sábado, 30 de dezembro de 2023

Fronteiras da ilusão


Por volta dos anos 60, segunda metade, alguma impaciência vagava insistente pelo ar. Líamos os existencialistas franceses, ouvíamos atentos as canções de protesto e o rock aparecia pelas ruas e praças. Algo haveria de acontecer a qualquer instante. Vinham notícias pelos jornais nanicos, pelos filmes que chegavam com dois, três, anos de atraso, pelo rádio, pelas cartas. A televisão dizia pouco, assim qual os grandes jornais, que só falavam nas entrelinhas daquilo que não podiam dizer. Dentro em pouco, aconteceriam os movimentos da França, os levantes populares nos países da Cortina de Ferro e as deserções à Guerra do Vietnam. E ficávamos estáticos, à busca de compreender e agir. Vieram as notadas insones, as tertúlias, serestas, os passeios rurais com bebida, cigarro e outras temeridades, numa espécie de reação transtornada ao sistema dominante. Nisso, as viagens aos centros maiores, aonde iríamos à busca de formação profissional.

Lá então, leríamos O despertar dos mágicos, 1984, Admirável mundo novo, As portas da percepção, Laranja mecânicas, Crônicas marcianas, dentre outros. E víamos filmes de arte, frequentávamos reuniões e palestras, festivais de música, shows, num afã de respostas a qualquer custo. E mais livros, dessa vez os de ficção científica, suas histórias maravilhosas de reinos diferentes, longe que fossem daqui da Terra. a falar de civilizações exóticas em que descobrissem meios outros de transformar a natureza humana, ainda hoje nesta fase de aprendizado quase primitivo, de guerras e fome, divisões e reinos boçais.

Tudo sob o crivo de experiências mil, testes avançados na própria pele, nos rascunhos das memórias mais antigas, quais houvesse semelhantes regressos a mundos imaginários de tantas aventuras errantes. Um desfilar de incompreensões, talvez até propositais, frutos da inércia e da pouca iniciativa. São essas as gerações que se sucedem no mesmo crivo de submissão à força desses valores da ilusão que predominam entre os povos daqui deste chão. Enquanto isto, qual todo sistema, dispomos na própria alma da função precípua de cura do atraso que tanto padecemos desde sempre. A função do encontro consigo mesmo, na real finalidade a que estamos existindo em vida.

(Ilustração: Alegoria da luxúria, de Hieronymus Bosch).

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Os cativos do Tempo


O que liga a inexistência à existência, esse traço de união presente com a infinitude, o Tempo. E quão poucos disto têm noção. Meras fagulhas de consciência e as ausências se configuram, a tomar conta de tudo quanto há no presente constante. A percepção essa significa a essência da Eternidade. Assim, o que resta de poder aos seres senão o domínio desta compreensão e aceitar a existência tal norma de reconhecimento da realidade?! Até então, serão os dramas e as ilusões das histórias pessoais durante as eras infinitas.

Outro senso significa pura imaginação, longe do real conceito de existir e disso utilizar a fim de preencher o vazio de todo momento. Este silêncio a ser obtido mediante a identificação do ser em si, eis tudo o que resta no âmbito das libertações de vidas e vidas, inteiramente sob o domínio absoluto do Tempo. Algo tal que demonstra o mistério representativo das horas em nós, e ocupa o espaço entre a matéria e o espírito, a que estamos aqui em busca de tradução. A Consciência é esse instrumento através de que revelaremos a finalidade precípua de viver.

Os sons falam com intensidade a respeito desse universo interno das existências, a circular o pensamento de sinais inesperados em volta. Bem isto, pelos fenômenos da Natureza. Desde a música do vento aos ruídos intermitentes dos pássaros, das folhas nas árvores, das movimentações humanas, longas falas que avisam do sentido inevitável do Tempo pelas horas que nunca cessam.

