quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Um passarinho longe


Num tempo que sobrevive na memória, persiste a minha infância das tardes quentes de final do ano quando me deitava de bruços sobre o piso de cimento queimado da casa de meu avô, no Tatu. A vista sertaneja tremia nos olhos com o sol causticante a rebrilhar nas pedras da bagaceira. Os viventes do lugar se mantinham reservados no pouso, que ninguém arriscava sair ao relento debaixo daquela explosão luminosa. Até os trabalhadores do eito aguardavam chegar às três horas para voltar ao cabo da enxada e preparar as terras, na esperança incerta de chuvas próximas.

Friozinho gostoso na barriga me grudava ao solo. Na casa, todos dormiam a sesta. Janelas fechadas e a porta da frente, de duas bandas horizontais, abria apenas a metade superior, trazendo de longe o canto de um passarinho na distância das matas. Intensos trinados teimavam falar de mundos ignotos, o que calava no mais íntimo da criatura. E nele viajava no espaço da imaginação solitária de menino.

Mergulhava por dentro dos abismos de mim mesmo, na lembrança das histórias ouvidas no serão das noites anteriores, expedientes coletivos antes de chegar o sono. Eram as visagens daquela casa construída por Dona Fideralina, a bisavó de meu pai e quem primeiro ali habitara e deixara enterrada, em algum ponto ainda hoje intocado, botija de prata e ouro, no que pese haver sido a preocupação constante de alguns adultos da família por um bom tempo.

Meu avô, dormindo de rede no quarto da frente, porta entreaberta, ressonava em tons diversos. Do outro lado, o quarto da cera, sempre de portas e janelas lacradas de pano, era o mistério principal da construção. Nele rasgavam trabalhadores palmas de carnaúba e tudo invadiam de poagem esverdeada, com isso formando os tijolos de cera transportados no lombo de burros e vendidos em Lavras.

Nos fiapos suaves do canto longe do passarinho, pisava as veredas dos sítios em torno, por vezes, trotando nas montarias que cruzavam o beco entre a casa e o engenho, curso da parede do açude velho e da cancela ao término do trajeto que marcava com batidas secas o ritmo monótono do relógio perdido naqueles tempos imaginários.

Enquanto retornava pelo fio do canto do pássaro, na brisa morna da soalheira vespertina, distinguia também o som enjoado de moscas a zumbir no ar, contradizendo o silêncio instigante do trinado remoto. Virava de costas ao chão e observava o teto antigo, linhas de carnaubeira e telhas manchadas de goteira.

Ao fim do corredor, escada e corrimão davam a sótão escuro, de portas trancadas. Logo embaixo, a sala de jantar. Uma mesa imensa de madeira escurecida e bancos laterais rústicos escondiam cães adormecidos, aonde, nas épocas de moagem, comiam as turmas de empregados taciturnos. Em rumo da cozinha espaçosa, no fundo da casa, três potes enchiam a cantareira umedecida de lodo emoldurada de bandejas na parede e copos de alumínio areiados pendurados em tornos de madeira.

Depois, os moradores da casa acordavam meio sonolentos, aos poucos enchendo de ânimo ao rotineiro movimento do resto de tarde. E longe prosseguiam os acordes maviosos do passarinho... Longe... Bem longe.

Os milagres da existência


Independente do credo que se professe, ou deixe de professar, as evidências impõem afirmações as quais a mais meridiana observação rende homenagens, no reino dos acontecimentos da Natureza.

A cada minuto, fatores indiscutíveis isto demonstram, o poder soberano da criação infinita do que alguns acham por bem chamar de Deus, em todo quadrante dos fenômenos espontâneos das circunstâncias. A própria ciência, quando chega aos limites das pesquisas quanto ao princípio original de tudo, baixa a cabeça desconfiada, muito mais por falta de alternativa do que pela fria percepção, e diz que daí em frente existirá o Desconhecido, o outro nome a que resolvem preencher o espaço destinado ao Ser Superior do Universo, e chamar assim, o Ser Desconhecido.

Aonde se queira voltar a atenção, aí residirá o dedo misterioso do Poder. Desde a luz dos olhos, quanta maravilha domina o construto da eternidade. Dirigir a cabeça numa direção, abrir as vistas, colher e decodificar com tão imensa perfeição o domínio daquele lugar, a visão das belezas em torno, quanto dom ao dispor de qualquer criatura, do homem aos animais menos festejados.

Na seqüência, os outros sentidos. A audição, o sabor do som no correr dos ventos, em aventura abrangente a todo lugar e território, propiciando às individualidades o perceber das manifestações invisíveis, pelos ouvidos.

O sabor, na gustação, motivo principal dos alimentos. A nutrição que chega aos organismos necessitados, e por cima traz o prazer do degustar, favores multiplicados, rios de sabores diversos, a persistir a vida entre os seres, em meio aos fatores dominantes nos reinos mineral, vegetal e animal, ao caminhar das estações e das idades.

O tato, o tocar da pele que fala e demonstra continuidade nos objetos e outros elementos circundantes. O olfato, o cheiro das percepções, o perfume, as flores, o verde, a primavera, o estio, o inverno, os frutos, as cores, o frescor das horas e as histórias das eras, na crucial da efervescência e da vida.

Sem maiores esforços, a cada detalhe um milagre existe, na luz do dia, na temperatura, que uns graus a mais ou a menos impediria a probabilidade do aqui deste planeta vagando nos céus sem eixo provável ou peças outras que possam ser substituídas ou desgastadas. As galáxias, os astros, o Sol, a Lua e as Estrelas. Gestos de Ser que assina o quadro sem nada cobrar em troca.

E o pensamento o que dizer dele? A fala. As palavras. As atitudes das pessoas. A força da gravidade. O tempo, autoria de relojoeiro tão correto que nem combustível ou energia utiliza na propagação das espécies através dos planos de todos momentos. O sentimento inigualável das emoções e valores. O Amor, enfim, o Amor, amálgama que solda em peça única a barca da dez mil coisas, vagando ao trilho do firmamento, conduzida no fulgor das evoluções musicais desse Maestro primoroso, que permite o crescimento nas dádivas milagrosas de tantos séculos, exata demonstração de bondade e magnitude.  

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Qualquer palavra


Ninguém, de sã consciência, imaginaria o que quer que fosse que não utilizando das palavras. Elas impõem os motivos e movimentos do pensamento, chegando às raias da dominação deste mundo e de outros que viéssemos a existir. Daí a citação de que No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. João 1:1-2

Das palavras nascem as ações da inteligência, abstração do Ser enquanto animais que pensam. Crescem dentro de si e invadem o silêncio do Universo sorrateiramente. Por vezes afeitos à coerência; doutras, no entanto, meros joguetes da imaginação inconsciente.

Há um Eu em nós que nasceu do silêncio original, segundo Buda, e, nisso, viveremos na carne até achar esta porta principal ao Reino da Eternidade, o Nirvana.

As palavras, ao seu modo, significam a pista dessa revelação individual, da vitória sobre o ego e a total revelação do ser original, que no princípio era o Verbo, que veio habitar entre nós.

Tão simples quanto o silêncio, porém porta da Consciência, o tal principio significa a vitória definitiva na obtenção do valor essencial de tudo durante todo tempo. O que somos é a consequência do que pensamos, no conceito de Buda. A jornada interior da real percepção, eis a razão de estarmos aqui. Nisto, o resumo de todas as doutrinas e dos fundamentos do pensamento humano.

Ao nascerem, as palavras trazem consigo o nexo das existências e sustentam o conceito definitivo das histórias contadas e vividas desde sempre. Um a um, as criaturas humanas evidenciam e evoluem à medida que exercitam o tanto que fazem do Verbo a sua própria consequência naquilo que pensam. Temos e somos, pois, o instrumento da nossa Libertação.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

O sentido da vida


Se a terra gira em torno do sol ou se o sol gira em torno da terra é uma  questão  de  profunda  indiferença.  - Por  outro lado”, ele continua: - Vejo muitas pessoas morrerem porque julgam que a vida não é  digna  de  ser  vivida.  Vejo outros, paradoxalmente,  sendo mortos por ideias ou ilusões que lhes  dão  uma  razão para viver – razões para viver são também excelentes razões para morrer. Concluo, portanto, que o sentido da vida é a mais urgente das questões.
(Albert Camus, in O mito de Sísifo).

