madrugada, escutava as rajadas do vento no escuro da telha, quando ouviu de longe o trotar de montarias. Vinham se aproximando. Pela estrada, percorriam o lado da bagaceira do engenho, passavam o terreiro da casa e mergulhariam pelo beco formado entre a casa grande e o engenho, indo desembocar na cabeça da parede do Açude Velho. Ao final, cruzariam a cancela da cerca de vara trançada que batia forte à passagem dos viventes, eco a viajar na mata abaixo do brejo.

O som da pisada dos animais chegava mais perto, realçando o vazio de silêncio e ausência. Quase defronte da casa, vozes se destacavam em conversa animada.

- Hoje seu Amâncio começou a moer foi cedo?! – distinguia nítidas as palavras de um dos cavaleiros.

Até então, nada incomum. No instante, contudo, ela lembrou ser aquele dia de domingo, feriado da semana, em que não se moia, a tornar irreal o estranho comentário, a causar pavor, sem uma razão que lhe justificasse.

Ainda sob o impacto da afirmação descabida, frêmito percorreu seu corpo de cima a baixo sob os lençóis, durante o tropel que marchava, deixando gravado no coração o ferro sombrio do inexplicável, presença constante na época que, desde então, viveria na longa permanência do sítio depois daquilo.