Por mais que desejemos, algo dorme dentro de nós, a pedir satisfação desse mistério tenebroso que avança ao Infinito e reclama de todos o poder de, um dia, interpretá-lo e, nisto, resolver o código da evolução. Nele, no Tempo, habitam os heróis de uma sobrevivência eterna.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Os circos


Na Antiguidade Clássica, diziam os gregos que só um poder os deuses não dispunham, o de mudar o passado. Quais sementes no subsolo da imaginação, acontecimentos que se deram atrás, no tempo, permanecem à espera do momento de vir a lume, das mãos de quem viveu e resolveu transmiti-los, deitando, no presente, as raízes de coisas que apenas a si lhes pertencem e repousam adormecidas no inconsciente, reavivando com isso trechos particulares da história social de lugares, coisas e pessoas.

Com tal espírito, lembro de uma época, em Crato pelos anos 60 e 70, quando vinham bandos de ciganos e caravanas de circos para se instalar na quadra do outro lado da linha do trem, bem ali por trás da Estação Ferroviária, marcando fase movimentada de visitantes e população interagir, cheios de surpresas e novidades para todo gosto.

Os ciganos e seus costumes exóticos, durante largas faixas da história do Ocidente, significaram aquilo que retrata Gabriel Garcia Márquez, no livro Cem anos de solidão: arautos da vanguarda nômade em meio a tradições represadas nas comunidades sedentárias, presas à rotina modorrenta dos lugares, enquanto os outros viajam mundo afora, colhendo os frutos do ineditismo, na raça humana.

Eles traziam técnicas relativas a tratamento de metais nobres, trajes e tecidos de talhes e estampas orientais, instrumentos até então desconhecidos, além da música típica de seus povos, as artes divinatórias da leitura de baralho, mão; adivinhadores; os modos gregários de tribos afeitas aos estilos particulares de relacionamentos e famílias de falares esquisitos.

Sob essas condições, a praça, que hoje se vê de todo preenchida de casas e edifícios, ganhava atividade e importância, ao dispor de quem quisesse ver, chamando os olhares acesos das gerações, ponto necessário de passeios vespertinos ao povo da cidade.

Os circos, estes preenchiam mais as noites, diante dos seus espetáculos iluminados e zoadentos, cheios de atrações mirabolantes. Por vezes, eram jogos perigosos de malabaristas em trapézios, fios de arame, saltos em redes, práticas arriscadas de facas, globos com motocicletas a se cruzar em alta velocidade, animais doutros continentes, amestrados, a repetir exercícios sob ordens insistentes de domadores; em outras situações, lindas mocinhas de maiôs reluzentes de brilho, rapazes forçudos e audaciosos, palhaços engraçados, desenvolviam práticas difíceis, para mexer com a emoção do público instalado nas cadeiras ou no poleiro, em meio a luzes coloridas e acordes intensos da orquestra ao fundo. Nos fins de noite, os dramas, com peças conhecidas, encenadas pelos mesmos protagonistas das anteriores funções.

(ilustração: Circos (https://www.todamateria.com.br/circo/).

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Um jeito de ver

Lá um dia, alguém há de contar as nossas histórias. Os dias passam numa velocidade inevitável. Meios mais acessíveis permitem agora que conheçamos, nos mínimos detalhes, acontecimentos e versões de todo lugar. Ninguém fica à margem dos detalhes desta fase onde quer que esteja. Tudo perante os avanços da tecnologia. Com isto, o que se tem de administrar? A forma de analisar o que acontece. Exercitar uma prática de trabalhar o panorama através da compreensão individual de tudo, sem deixar ser levado pelos interesses em jogo. Durante todo tempo, na conta das remotas eras, que existe a manipulação das massas. Enquanto estejam sendo favorecidos, os indivíduos silenciam diante das atitudes de comando ainda que absurdas.  

Qual silêncio conveniente, indivíduos pouco exercem o poder da própria consciência. Conquanto sejamos dotados de liberdade interior, muitos desconhecem a condição. Hoje, no mundo inteiro, bem dizer, impera o princípio do faz de conta através de que os poderosos determinam e os demais só aceitam, sob pena do isolamento, da perdição. Até então, a força de coação determina o painel das contradições da raça inteira.