Há dias claros como a luz das salas de cirurgia, quando a esperança corre solta por um fio brilhante de bisturi, aos olhos vesgos dos especialistas de armas em punho e sorrisos clínicos encobertos por baixo das máscaras brancas da matemática oficial da vida.

Noutros, o barco emperra areia da margem cinzenta das várzeas sem chuva no sertão, paisagens vazias dos córregos cheios de antes, na flor das alvoradas.

Os amigos em festas circulares chegam de repente e denotam cordialidade. Música das almas. Cheiro bom de terra molhada. O vento do estio nas telhas encharcadas de renovos. Portas fiéis. Nuvens...

Depois disso tudo, toca o telefone e o assunto mistura o que se pretende contar... E deixar de lado o desejo incontido de encaminhar um tema no papel, passar a quem lê o que se transcreve do lado de cá do universo, bem próximo dos maiores extremos.

Sentido impõe condições acima de outros aspectos perdidos na ilusão dos sentidos. Um marco único. Duas extremidades do trilho suave da noite das espécies, que fermentam sede monumental do perfeito, uns céus quase dentro das mãos que escapolem por entre os dedos, contas de vidro corrosivo, convergências toscas do sonho imortal da eterna felicidade.

Ainda que encharcados de euforia, leve sopro de brisa desmistifica a fome gritante de verdades perene nesta fase do tempo. Contudo os pássaros cantam; o verde reverbera; o Sol gira no próprio eixo; a Lua surge metálica nos finais das tardes, no poente; as crianças riem na algazarra mais simples e irreverente; as flores; os mananciais; os tetos manchados de rotos sinais, notas musicais, silêncios longos; momentos da alma que geme de dor, amor, espera.

As pulsações em passos lentos percorrem o espaço; qualquer névoa tinge de fulgor o espelho das memórias adormecidas.

Jamais como antes espectros perfurarão o vazio do sentimento. Novas notícias alimentaram o frêmito do coração e pediram (imploraram) esclarecimentos dos próximos passos a seguir. Sonhos em elaboração nas florestas do mistério. Só isto, pronto.

Um amigo fiel


Só sabe a satisfação proporcionada pela leitura de um bom livro quem teve a oportunidade de experimentá-la, o que, infelizmente, não chega a todas as pessoas. Muitos, apesar de alfabetizados,  desconhecem o valor de um livro bom, pois concluem ser apenas para o gasto rotineiro esse conhecimento das letras.

O livro abre portas para o Infinito, oferecendo em mãos possibilidades jamais imaginadas em termos de aperfeiçoamento de ideias e descobertas dos mistérios da Natureza.

Pela mágica de se recompor o pensamento de quem escreve, o leitor decodifica das palavras impressas instantes que ficariam desaparecidos para sempre. O portal das páginas de um livro franqueia chances inigualáveis de ver o mundo através da ótica de seres humanos que aprimoraram o saber em áreas às quais mergulharam vidas inteiras, partilhando a experiência com os seus semelhantes.

A visão do apreciador dos livros tende a crescer, à medida em que se detém, horas a fio, no gesto da leitura. Isto sem falar na portabilidade do livro, conduzido aos lugares aonde se vá, nos instantes da caminhada pela vida.

Há um livro para cada gosto, e a melhor forma de se apegar aos livros é escolher para ler os que mais se adaptem ao gosto de cada um. A literatura e sua gama de títulos voltam-se a variados gostos, sem discriminar quem quer que seja. Buscando-se, haverá o livro ideal a todo o momento e toda situação.

Além do mais, vale considerar que o livro oferece material próprio a cada ramo das atividades profissionais e ramos de negócios.
Bom, são estas as primeiras considerações quanto ao fator valioso da alfabetização e seus usos múltiplos na descoberta do gosto saboroso pelos livros. 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Aqueles estranhos personagens


Em horas determinadas, vem a sensação esquisita de estar sonhando acordado, e nisso ficar neste senso constante até aprender a viver. São muitas as ideias que disso circulam o vasto mundo em volta. Tais máquinas de pensar e sofrer, muitos apenas aguardam os próximos acenos da balança do Infinito. Mesmo dotados com alguma inteligência, preferem insistir na certeza que de algum lugar virá alguém trazendo a resposta de tudo aquilo que até então guardaram na intenção de lá um dia se apresentar querendo, quem sabe?, também participar mais de perto das obras da Criação. Numa espécie de vontade só parcial, aceitam, no entanto, permanecer assim, e aguardar o momento certo de se fazer presente ao movimento incessante dos astros pelos céus. Eles, que agora vagam sem rumo definitivo. Chegam nas estações e ali encontram o jeito de ficar anônimos, apenas observando os iguais a eles, também dissimulados, aparentando pouco interesse, na prática de pegar outros comboios que virão, e, de novo, sumir nas quebradas da inexistência, desinteressados que sejam nos destinos que virão. 

Milhares, quiçá milhões, vivem de tal jeito abandonados de si próprios, restos de naufrágios às primeiras horas de quando esqueceram tudo a que vieram. Entretanto marcam presença, dalgum modo, nas atividades dos circos de interiores abandonados, onde nunca mostram de todo a verdadeira face que lhes trouxe aqui. Maquinam papeis arrevesados de palhaços, domadores de feras, equilibristas, enquanto, dissimulados, observam o entusiasmo da plateia delirante no transcorrer das cenas. Houvesse, porém, maiores motivos, alimentariam apegos e apetites; fariam, decerto, melhores encenações, e o ânimo dos expectadores far-se-ia em calorosas respostas. Eles persistem, outrossim. Às vezes até se reúnem depois dos espetáculos e fogem aos degraus distantes, ansiosos pelos dias quando falarem de novas civilizações até então desaparecidas. Conversam no escuro das horas mortas sobre os diversos meios que possam reacender-lhes o instinto de habitar este mundo. Padecem e somem, outra vez, nas madrugadas, feitos zumbis em noites de lua cheia, ilusões que se recuperam pouco a pouco de quando, sozinhos, vieram pousar neste chão.

As circunstâncias em movimento


Isso de viajar dentro da gente que chamam de existir busca segurar as frações de tempo que nos percorrem as veias. São átomos intercalados de querer, gotas do Universo, justos, precisos, a cair nas nossas mãos. Olha-se em volta qual seja presenciar um rio aos nossos pés. Conquanto atentos aos mínimos detalhes, no entanto serão águas passadas a cada instante. Transcorrer pessoas, ocasiões, sóis, pensamentos, às vezes ausências e saudades, na música das outras horas que regressam e pisam outro tanto o solo do coração. Um monstro valente esse, a lutar conosco todo momento num passado insistente que adormeceu e regressa afoito vez em quando. Doces lembranças, estocadas ao sabor das horas bem ali adormecidas. Mesmo que tal, de vida própria que domina invariavelmente.

Vejo quais agoras o tanto do que vivi e que se transforma em muitos eus que os adoro de serem pedaços de mim e de tudo o quanto conheço das situações que cercam o ser que sou. Nisto revejo de olhos acesos as paisagens em fragmentos de tudo que há e haverá sempre. Consciências do quanto esteja e continuará sendo diante do Infinito.

São esferas entrelaçadas no azul que nos envolve, a iluminar de sentimentos o ente que somos, moléculas de sabor inatingível e distâncias incomparáveis, pássaros encantados de muitas lendas e nossos desejos. As palavras falam disso, de formas em ação no decorrer dos dias. Quero fugir dessas tais correntes intransponíveis que, de tão poderosas, apenas fazem de todos seus enredos e jornadas inimagináveis. E adormeço nos braços da paciência; acalmo os gestos e padeço dos muitos sonhos que os encontro de tempos e tempos. As noites falam, refazem seus planos e trazem de novo o que alegrou e satisfez naqueles céus a quem amo quais nenhum outro, e que seja eterno o autor das raras circunstâncias.