Fora disso, restaria o princípio do autoconhecimento, fórmula de afirmação individual que requer exercício da liberdade em seu real aprimoramento. Independente do que ocorra no plano coletivo, um a um todos somos detentores desse instrumento por demais poderoso e próprio. Mergulhar em si até desenvolver o senso dessa potencialidade sem igual seria a fórmula de determinação. Daí, além de meros joguetes nas mãos dos outros, haveremos de encontrar o crivo dessa razão e construir novo mundo.

A cultura teria tal finalidade, oferecer os meios da libertação com que tantos sonham desde sempre. As artes, as filosofias, ciências, religiões, escolas, a isso indicam mil fases que nos chegam às mãos a toda hora. Mas tal exige coerência e prática através do quanto façamos de nós mesmos nesse universo.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Os enigmas da subjetividade

Qual seja o que, nada mais, nada menos, ainda ter de ser alguém com as velhas manias e máscaras a todo tempo. São estes milhares de entes que vagam cada momento e somem às primeiras ausências. Altivos, criam a si o quanto de necessário a convencer entre os demais e haver obtido a fisionomia anônima de herói. Noutras palavras, sermos nós, os que percorrem o estreito das visagens e memórias largadas no tempo. Assim, preenchemos de pensamentos, sentimentos e falas o palco envelhecido das visões. Encenam as peças e seus itinerários, à medida que norteiam passos nas estradas do mar desconhecido.

Nisto, havemos de cumprir nossa parte no grande altar dos sacrifícios a que rendemos crença e sustentamos as teses por nós próprios elaboradas. Dotados das mesmas migalhas dos séculos que se perderam pelo ar, escrevemos a história da qual seremos escravos e senhores. Escutamos quietos os partos e o retinir das algemas que, calados, transportamos pelo corredor das lembranças.

Firmamos papeis de sol a sol. Tangemos o rebanho formado de outros eus em movimento. Apreciamos o transcorrer das gerações pelos vastos continentes das horas. Silentes, alimentamos desejos íntimos dos quais jamais abrimos mão até agora. Quantos verbos poder-se-ia enumerar durante o fluir das estações, face a face com o inevitável. No entanto padecemos desse vazio insistente e dos reais motivos de estar neste chão, atores do drama de todas as espécies.

E depois, quando as luzes do final das tardes acobrearem o azul do firmamento, bem nesses instantes esquecemos a determinação dos dias e oramos interrogativos. Calmos, por fim, presenciamos apenas o abandonar das nossas almas ao celeiro infinito da Eternidade.

(Ilustração: Arte egípcia (reprodução).

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Do lado de lá


Por mais quiséssemos, ninguém conheceria ninguém a ponto de andar nos seus desertos interiores e abraçar os seus sonhos. Quais meras cápsulas de razões ainda desconhecidas, pisamos o solo da própria fama e degustamos o próprio desconhecido que permanecerá conosco. Passo ante passo, cruzamos as horas ou mergulhamos as crostas do Infinito, certos de certezas que carecem de maiores esclarecimentos, no entanto. Somos isto, fragmentos de um grande todo ainda ignorado que nos sustenta e segue abismando nossa escuridão. Olhos fixos quiçá em oásis distantes, tocamos adiante o rebanho de nossas almas em doces amarguras ou esperanças vivas. Fôssemos alimentar versões diversas e entraríamos nas florestas submersas dos desaparecimentos.

À medida em que aceitamos, pois, tais limites do instransponível entre as pessoas, tornámo-nos repasto de ilusões trazidas doutros pagos. Firmamos a compreensão de que existem normas neste universo. Perlustramos as canções de tantos autores que nos embalam as noites. Formoseamos conceitos repetitivos que fazem de nós instrumentos de todo instante. Sustentamos a barca do Destino em nossos braços, presos às quimeras do passado ou às ânsias do futuro.

Por isto, as desencontradas variações de vermos conhecidos que somem aos primeiros claros da madrugada. São nossos velhos companheiros de perdidas jornadas e doutras ocasiões. Sabem de nós do mesmo tanto, ou menos, do que deles o sabemos. Viventes das praças da cidade, de uma hora a outra tornamos a vê-los talvez quão assustados de nos ver quanto. Mesmo que tal, o furor dessa tempestade do firmamento em constante ebulição percorre nossas veias e desvendam os segredos escondidos na copa dos antigos mistérios.

E andamos nestes sonhos, vultos de largos tempos que se sucedem à medida em que ouvimos o silêncio das alturas sussurrando dentro do coração. Abrimos portas pouco a pouco e certa vez de tudo nascerá ao que seja existir; substituir papéis antes imaginários pelos trajes definitivos da permanência aonde quer que seja de uma verdade para sempre.  

(Ilustração: Trem na Índia (reprodução).

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Lembranças e sonhos


Muito mais sentimentos do que meros pensamentos, eles chegam dos instantes e permanecem, feitos parte de um tesouro guardado a sete capas nas malhas do coração. Ficam ali numa região secreta e, quando menos se espera, vêm e tomam o espaço do Ser quais habitantes que despertam de sonos inesperados. Trazem consigo, na carne viva, as mesmas emoções de saudade que antes os fizeram nascer certa feita. De tão valiosos, estendem sua essência em volta da emoção e reeditam claramente quanto guardam consigo, de força inigualável, livres de quaisquer decisões atuais. Fustigam a memória e refazem as mesmas dores de ausência lá dos tempos passados. Revivem nos mínimos detalhes tudo aquilo e mexem conosco, donatários e senhores absolutos da existência. Numa película poderosa, preenchem o teto da presença de cores e formas jamais imaginadas.

Isto também são assim os sonhos bons. Eles e os protagonistas que lhes acompanham, as histórias, as revivescências, os amores, as lembranças trazem juntas, a contar de outros transes talvez inexistentes, no entanto reais, lúcidos, permanentes. Uma produção sem par, os sonhos. Quiséssemos o suficiente, e saberíamos donde vieram dotados de tamanho poder. Dizem aos olhos do Inconsciente qual seja a fonte de tantas maravilhas, de uma vida própria que desagua em nós, independente da nossa vontade. Ser-se-iam lembranças ativas do que nunca vivêramos, e marcam quão profundamente os sentimentos que neles fazem morada constante.

Esses pássaros do Destino que significamos nós, munidos de consciência apenas parcial dos fatores da Natureza, portanto vagam nos páramos do Infinito com seus penhores ao indizível dos sonhos e das lembranças. Deslizam entre essas margens na condição de cativos da realidade. Transportam na alma as garras do mistério que lhes amarram à sobrevivência. Nisto, sonham com a felicidade e dormem sob as vistas acesas da esperança. Dias e dias, pois, eles imperam nas nossas vidas à busca do senso de que falam as artes, no firme desejo de imortalidade e beleza.

domingo, 10 de dezembro de 2023

Pensamentos


Numa espécie de mergulho em si próprio, vale considerar algumas avaliações quanto aos pensamentos. Eles nascem sucessivamente em nosso ser quais sementes que brotam em um território desconhecido. Estão aqui. Fazem de nós suas raízes. Nalgumas horas, até parece que somos os seus autores. E é possível que sim. Noutras, algo nos invade vindo não sei de onde, a fustigar a sorte dos nossos momentos à força de invasões sequenciadas. Mexem. Machucam. Tomam de conta da presença do que seremos logo a seguir. Perduram desde que deixemos que prevaleçam sobre as nossas decisões.

Eles fazem de tudo a fim de sobreviver  independentes, na fome de querer nos dominar a qualquer custo. Mas temos vida e podemos determinar. Controlar. Criar novas condições.

De algum lugar eles vêm. Tais emitidos doutras mentes, chegam sorrateiros e buscam estabelecer um poder que seja de sua predominância. A disposição individual, no entanto, oferece os meios de controlar suas ações internas aonde nos identificamos. Essa procura de compreender o modo de funcionamento dos pensamentos acompanha a jornada de todos nós.

Existem conceitos diversos a propósito do mecanismo mental, daí as tantas escolas. Igualmente, por mais nasçam teorias, apenas a forma de exercitar significa o que isto representa do todo pessoal. Em horas distintas, podemos vislumbrar determinados princípios, o que a existência oferece de recurso de evolução.