(Ilustração: O jardim dos prazeres terrenos, de Hieronymus Bosch).

O dia de amanhã


O que virá depois de tudo que o hoje mostra na face do presente a ninguém é dado saber, nas palavras bíblicas, pois o futuro só pertence a Deus. No entanto, quantos gostariam de saber um pouco mais dos dias que virão...

Abrir a porta do amanhã e deglutir, com antecipação, o verde da fruta ainda no pé, pisar os momentos seguintes e planejar com segurança o curso das ações e dos acontecimentos...

Porém não é assim que funciona. Há que trabalhar de outra forma. Estudar sob a luz da experiência que ilumina para trás, enquanto o carro segue para a frente.

Um dos métodos válidos será pôr em prática o conhecimento adquirido e ganhar visão realista na utilização do que a vida toda hora transfere. Os valores servem de base nessa empreitada. Chegam de dentro da necessidade. .

Enquanto a barba do vizinho queimar, a gente põe a nossa de molho.

Alguns conceitos oferecidos pela história guardam relação com isso de ganhar na experiência alheia. Daí o objetivo de estudar História, disciplina classificada de mãe e mestra. Ouvir no tempo o que outros aprenderam na própria pele.

Isso, quando jovem, deve orientar, para ver os que chegaram à idade adulta e souberam o jeito de fazer. Se os jovens examinassem de verdade, inúmeras vezes agiriam de modo diferente na época das facilidades, que bem representa a rica juventude. Nos tempos das vacas magras, o mundo vira padrasto, apresenta pesados tributos a quem esqueceu ou não soube plantar com vistas ao segundo turno da viagem.

Na mocidade, tudo floresce e sorrir. Na terceira idade, segundo a história de muitos, a porca torce o rabo. Braços dos outros, olhos amáveis, educação, gratidão, aposentos, quando comparecem aos gramados, vivam os pais e avós nas mãos abençoadas dos filhos. Caso contrário, tome peia no lombo.

Esperar, sem haver plantado, significa pouca probabilidade, no acontecer do inverno. Saber juntar nas épocas da facilidade impõe sabedoria, exige coerência e princípios, senso de temperança. Contar por certo o que prometeram dependerá dos mais variados fatores. Pensou que não, os bichos entram no jogo e a incerteza sujeita levar à baila o doloroso sofrimento.

Ninguém, portanto, de consciência boa, queira garantir certeza de que o amanhã vem seguro só porque reúne o mínimo necessário de viver e, com isso, os demais respeitarem as previsões. Tal vida, tal morte, fala o povo. Com a medida com que medirdes medir-vos-ão também a voz, fala Jesus.

Assim, nas roças que botarmos, o agora representa apenas rascunho daquilo que colheremos, eis a grande resposta do direito natural. A cada um conforme o seu merecimento.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

A ilusão do açúcar

O conhecimento também deve ser um género de primeira necessidade, senão vejamos através dos argumentos.

Médicos afirmam que a doença vitima, de comum, os organismos debilitados, ficando por conta da subnutrição gama infinita das causas clínicas dos óbitos, no Mundo inteiro. De nada adianta, aos governos, criarem hospitais e desenvolverem pesquisa de medicamentos sem alimentar o povo de modo conveniente.

Observemos, desta maneira, o quanto vale a democracia das oportunidades econômicas de sobrevivência.

Vimos, sob o aspecto da carência, a questão alimentar. Notemos, contudo, outra extremidade, isto é, quando alimento existe, mesmo em quantidade restrita, onde um novo desafio se apresenta: como utilizá-lo? Noutras palavras, como praticar o saber a respeito do que se tem para ingerir? Tudo que dizem  ser alimento pode se engolir sem avaliação?

Vivemos a era do açúcar, nutriente que compõe ampla faixa dos produtos industrializados, desde usuais refrigerantes a bolos, balas, sorvetes, cafés, sucos, bolachas, todos vistos como indispensáveis e consumidos à saturação, livres de qualquer questionamento.

As civilizações antigas não conheceram o açúcar puro, tal o que hoje adotamos. Já se leu a propósito que Jesus-Cristo não chegou a usá-lo, como em nossos dias faz-se rotineiro.

Antes, havia açúcar na forma natural, sem os refinamentos químicos posteriores. A Macrobiótica Zen, tradição milenar do Oriente, recusa as concentrações de sacarose, por considerá-las agente letal de primeira plana, degenerador do organismo, provocador de câncer, além de enfraquecer ossos e causar muitas mazelas físicas e psíquicas, o que a Ciência oficial pouco ou quase nada comenta, deixando-nos à mercê dos grupos empresariais envolvidos no jogo de tais interesses.

A sabedoria popular sentencia que "quem não sabe é como quem não vê". Cultura se destina, entretanto, a clarear estradas, com ênfase a daqueles que pedem luz. Muitas verdades nos chegam por meio da escola: datas, origens, acontecimentos, conseqüências, fórmulas, finalidades, técnicas. Informações que se acumulam nas enciclopédias, em computadores, bibliotecas, museus, deixando-nos, por vezes, tontos de fartura. Mesmo assim, prosseguimos habituados de modo errôneo, desvirtuando as outras gerações, como que premidos pela ignorância.

A propaganda, facção interessada, merece parcela de culpa, pois assume papéis estereotipados, mercenários e utilitaristas (que vivam os lucros e morram os consumidores), visto atingir, sem crítica, grandes populações apenas consideradas composto de mercado.

Dentro desses aspectos, o açúcar refinado (ou branco, como querem alguns) desenvolveu uma faixa de atração pelos seus atributos, criando dependência orgânica, o que dificulta sobremodo a preservação da saúde.               

Mesmo estando aqui para salvar o Espírito, síntese da jornada terrena do Homem, e não o corpo material, concluímos ser de melhor alvitre fazê-lo desde uma constituição livre do envenenamento químico precoce de drogas exóticas, pouco aceitas pela nossa natureza animal.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Relâmpagos na madrugada


Por vezes me pego imaginando o que seriam as palavras sem as emoções que lhes correspondem. O que dizer sem a sensibilidade, os motivos que nascem lá de dentro e querem, a todo custo, achar um meio de abrir as portas de sair pelos momentos, correr mundo, fazer deles algo que os transformem nas saudades que alimentam o dom de existir.

Comigo acontece, nalgumas horas, de despertar de um sonho onde encontrara pessoas que tocaram os sentimentos e, depois, querer regressar ao sono e buscar as razões de deixar de lado aquelas sensações revividas. A bondade da existência vem disso, desse apego aos instantes de paz, alegria, amor, e que nunca desejamos tivessem, de novo, sumido na voragem do tempo, no meio dos cascalhos.

As madrugadas têm quais valores, no silêncio das horas calmas, a trazer de volta outras madrugadas cheias de lembranças acondicionadas no íntimo das memórias. Ali, nas folhas vivas dos dias, somos estes que se navegam nos desertos das ocasiões que cicatrizaram e somem a outros gestos. Espécies de espelhos, sonetos eternos, vagamos cautelosos pelas ondas do mar imenso que todos habitamos e nem sabemos sustentar nas dobras do coração.

Isto são pessoas, lugares, acontecimentos, que mais parecem dominar o que significamos, e assim sobrevivemos a duras penas ao instinto de ser feliz. Quanto a isso, num jogo entre agora e nunca mais, resistimos e sustentamos as luas do Destino, máquinas de sonhar e preservar os sonhos enquanto vida houver.

Daí o contraponto das literaturas, poemas, romances, contos maravilhosos, que perpassam mistérios sem fim que a arte contém nos seus deslumbramentos. A gente quer aquietar o impulso de revisar o firmamento e suas vozes, mas as noites, no entanto, apenas alimentam de sons e letras que gritam o desejo das falas. E terminamos dizendo, pouco a pouco, dessas luzes apressadas que riscam a nossa consciência quase adormecida em seus traçados no céu.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Acerto de contas


Logo cedo, de espingarda em punho, o caboclo entrou na mata à busca da mistura do dia para as refeições da família. Andou muito e nada achou que atendesse o objetivo. De mãos abanando, desanimado, retornava ao casebre, quando avistou bela cabra a lhe cruzar o caminho. Sabia ser de um dos vizinhos, seu compadre, dono de muito bicho, que os vinha aumentando com facilidade. Coçou a cabeça, mediu as consequências e viu justiça no ato que planejava em nome dos filhos que precisavam urgentemente sobreviver.