Na faixa estreita de presenciar o sentido de viver, ali circulam as ideias e aportam sinais que se transformam em matéria de memória; que são eles. Por vezes, meros tumultos emocionais. Assim, nessa teia do imaginário, observamos os distintos acontecimentos em pulsações intermitentes. Filme constante, os pensamentos percorrem nossas casas internas e moram conosco no fluir das estações. Frações de tempo os partilham com argumentos nítidos ou dúvidas sofisticadas.

Os fragmentos das individualidades, pois, desfilam aos pensamentos na forma abstrata do que criamos nessas traduções de mundo. Ainda que ausentes deste plano físico, o ser prevalece e constrói o destino a olhos claros nos pensamentos incessantes..

(Ilustração: O pensador, de Rodin).

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

As cavernas da memória


Ninguém abandona às próprias jornadas esses pensamentos aparentemente adormecidos. Ali neles persiste um brilho intenso de querer habitar de vez a existência. São detalhes individuais que vieram de um a outro, nessa aventura de todo vivente. Nós humanos seremos isto, artesões das cores e formas nas telas na casa de depois. Pródigos retirantes do sertão da Consciência, desenham nas paredes de dentro seres estranhos por vezes libertos e avançam no escuro da solidão até desaparecer na distância. Quiséssemos, porém, construir reinos da Paz, vencer-se-ia desertos assustadores de desejos e acalmaríamos o egoísmo. Abandonaríamos o que, um dia, sustentou as cercas da ilusão. A esse dia, vamos em busca do Sol que ilumina a noite dos milênios incalculáveis...

Nisto, pequeninos seres fervilham o solo do Tempo. Constituem famílias. Representam em si mesmos a fome incontida de sobreviver. Andam sozinhos, de máscaras mil que circulam entre as dobras desse filme intermitente, numa demonstração de que tudo há de prosseguir. Independente dos conceitos do inevitável, tantos falam. Seremos nós aqueles que um dia buscaram as fórmulas mágicas dos sonhos. Largamos nas pedras o passar da vontade estreita, afoita e pretenciosa.

Nesse vai-e-vem da sorte pelas estradas, deparamos contingentes inteiros de outras batalhas que nunca cessaram. E andam pelos meus corredores da alma, sórdidos objetos de paixões e desenganos. Contudo menestréis doutras histórias ao além submetidas, na lei das recordações. Foram paisagens inesquecíveis, manhãs iluminadas, momentos felizes desfeitos pelas garras insanas das outras feras. Enfim, ímpetos de viver que alimentaram o amor em todos os destinos.

(Ilustração: Crato antigo).

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Pergaminhos


Deixar gravado no próprio ser e sobreviver a tudo, eis o que chamam caminho da Salvação. Nós conosco mesmos em permanente atenção nesse processo de adquirir as normas do Infinito na carne viva. Marcas serão ali deixadas em código secreto, na consciência, nas agruras do movimento incessante. As horas, o que sejam, se inserem na presença que o somos e nos trouxe até aqui na forma de véus. Noites e dias. Num processo de constante superação, que os humanos são assim, pequenas mechas de um todo universal enigmático. Palmilhar, palmilhar sempre, nesse aparente deserto das existências e avaliar o melhor jeito de construir a moradia no eterno. Constituir as possibilidades em forma de todos os gestos. Ver, pensar, sentir, agir... As palavras podem falar um tanto nisso, contudo seremos os heróis desse destino inesperado que elaboramos das oportunidades e as transformamos em moléculas de um princípio inevitável que nos traz ao instante e exige atitude.

Símbolos, sinais em narração que contam de outras dimensões além do céu que observa o procedimento das criaturas. Olhares vagos de quem ainda dorme sob as nuvens de um mar sem fim, às vezes calmo, doutras em tempestade. Quiséssemos ou não, todavia seremos tais barcos sorrateiros à deriva na fronteira do absoluto. Do pouco que possamos vislumbrar, haveremos de ser testemunhas do que disso receber os frutos. Aspectos individuais, pois, norteiam o que sejamos diante do espelho do Tempo e daquilo que desejamos. Nós, as escrituras que perfazem as individualidades e mostram a que viemos face a face do mistério às nossas mãos. Ao romper o silêncio desse pulsar incessante, desvendamos a escrita daquilo que fizemos a todo momento. Noutras palavras, ser os relatos de nossos desejos e realizações, e seus resultados a qualquer ocasião quando despertar  deste sonho de profunda transformação nas almas em órbita.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Silencioso e mordaz


Quem? Ele, o Tempo intocável que move o quanto existe. De algum lugar. vem sorrateiro, silencioso, de dentro dalguma caverna ainda sob o crivo do mistério, e mergulha os céus suavemente, largando marcas profundas nos entes que aqui estejam. Ser encapuzado nas próprias sombras, invade os mundos sem deixar rastros.
 Apenas as existências, que dão de conta do afável calabouço corrosivo de onde se acham e abandonam aos sonhos o pouco que lhes toca.

As réstias do Tempo, caprichosas, mantêm o ânimo do Infinito em velocidade constante, no abraço descomunal de pássaros inteiros das dimensões inatingíveis. Meras fagulhas de uma fogueira inexplicável, são luzes que incendeiam os dias e obscurecem noites e noites. Sente-se dela a força poderosa que ergue e destrói a beleza, a forma, os movimentos, dores e prazeres, nessa atividade adrede estabelecida das nuvens que passam e desaparecem no bojo da Eternidade.

Mas Ele jamais conseguirá encobrir as cicatrizes antepostas na face das criaturas que observam esse abismo translúcido na alma da gente. Lá no mais íntimo de todos, candidamente amargura o desejo de ainda perenizar as alegrias, os amores e o fervor das contrições. Cabeças baixas entre as derradeiras passadas que os levarão ao inesquecível, olham apáticos deslizar o Tempo e reconhecem o furor das ausências que vêm e vão ao seu penhor.

Ninguém, quisesse, pois, obteria o senso da razão que O habita, por mais convirja toda sede do imaginário. Assim, tais cativos de um pai que exercita viver e fazer desaparecer multidões incontáveis desde sempre, toquemos o sol do coração à busca sem par deste senhor dos infinitos. Quais meros passageiros dos devaneios e do Destino, fica-nos o instinto de obedecer às normas da solidão que carregamos conosco nas dobras da quietude. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Curva populacional


Independentes fossem todos os demais fatores da natureza ao redor, há um item determinante a que ocorram fenômenos constantes da geopolítica, qual seja o crescimento populacional incontrolável que impõe reflexões profundas. Esforços têm sido feitos, porém. São votadas leis de contenção, providenciadas medidas extremas de redução através de guerras e outros instrumentos, ações desencontradas e perversas, numa ansiedade persistente, no entanto nem de longe paliativa. Os números só avançam, no que pesem atitudes técnicas de adaptação à voragem incontida dessas horas amargas.

Esse quadro bem significa, pois, os tempos atuais de profundas mudanças e transformações. Tal impulso determinante do tão sonhado progresso, fisicamente a Natureza cumpre seu papel e oferece meios de sobrevivência aos quantos aqui estejam. Resta, contudo, aos humanos verem com nitidez a necessária conformação aos novos dias, isto em atitudes coerentes de solidariedade e trabalho coletivo.

Diante dos dramas da espécie, dadas carências imediatas, vêm os avanços tecnológicos, aperfeiçoamento dos núcleos urbanos, transportes, materiais, aprimoramento de instrumentos, educação, medicina, tudo à medida em que crescem as demandas. Nítido fator de aperfeiçoamento, apesar dos desvios e perversões, o próprio agente multiplicador da quantidade dos seres humanos oferece motivo de sobra a que descubramos fórmulas novas de coexistir face aos números avassaladores da população.

Nestes tempos de apreensão e indefinições, surgem expectativas de compreender modo simples de viver e usufruir dos recursos naturais que propiciem a tão sonhada paz social. Nisto o valor das lideranças e dos exemplos no tanto das carências em jogo. Vê-se a importância primordial da inteligência trazida aos âmbitos nacionais e a força dos sonhos que alimentamos desde sempre.