Auscultou as imediações, se viu distante, solitário: a ocasião faz o ladrão, o povo diz, enquanto o isolamento propiciou a impunidade. Armou o gatilho e derrubou a marrã de criação. Arrastou-a para o mato; tirou o couro; partiu os ossos e a carne; desfez as possíveis pistas. Quando chegou em casa, vinha consigo, às costas suadas, o alimento de duas semanas, ou mais.

Dias transcorreram sem ser descoberto. O caçador parecia, no entanto, pouco confortável dentro dele próprio, dado o ato que praticara.  Vivia sério, sem graça, pelos cantos; de honesto, acordava no meio da noite empapado de suor frio, amargando pesadelos. A coisa tendia ao agravamento. Perdera-se sob as tenazes do remorso; sumira o patrimônio das velhas alegrias de viver.

De alma presa, bela manhã, resolveu se confessar. Procurou o vigário da freguesia e contou em todos os detalhes a história do delito de haver morto a cabra do compadre. Atencioso, o sacerdote ouviu a história, refletiu durante alguns minutos e disse:

- O senhor agiu de uma forma vergonhosa. Fez o que nunca deveria ter feito, querendo se beneficiar com aquilo. Desse jeito, para limpar o erro que cometeu, irá procurar seu vizinho e esclarecer o assunto, dizendo a ele que pagará o animal morto quando possuir recurso.

- Mas, padre, trabalhando desse modo, vou passar por desonesto - explicou contrariado o sertanejo. - Isso fica muito ruim para quem criou fama de homem sério como eu sou no meu lugar. Deve haver outra maneira de resolver – acrescentou o matuto.

- Meu filho, não vejo nada mais simples do que pagar a penitência – avisou o sacerdote. - Pois não cuidando agora, quando chegar o Dia do Juízo, lá vão comparecer, na presença dos santos, o senhor, seu compadre e a cabra que matou, o que ficará ainda mais constrangedor.

Nesse momento, ecoou no interior da igreja sonora gargalhada do caboclo, que em seguida foi dizendo:

- Ah, padre, agora compreendi suas palavras e o que devo fazer. Visto o que falou, reverendo, quando a cabra reaparecer inteirinha, viva, no Juízo Final, nessa hora, então, eu pego ela e devolvo ao dono, meu vizinho, ficando tudo resolvido sem maiores prejuízos. - E nisso se retirou cheio de felicidade pela solução do seu drama de consciência.

 

Obs.: História que ouvi de Benvindo Melo. 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Olhos de ver à noite


Qual quem apenas ver, não importa se de perto ou mais longe. Ver, apenas. Por isso, diante de tudo, afinal, eis que tocamos adiante o crivo dos que seguem, livres, pois, das limitações do passado. Falam tanto em segredos quando somos o maior deles. Aonde buscá-los aí estarão, conquanto lhes acompanhamos os passos em nós mesmos, andarilhos do deserto. Mesmo assim o andar de tudo todo tempo, nuvens a céu aberto ao sol do meio dia. Nisto a multidão segue nem sabe o quê, diante das horas pelos abismos da ausência que lhe constrange. Nesse afã de encontrar respostas a perguntas vagas o tempo voa na face do mistério de vidas e vidas. Há um sentimento de insatisfação, isto sei. A fome de construir o que quer que seja, esquecem do que aqui vêm, vagos aventureiros do Destino. Tais chamas ao vento da tarde, nutrem de ilusão a casca do pensamento, enquanto resolvem o sentido de perder a solidão. Nisso, fogem perante a vida e somem às portas do Infinito. Cáusticos senhores da humana perdição, sucumbem nas frestas de luz que de tudo recuperam. Devorados, pois, pelos laços do enigma que o trazem consigo, depois dos séculos lançam ao mar o senso da saudade e dormem tranquilos. Transcritas as normas de leis imaginárias, crescem nos próprios antares, criaturas divinas que padecem na aventura de descobrir de quantos sonhos far-se-ão as luzes do negro véu das noites sucessivas. Portanto de que nos basta contar as lendas que preenchem o desejo de desvendar o motivo da andarmos perdidos nas valas de quantas luas a cruzar os céus das madrugadas no instinto da felicidade. Isto, fragmentos de revelações guardadas no coração, transcrevam nas estradas sombrias o sabor esplendoroso das manhãs que nos aguardam de braços abertos logo cedo.

As tantas linguagens


Os tempos trazem isso, as diversas formas de usar meios de transmitir pensamentos e sentimentos. Outro dia, li nalgum lugar que existem bibliotecas orientais de que nada mais de 20% do acervo veio de ser traduzido. São milhares de livros acondicionados em elevadas prateleiras, entregues às intempéries, às traças, ao desgaste. Já as tradições das tantas épocas recebem tratamento das culturas e são trazidas de volta, no entanto ao modo de que as interpreta. Os desenhos, as pinturas, esculturas, construções; os monumentos, peças teatrais, músicas, romances, contos, lendas, merecem, também, formas distintas de seguirem pelo tempo e viajam ao longo da história.

No decorrer da evolução tecnológica, graças aos instrumentos que se aperfeiçoam cada dia através da imprensa, das artes cinematográficas e outros recursos, de novo saem pelo mundo o que fizeram no passado as gerações. Hoje, mais do que antes, os artistas vêm até nós com imensa facilidade. Transcorremos, a bem dizer, por todas as fases da cultura humana de dentro de nossas casas, por meios de fácil acesso. Desse modo, a expressão artística obtém foro de livre trânsito, a oferecer não só as produções tradicionais, mas, e inclusive, o que nasce da criação dos mais recentes autores, dentro do mínimo intervalo entre a elaboração e o acesso dos que as desejem conhecer.

À medida do interesse, podemos usufruir de obras inteiras dos autores de qualquer país sem largos esforços, isto tanto na música, no cinema, nas artes plásticas, literatura, pelo poder mágico adquirido graças ao empenho da ciência e da indústria em seu manuseio. Vive-se época áurea da criatividade em todos os níveis da criação artística. Com isto somam-se as escolas, os diversos estilos e técnicas, dotando a inteligência e o poder de inovação da plenitude de conquistar o refinamento de consciência a lhe permitir distender ao máximo as chances de propagação da criatividade e comunhão da beleza entre todos os povos.  Sob tais condições, vemo-nos dotados de ampla oportunidade na propagação dos valores nobres que sempre nortearam as artes em favor da evolução, aspiração dos ideais e do sonho estético dos milênios.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Dias de hoje


Mediante os desafios deste tempo, existem as mil alternativas de sobreviver, que a isso indicam forças poderosas e vivas dentro das pessoas. O instinto de resistir favorece a continuar independente dos limites imaginários que gritam na escuridão. Claro que, diante do crescimento das populações, o mundo inteiro apresenta problemas de proporções jamais vistas. Contudo desistir nunca mais.

Os humanos pertencem, pois, à Natureza mãe. Formam em si o todo inevitável dos labirintos de um ser universal e dispõem do quanto necessário a responder aos enigmas, abrir na imensidão infinita até então desconhecida e trabalhar o tempo no espaço, e viver de sonhos de real felicidade. As leis estão às mãos, no fluir das gerações, enquanto valores pedem coerência de princípios e motivo das atitudes.

Há uma linha divisória intransponível entre o errado e o certo, isto além da pura opinião das maiorias. Artistas, profetas, filósofos, místicos, trabalham à busca da solução, já conscientes das leis morais que regem o processo das existências. De nada significa o confronto das experiências individuais voltadas ao erro, porquanto as normas do certo estão bem divulgadas ao vento.

Entre vícios e virtudes imperam as providências dos homens. Tantos fracassaram e deverão restituir o que levaram sem ter o direito de fazê-lo. A ninguém é dado justificar os erros em nome da ignorância, vez que haverão de restituir o que não lhe pertence fazer. Enquanto que existe uma Força Maior que a tudo determina desde o dia criou o que contém no Universo. A todos, à medida do que mereçam. Ordem plena, luz das criaturas em tudo. Isso tranquiliza, ainda que o caos mostre seus dentes. Há uma verdade maior que persistirá. Daí plantar e colher sob os padrões da Lei, sem medo, sem culpa, leves asas de pássaros canoros.

Agora e para sempre, a expansão da coerência na Criação. Assim, almas de olhos fixos na paz transformarão o mundo em pomar dos mais doces dos paraísos.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Isso de conversar consigo


Insistentemente, qual quem conversa com um estranho, aguardo sempre novos momentos de ter de dizer aquilo que melhor houvesse e ele nem de longe levará em conta. Para, analisa todos os detalhes em volta e resiste a qualquer argumentação que ouça. Semelhante alguém totalmente desconhecido de si, observa o quanto existe acontecendo tanto dentro quanto do lado de fora da gente e continuar a buscar o que desconheço por completo, nem ele revela. Às vezes me pergunta de tópicos inexplicáveis, face ao espaço estreito a que me posiciona em suas ações policialescas. Ainda assim persiste na luta de examinar as sobras de terreno aos meus pés, conquanto esteja firme no seu propósito de dominar inteiramente o pátio em volta. A mim, estou longe da cogitação de lhe entregar o que me restou de tudo aquilo que antes de ele vir só a mim pertencia.

Fala em tom autoritário do que pretende em um futuro próximo, no entanto de sua própria iniciativa, pois não desejo abrir mão do universo que herdara nas origens de quando me conheci de gente. Ele ri na minha cara, meio zombeteiro, meio indiferente aos meus propósitos, acho que deve interpretar descabidos, pois. Porém mantenho a certeza de conduzir meus passos nesse campo exíguo que agora me oferece, numa espécie de prática ditatorial desconexa.

Fica, desse jeito, definido que terei longo percurso pela frente, diante das imposições do intruso que, no entanto, sei ser minha parte em determinação de longa data, da época de haver chegado a essa ilha onde ora vivemos os dois, seres indiferentes e absolutos de existir no feixe rígido desses dois em um único ser à procura de, lá um dia, preencher o invólucro que nos sustém apáticos perante o destino um do outro. Quero crer, por minha vez, já que estou nesse procedimento quase de sacrifício, que haverá, a qualquer instante, um movimento sagrado, assustador, que desfará a trama entre eles e saberemos o motivo da tanta expectativa de, afinal, sermos um só.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O tempo e o Infinito


Nesta região sul do Ceará, denominada Cariri, existe uma formação montanhosa característica, a Chapada do Araripe. Do lado Poente dessa chapada, logo nas proximidades da encosta, são encontrados longos veios calcários que oferecem substanciais e nítidos registros pré-históricos do Período Cretáceo, último período da Era Mesozoica, de aproximadamente 130 milhões de anos, que, segundo estudos, seriam originários da época quando surgiram as flores na formação da vida nesta Terra. E na cidade de Santana do Cariri, localizada nesse sítio, funciona um Museu de Fósseis de rico acervo, pertencente à Universidade Regional do Cariri, dotado de peças fossilizadas de vegetais e animais daquele período geológico, aberto à visitação, considerado o terceiro melhor equipamento em nosso País.

Bom, tudo isso eu disse na intenção de justificar um sonho que tive recentemente. Via adiante longo itinerário pelo qual avançara no tempo, algo em torno de dois milhões de anos depois de agora. Fora longe, bem longe. Recordava de poucos detalhes daquele tempo visionário; observava, no entanto, a cor azul com a de maior intensidade qual característica do lugar lá onde me achava então. Mas algo chamou minha atenção, a querer recordar o que vivera aqui no passado das eras, em mundo distante, remoto, ausente. E senti saudade deste lugar e de onde eu hoje sou.

Quis imaginar qual a possibilidade do regresso aos meus inícios e sentir de novo o quanto das emoções atuais. Nisso mergulhava no trilho de onde viera, espécie de linha tênue a se projetar no vácuo do Infinito, na intenção de regressar. Num impulso voluntário, temeroso, avançava pela trilha e, depois de reduzir tudo a um único ponto minúsculo, simplesmente o via sumir em um nada absoluto, sem que nem contivesse na memória o que quer que fosse deste tempo em que ora estou. Isso em hipotéticos dois milhões de anos do sonho.

Avaliemos, pois, o quanto possui de poder a força da imaginação, que propicia a tantos o recurso de mobilizar o instante do presente aos pousos remotos e inalcançáveis, condão do pensamento e do sentimento, num dispor das criaturas humanas nessas maravilhas da Criação, e ver o tempo se diluir no Infinito e sumirmos juntos.

(Ilustração: Fóssil do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri).

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Os sabiás da serra


Pelos painéis de pensamentos, vez por outra me vejo a percorrer os submundos de outras histórias nem sempre tranquilas, algumas que machucam e trazem saudades, ou situações recentes que sobrecarregam e preocupam, etc. Nessas ocasiões, quando menos espero me vejo ouvindo as aves da mata; eles, os sabiás, nesta época, se destacam e insistem no seu trinado primoroso. Quais se chamando a novas compreensões, longe que possam ser na dimensão onde habito, revivem na gente as lembranças que fazem bem e que alimentam a alegria. Nisso, desperto, acalmo o juízo e ando nas percepções que vêm à tona e que delas por vezes esqueço. Sinto, então, mais desperto e na presença da Natureza, ouvindo vozes que acompanham meus passos lá por dentro da consciência.

Nalguns momentos desses em que a gente parece fora das manifestações que contam os segredos da existência, num sentimento de indiferença, talvez, os sentidos reclamam a si a função de testemunhar a beleza, as cores, os acordes, as luzes em volta. Não fosse assim, tornar-nos-íamos meras substâncias animadas em movimento no frio das horas. Dependentes que muitos possam ser de instrumentos, hábitos, manias, rotinas, lhes persegue indiferença agressiva que os torna visagens de si mesmos, que vagam sonâmbulas nesta civilização arrevesada.

Ou por outra, quais joguetes de forças ignoradas que padecem de uma fome crônica e nem sabem ainda de quê. Com isto, sob a lei desses mistérios, somos convidados a desvendar as razões de estar aqui, encontrar a causa do quanto há, enquanto viventes sejamos. Senhores da existência, porém aprendizes da sua finalidade, as vozes do tempo lhes conta sabores da música, do vento, dos perfumes e das emoções... (E saber que as nuvens de amanhã nunca serão iguais às de hoje). Tais lindas melodias, hão de permanecer em minha memória, guardadas com carinho desde a primeira vez que as ouvi, e também pretendo jamais esquecer o canto mavioso dos pássaros da serra, nesses meus instantes vivos nas maravilhas deste lugar.


domingo, 11 de fevereiro de 2024

Os abismos da memória


Desde as lombadas dos livros, passando pelas lembranças esparsas que dominam as horas, até chegar ao chão de cimento queimado da casa de meus avós, são viagens profundas a mim mesmo através de jornadas incomparáveis. Qual inextinguível eco de todo instante, vivo contido nas encostas dessas fronteiras do eu que sou e do eu que sente, e desconheço por completo o outro lado disso. Muralhas infindáveis se veem largadas na imensidão. Vez em quando me detenho a sobreviver face às tantas favas contadas que já conheço de tempos anteriores, gravadas em algum lugar de mim feitas cicatrizes. E nisso, nessa trilha persistente, transcorro do passado vivo que sou eu ao futuro do que serei.

Junto farelos de tudo o que vou achando pelos caminhos. Fisionomias. Falas. Emoções. Palavras soltas. Cores. Histórias lidas, ouvidas. Objetos. Muito disso na firme disposição de transcender as fábulas nas folhas das estações que chegam e vão a qualquer momento. Essa aflição de mim para comigo que significa existir. Reunir fagulhas de tempo, sobras de espaço, movimento, tradições, que nem de longe as contenho nas dobras das recordações e logo adiante insistem, apressadas, desaparecem a fim de reaparecer ali adiante.

Frações incontáveis das nuvens que chegam aos ouvidos na firme intenção de sustentar a essência de alguém que sei ser eu. Pesam, reviram, repousam, contudo qual falassem de outro que não esse que lhes esteja a prestar atenção, numa espécie de sonho quiçá em fase primitiva, e se escondem debaixo do silêncio.

São esses vácuos intermináveis de compreensão o que faz permanecer, quando somem os detalhes, o que vem e vai do que sou, pedaços perenes. Sei que restarão intactos nalgum ser, apesar da fragilidade da percepção do que imagino que fosse eu.

Ele é real


Aqui em frente dessa geringonça modernosa que acende apaga na ponta dos dedos, me pego falando sozinho, circunstância no mínimo preocupante; e me escuto a dizer: - Por isso, acredito em Deus.

- Por isso o quê? – devolvo a pergunta.

- Por isso, por essas coisas acontecendo nas latas de lixo dos mercados afora, nas ruas, nos guetos, nas praças, nos expedientes oficiais. Gente matando gente para roubar coisas inúteis, versão típica de baladas adolescentes de grupos tão cedo desiludidos, na flor da juventude, período de sonhos e frustrações precoces.

Jovens delinquentes assassinando casais, viúvas, aposentados, a troco de migalhas, na febre convulsiva de responder o quanto antes testes de insanidade, para vencer os vestibulares da miséria humana.

Acreditar em Deus, para não mais acreditar em deuses de barro, de mata-borrões, de vidros enfumaçados, pó, poeira, grotões. Acreditar em Deus, a fim de prosseguir na peleja natural de viver em meio a histéricos gritos das rasga-mortalhas em noites escuras. Acreditar em Deus, porquanto os seus substitutos viraram esteiras de gelatina visguentas das vãs promessas interesseiras, cantilenas de lideranças fáceis, demagógicas, purulentas.

Só quem não quiser saber não saberá, porém as razões dos crimes vêm da pouca educação, desesperança curtida no parto de seres secundários em mundos estúpidos. Egoísmos de grupos, ilusões há séculos acumuladas em forma de instituições carcomidas de dogmas particulares, nas gretas do coração das pessoas. Sombrias ilusões dominantes nos versos pragmáticos dos ditadores das castas.

Acreditar em Deus, porque sabe lá por quanto tempo ainda sonharão os tolos e dormirão as bestas nos currais eletrificados, xadrezes imenso de peças fantasmagóricas fratricidas.

Acreditar no impossível das virtudes santas, nos estreitos de veias entumecidas, marés de “flash-backs” das velhas notícias horrorosas... Acreditar em si, Deus budista, de todas as religiões do Bem, de presença constante no teto das almas agoniadas... Acreditar, porque acreditar contém leves passos de longas caminhadas em volta dos dias...

E se pegar assim, falando palavras soltas de versos indignados, vistas turvas de ouvir cantos vitoriosos de marchas felizes, nas tardes calorentas dos rios estreitos que não pararam de descer os cadáveres de gentes injustiçadas e acalentam sorrisos reanimados nas horas seguintes.

Acreditar no Deus dos Exércitos, Senhor dos Senhores, Pai dos Seres e Criador do Tudo e do Nada. Deus, só Ele, que poderá responder às questões sapientes dos escravos em porões doloridos, no deserto das nuvens infinitas.

Crer, bem aqui no âmago da alma, eixo descomunal da ordem, quando o  princípio envolver estradas e invadir templos, em meio a dores e gemidos das gerações assustadas.

Acreditar, crer, ter certeza... Deus, a luz que nos resta na face dos ventos em fogo, luzes e as multidões... Deus.

(Ilustração: O sétimo selo, de Ingmar Bergman).

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Aqueles dias nublados


A parecença com o momento de agora fica por conta da dominação que sacode a área externa do mundo convulso em suas práticas de guerra. Naquela fase, em 1966, a bola da vez prenunciava escalada vietnamita de largas proporções, o que se verificou nos princípios da década de 70. O Brasil vivia o desânimo libertário, pois perdia espaço, nas ruas, praças, escolas, o ímpeto de transformação democrática, a sumir nos calabouços e na clandestinidade.

Em Crato, achávamo-nos à frente do Grémio Farias Brito, do Colégio Diocesano. Encenávamos a peça Um chalé à beira da estrada, sob a direção de Alzir Oliveira, nosso professor de História e amigo dos alunos. Declamávamos poemas modernos em pontos diversos da cidade, através do Jogral Pasárgada, formado de sete componentes do colégio: Zadir, Pedro Antônio, Gilva, Eros Volúsia, Clenilson, Bebeto e eu.

Resolvemos, então, publicar um jornal mural, O Bacamarte, depois ampliado em um órgão mimeografado (à tinta), o Nossa Opinião, do qual chegaríamos a tirar até 100 cópias e ficou só nos dois primeiros números, abafado logo no seu nascedouro pelas ameaças daquele trágico período político.

Nesse mandato, estivemos, ao lado de Aglézio de Brito, presidente da União dos Estudantes do Crato, e de José Terto, presidente do Grêmio do Colégio Estadual, em um congresso do Centro dos Estudantes Secundaristas do Ceará, em Fortaleza, realizado sob fortes conotações militares repressivas.

Espírito de contestação impunha atitudes rebeldes. À noite, após reuniões de acalorados debates e transmissão de informações desencontradas, saíamos, nas madrugadas, a pichar as paredes das ruas centrais com dizeres relativos ao momento de expectativa, fogo consumidor daquele turno de existência. 

É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. É um tempo de guerra, é um tempo sem sol. Sem sol, sem sol, tem dó. Sem sol, sem sol, tem dó, eram alguns dos versos que cantávamos, em segundo plano, característica das apresentações do Jogral, enquanto Pedro Antônio, à frente, declamava em altos brados: - Só quem não sabe das coisas é um homem capaz de rir! – seguido de outras palavras da canção Tempo de guerra, de Edu Lobo.

Esses são alguns quadros da época em que partilhamos das experiências culturais de um Crato fervilhante de jovens promessas e movimentações apreensivas, lembranças que retornaram esta semana, ao rever José Esmeraldo Gonçalves, velho amigo desse tempo, quando juntos elaboramos o Nossa Opinião. Ele que veio ao Cariri na ocasião do aniversário de 90 anos de sua genitora, dona Maria La-Salette Esmeraldo. Mora no Rio de Janeiro, onde trabalha na revista Caras. Dispõe de raros intervalos semelhantes a este de voltar à Região; o promete, no entanto, repetir, noutras oportunidades. (Texto de 2003). 

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

A certeza de um sonho


Isso que vem lá de bem longe no tempo, dos inícios de tudo, de quando as casas existiam tão só em cavernas úmidas e cruas. Mesmo assim nunca ninguém imaginou deixar de acreditar no sonho dos primórdios, de chegar uma fase viver outra história. Nem que fossem lamentos das tantas ladainhas, ainda que tal sustentasse as bases da busca, que alcançassem as possíveis bases aonde eles desceriam. Nessa procura constante, nalgumas legendas antigas, que houvessem de regressar de onde foram trazidos há milênios.

A epopeia tem sido desse jeito, e sustentar as bases da espera até saber que se aproximam de uma das distâncias do Infinito. Porquanto isto seja o que os mantém vivos durante séculos sem fim, ouvem cantigas em volta das fogueiras nas noites insones, litanias religiosas e gravações que tocam no rádio. Eis o tema da sede insistente que sustém a raça inteira, que continua à procura da sorte imaginável.

Impossível, porém, fossem quaisquer possibilidades de fuga, pois existem muralhas intransponíveis no antes e no depois. Emparedados que o somos nessa jornada insólita, voamos pelos ares afora. Alguns saem sozinhos perdidos pelas florestas escuras. Outros, pelos desertos ferventes, ou nos oceanos sem limite, horizontes monumentais. Esbarram sempre no agora, nas formas do espaço interminável. Com isto, contam aos demais mil tradições que sumiram das suas mentes ansiosas de alguns poucos. Olhares perpassam os céus feitos gigantescos rastos de luz. Eles catam os primeiros sinais da hora aprazada nas escrituras e nos mapas...

Destarte, todas as funções e os patrimônios preservam o desejo desse reencontro febril que alimenta as civilizações. Notícias nascem dos córregos, das bocas ressequidas e dos profetas, nas lojas e nos mercados financeiros; que falam da vez em que descerão do firmamento os veículos da tradição que nos envolvam todos e dominem o coro dos contentes em algum lugar de um mistério adormecido.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Essas máquinas que são assim


Elas chegaram bem devagar, a dizer que nem existiam, meras abstrações que o fossem, ilusões dos sentidos. Cercaram em volta. Olhavam qual quem nada quisesse. Observavam de longe. Daí, foram tomando chegada, espaço a espaço, forma a forma, horas e horas, até somar no vácuo o espectro de si próprias, misto de coisas e agitação. Desapareciam madrugadas inteiras. No entanto, logo cedo insistiam na reaproximação. Fixavam olhos obtusos no flanco indefeso das criaturas inertes. Esperaram lentamente diante das ausências delas presas aos afazeres domésticos. Quando iam à cidade vestidas a caráter, ficavam escondidas ali detrás da porta, na certeza de que regressariam carregadas de pacotes, objetos, sacos plásticos e outros artefatos. Elas e elas. Tão logo descansavam, se voltavam outra vez às mesmas atividades, na busca de sentido a tudo aquilo e as máquinas em volta sempre. Enquanto que elas seguiam de perto seus passos, entraram quiçá nas áreas mais íntimas, analisando o jeito adequado de dar o bote final e fazer de nítida abordagem a sua consecução.

Espécie de animais inesperados, montados nas linhas de produção das fábricas, sobrevoaram horas a fio os que entravam e saíam dos alojamentos. Deram pouco a pouco sinais de aonde queriam obter sucesso definitivo, mas ninguém desconfiou momento algum. Elas, as máquinas, desde então, desde seus primeiros instrumentos que reagiam às mãos humanas, lhes foram sofrendo as garras, naquela intenção fria do domínio posterior. Alguns poucos notaram, todavia, a pretensão daqueles ferros em movimento. De início, só resfolegavam. Com o tempo, andaram tropeçando nas pedras dos caminhos. Adiante, gemiam quais bichos que nasciam do nada e ganhavam condições de domínio. Menos de um século, e agora vagam apressadas, reluzentes, por todo lugar, feras indomáveis, acesas, corrosivas, caras.

Menos dia, e querem lugar ostensivo no seio da raça das outras criaturas, feitas titulares de direitos, a reclamar das ruas e estradas o território doutros seres despertados lá nas eras antigas. Ainda crianças, seus repastos correm atrás do que possam acrescentar ao sabor das experiências e das massas. Já sabem de sobra que haverão de conhecer as novas linguagens que nascem das nuvens escuras. Buscam usufruir do que trouxeram os tais seres mecânicos na sua voz ativa no meio de uma raça inteira.

(Ilustração: Tempos modernos, de Charlie Chaplin).

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Uma das lendas de São Benedito


Na memória popular circulam muitas histórias a respeito da vida do santo católico São Benedito. Entre elas uma existe que corre mundo e fala da época quando o frade vivia num convento da Sicília, na Itália. Despenseiro do lugar, o responsável pelos mantimentos da comunidade, era característica marcante de sua pessoa usar da caridade para com os pobres da região com tamanha intensidade que preocupava os superiores.

Tipo que não sabia dizer não perante a dor alheia, padecia ao ver alguém passar necessidade. Com aquilo, talvez abusasse dos víveres que comandava e desfalcava a manutenção da ordem, chegavam a pensar os irmãos.

O bom irmão, no entanto, sofria horrores quando alguém, faminto, vinha pedir alimento, tratando de abrir as portas da despensa, sobretudo aos mais desvalidos. Nunca sabia negar das provisões. Os bocados que alimentariam o grupo deviam suprir a fome dos pedintes, conhecedores dos sentimentos do religioso. Em conseqüência, buscavam-lhe sempre que a carência se manifestava.

Devido a isso, o frade ficou sendo vigiado na prodigalidade que exercitava.

Ainda assim, de modo clandestino, Benedito trabalhava pelos aflitos, forçando o superior chamou o frade à atenção, aconselhando-o a reduzir seu ímpeto, que moderasse os hábitos, porquanto havia reclusos a reclamar pela qualidade do que ofereciam no horário das refeições. Alguns se diziam fracos para cumprir os ofícios da irmandade, em face do procedimento do ecônomo, ora do conhecimento de todos. Esse clima se estabeleceu, portanto, aonde outros missionários lhe olhavam desconfiados.

No andar dos acontecimentos, lá uma vez, na intenção de mitigar precisão de um pedinte que viera ao convento, Benedito disfarçou certos víveres sobre as dobras do manto, a fim de nutrir o indigente.

- O que é que levas aí contigo, irmão Benedito? – quis saber o superior, com quem se deparou de surpresa em um dos sombrios e úmidos corredores da construção.

Flagrado em delito e no impacto da situação, o frade apenas imaginou de responder que:

- São rosas, meu senhor! Rosas! – enfatizando com largo sorriso as palavras, no propósito de cruzar o limite imposto pela autoridade.

- Ah, rosas. Eu gosto de rosas. Quero ver a qualidade dessas que levas junto do corpo com tanto carinho – pediu insistente o companheiro.

Nervoso, por isso, sem qualquer outra saída, Benedito descobrir os alimentos que transportava e no lugar deles apresentou ao superior uma braçada de lindas e perfumadas flores.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Um silêncio original


Diante do espaço que agora reina sem fim como quem dialoga consigo próprio na imensidão?! porquanto foram longos os dias no aguardo de que alguém viesse revelar o segredo que dorme nas consciências. Ficaram apenas sol e chuva dos anos a fio, porém ciente de que algo chegasse, afinal, e trouxesse no ser a resposta sonhada durante todo esse tempo. Saber isto e sabia que há um sentido absoluto que a tudo revela, quando seja o grande momento. Virá numa nave silenciosa de que seria assim o instante. Estimava, no entanto, se converter da necessidade urgente, lá de quando fosse, de ouvir a sinfonia inefável dos carrilhões do Destino. E nisso alimentar todos deveres de sustentar a tese do Infinito nas agruras da dúvida e do vazio que guardara sob o senso da razão, durante tantas eras.

Nutrira a força da persistência que trouxe consigo aos pedaços desde uma primeira vez, diante das dores da solidão. O impossível falara mais alto. Dormira no relento, ao som de tantas vozes que invidira o escuro das noites e mergulhara pelo íntimo das visões inesperadas. Marcas, pois, ficaram largadas pelas horas cruas, nos surrões da Eternidade. Estrelas distantes contaram doutras existências nas suas cintilações. Os pássaros, logo cedo, nas madrugadas, acordaram as flores dizendo isso, que chegará o tempo de tudo vir à tona. O eco das ausências, que insistem viver depois do quanto viveram, também gritavam dos momentos eternos. Outros sinais disseram daquilo que viria na face das existências, que serão dias de sol intenso, de ações inimagináveis que conduzirão as caravelas do mistério a porto seguro e dominarão a voracidade deste nada resplandecente que envolve e evolui.

Aos poucos, as palavras sumirão no teto das circunstâncias e cobrirão de sentimentos felizes o trilho das constelações. Tais ritmo e melodia, composições ditas de paz far-se-ão na harmonia dos elementos em pauta, conquanto ninguém restará às portas do firmamento. Apenas isso, riscos de luz pelos ares em volta e o término definitivo do que existiu nas dobras mortais daqueles contos menores.

(Ilustração: Desenho de Janaína Lacerda).

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Tempos bárbaros


Pouco importam os signos, a mesma humanidade avança na preparação de novos confrontos pelo mundo. Armas desenvolvidas pelos séculos tremem às mãos das lideranças em jogo. Quer-se comentar aqui uma notícia que repugna e clama justiça, por demonstrar a deficiência que caracteriza as ações coletivas de povos seguidos, desde tempos de passado mais remoto, quando se conhecia quase nada do que ora se conhece. E ainda hoje governantes de países ditos civilizados insistem na destruição do semelhante, sobretudo menos aquinhoado, sob pretexto frio de domínio econômico, na mistificação de paz que nunca chega.

Queres a paz, prepara-te para a guerra, diziam os romanos. Enquanto tais atitudes ganharam foro de regularidade as cartas imbecis dos dominadores, o Planeta sofre e se arrasta, às vistas inúteis da grande população alienada.

A essa comédia de erros em que se transformou a sobrevivência do ser humano na Terra somem-se as recentes providências quanto à indústria das armas atingir proporções jamais registradas na História. O poder de fogo e destruição das formigas humanas ameaça até as futuras gerações, nas marcas deixadas com a guerra. Nesse passo, qualquer leigo sabe da fragilidade de sua opinião particular tímida, que perdeu determinação nos resultados.

A multidão, quando se reúne para comemorar em largas euforias, nas praças, nos estádios, comemora o quê, ninguém sabe, nem pára, querendo responder, porquanto virou só um número financeiro nas vendas, nos mercados bêbados da farra homérica que parece a tudo envolver e destruir.

Chega de guerra, pois ainda existem chances de viver. Há que se aguardar o mínimo de sensatez para reverter o quadro dantesco em que se transformou a segurança entre as pessoas. Já que a resposta não nasce da multiplicidade e dos líderes mundiais, que possa aflorar de cada um de nós, na luz da transformação individual.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Duas primeiras estrelas


Festival de asas cruza o céu em plena tarde ao final, indicação da tendência do frio que trazia consigo a noite embalada sob as fraldas sombrias da serra, esmaecidas quando saí o Sol que fora embora, largando mais um dia à própria sorte da escuridão audaciosa, invasora de tudo.

Dentro do peito, esse vazio de não ter tamanho, ausência de compreensão naquilo do fazer de cada minuto seguinte nas pautas eternas. Pergunta frondosa encobria todo o terreiro da alma, suavizava a razão na luta de encontrar resposta através das paredes horizontais, no distante das coisas.

Viessem obrigações de cumprir papéis, passos pegajosos afora pouco ou nada aumentariam da calma dominadora das ânsias de engolir mágoas e caprichos. Vadios instantes engalfinhavam cinturas de objetos abandonados pelos cantos iguais da casa vasta do Universo.

Contudo, as mesmas esperas de lençóis revoltos jogados ao vento na manhã seguinte. Nuvens em forma de ilusão escorregam nas frestas das possibilidades e janelas fechadas a sete chaves. Sabores oleosos entre dedos calejados. Frases superpostas ao tempo, em velocidade, nas luzes que clareiam o longe do vale nos relâmpagos aflitos das chuvas insistentes.

Vezes sem conta, abraços cálidos aqueceram o drama ininterrupto das feras perigosas no cio. Folhas secas estalavam com isso. Troncos rolantes ladeiras abaixo, na mata cinzenta dos restos de árvores e fiapos de lua escorrida nas gretas ressequidas dos galhos, passada em meio à brisa gelada recém-chegada no véu das plantas nervosas.

Saudade ou bicho parecido quis cravar velhas unhas enegrecidas de encontro ao pescoço da presença contundente da vida em cada espectro circunvizinho. Apenas silenciosos vultos, recurvados ao peso das existências inevitáveis, desfilavam sorrateiros, enquanto sensação de tumulto interior realizava trabalho repetitivo de clamar por socorro aos berros estridentes dos lobos entediados no alto das serras.

Quantos séculos transcorreram nas entranhas da mata entre os vermes do húmus enegrecido, ninguém sabe, calcados na força dos músculos de raízes vegetais. Saber ninguém jamais saberá, em face das tantas negociações em aberto. Apenas a sensação de calafrio, as entranhas da gente e os animais, seres desconhecidos em bando, jogados às gamelas untadas de mel e seivas azuis. Mandíbulas de presas amoladas, hálito forte de garganta ressequida, estertorosa, sabor de fome e sede, misturado na soma de restos jogados fora, fulgores e fermentos.

Enquanto pedaços intercalados da cena reconstituem o panorama secreto, pássaros noctívagos impõem tons salpicados de chiado surdo. Corpos, um nada mais que tanto único, corpos atracados feitos insetos-gente, suados e nus, âmbito dos fenômenos revoltos da natureza viva, revolvem o barro avermelhado.

No alto, as primeiras estrelas festejavam a concretização da mudança de seres entalados na terra, nervos, artérias e veias. Dois entes esverdeados erguem os braços e tocam as faces escorridas de visgo odoroso os narizes desafeitos. E abraçam um ao outro, nessa primeira de inúmeras outras vezes.


(Ilustração: Grande núcleo de Magalhães (Wikipédia);

sábado, 3 de fevereiro de 2024

O anjo libertador


Clima de extrema repressão dominava a Palestina após o sacrifício de Jesus. 
O capítulo 12, de Atos dos Apóstolos, bem retrata, num episódio marcante da vida de São Pedro, essa época encarniçada, quando os primeiros cristãos padeceram sob as garras cruéis de Herodes, filho do outro rei de igual nome que perseguira o Mestre nos primeiros tempos de sua presença na Terra.

Após haver morto Tiago, irmão de João, Herodes se voltava contra Pedro, mantendo-o no cárcere para quando viesse a Páscoa então apresentá-lo ao povo, desse modo pretendendo conquistar-lhe a confiança.

Grupos de quatro soldados se revezavam na guarda ao apóstolo mantido a ferros em cárcere de estrita vigilância. Enquanto isso, na igreja, sob o império do medo, os seguidores de Jesus se revezam em vigílias, pedindo a Deus pelo preso.

Na noite de sua apresentação à turba, como previsto pelo monarca, acorrentado, no meio de dois dos soldados que lhe montavam guarda, dormia Pedro. À porta, as outras duas sentinelas reforçavam a prisão.

No meio de intensa luminosidade, adentrou o recinto escurecido da cela um anjo, emissário da glória divina, e, silencioso, aproximou-se de Pedro a tocar-lhe o corpo e dizer:

- Ergue-te! Vamos embora! Recompõe as vestes, que agora sairemos deste lugar.

Surpreso, livre das cadeias que caíram das suas mãos, o apóstolo aprestou-se com providências imediatas, o quanto antes tratando de obedecer ao inesperado e sublime visitante.

A propósito do episódio, lido na Bíblia, se registra: Pedro, saindo, o seguia, mesmo sem compreender que era real o que se fazia por intermédio de um anjo, julgando que era uma visão.

Juntos, eles passaram pelas duas sentinelas que guarneciam a porta da masmorra, aberta de sem esforço, qual em passe mágico, sem precisar de ninguém nela tocar.

Saíram para logo se verem a andar do lado de fora, na luz fosca das ruas desertas da cidade.

Ainda sob o impacto da ocorrência inusitada, Pedro apenas se deu conta de ver o anjo a deixá-lo e seguir outra direção.

Assustando em face de tamanho prodígio, falando de si para consigo, constatou a providencial circunstância de sair ileso das malhas do perverso soberano, graças ao poder inigualável do Senhor, livre de propósitos inconfessáveis e destruidores.

Algum instante mais além, parou na sombra das casas e considerou os meios de que dispunha para fugir dos adversários. Lembrou, então, da casa de Maria, aonde os irmãos de fé tantas vezes se congregavam nos primeiros tempos, ali guiando seus passos. Ao chegar e bater no portão do pátio, causou espanto inavaliável.  

Conta o texto bíblico que aos primeiros raios do amanhecer pânico descomunal estabeleceu-se entre os soldados, tomados de pânico, temerosos das reações que o desaparecimento do prisioneiro ocasionaria. Interpelados e não justificando a ocorrência extraordinária, viram-se de imediato executados sem a mínima piedade.