Qual o poder que determina, mais que nunca existirá um tempo de reflexão aos olhos de todos; será quando conheceremos na prática o primor das filosofias que a História desenvolveu e faremos da existência o motivo primordial de estamos aqui e, por fim, aprenderemos as lições que circulam pela memória de todos.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Quantos ídolos


Agora presentemente ando meio arrepiado com o gradual desaparecimento dos tantos ídolos da geração que, sem mais, nem menos, resolvem deixar as páginas da arte e sumir pelas folhas deselegantes dos noticiários, de uma hora a outra, qual houvessem mudado de casa e largado ao relento os antigos admiradores, assim qual as panelas antes novas e de repente decidem largam o fundo. E eles também somem?, é a primeira grande surpresa, pois foram o alimento de muitos verãos e animaram tanto as festas das noites de sábado.

Contudo, tem sido de tal modo. Grandes nomes do show business se dissolvem no passado num abrir e fechar de olhos. Eram peças quais definitivas dos sonhos adolescentes, das emoções desenfreadas e suas lembranças mil. Depois, vemo-nos sós à procura de novos chamamentos, largando no íntimo das caixas abarrotadas os livros, discos, ingressos de apresentações, cds, revistas, quem sabe o quê!, numa dor e numa ausência talvez bem pouco aproveitada no íntimo das fogueiras frias.

Lembro dos meus ídolos da música popular brasileira e internacional, das histórias em quadrinhos, dos romances super festejados, dos contos, crônicas, filmes, etc. Aonde foram parar todos eles, no entanto? A quem pedir satisfação do descaso de tudo isso que pelas encostas dos dias desapareceu, e a gente aqui a continuar nessa vastidão infinita, longe das certezas, à cata de novos apegos que tragam animação e reavivem sentimentos e variações aos pensamentos.

Às vezes me dou ao luxo de rever filmes emblemáticos que me fizeram a cabeça noutras oportunidades, mas que nessa hora contam outras histórias, demonstram outras verdades, no auge da indiferença pelo que passou. O Tempo, este senhor das eras e de poderes inigualáveis, apenas troca de figuras e larga ao chão das almas as impressões das quantas luas que nutriram paixões estonteantes, e recolhe seus equipamentos e os valores dos que foram embora após a função do espetáculo findo. Ficamos ali atônitos, abarrotados de saudade, olhos postos no túnel que escureceu e levou consigo dias de emoção avassaladora; com eles os protagonistas que, a essa hora, lá pelos camarins, estão a banhar o rosto das derradeiras marcas que tantos no fizeram diferentes do que hoje somos.

(Ilustração: Reprodução (papeiseparede.com.br).

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Pelas ruas da cidade


Final da manhã, quando o dia chega ao furor do meio-dia e as sombras ficam menores, nas estreitas calçadas do Centro. Nisso, as pessoas começam a rarear nos afazeres de compras ou doutros compromissos. Os vendedores ainda saem às portas das óticas, a oferecer consultas de óculos e distribuir seus prospectos de venda. Quanto a isso, nunca se viu tantas óticas e farmácias do tanto de hoje em dia, um afã de gente a buscá-las à procura da saúde, talvez face aos excessos visuais dos chamamentos dagora, dos celulares, das televisões, da soalheira dos verões. E carros, muitos carros e motos espalhados pelas ruas e estacionamentos, em movimento desses tempos das distâncias e dos afazeres apressados. A constante busca das alternativas de vida, as profissões urbanas da fase acelerada, dos chamamentos os mais diversos, pendores e carências.

Enquanto as gerações caminham nesse mercado persa, alguns, raros, dão de cara com outros de algum passado da memória e relembram momentos da mesma história da cidade, réstias largadas aos dias. Lá surge alguém, passados que foram anos, décadas, quais aparições inesperadas. Gestos de alegria de revê-los. Mostram alguma surpresa e um silêncio cuidadoso, depositado no íntimo, que vem aos olhos no instante; marcas já lhes assinalam a fisionomia de olhos fundos e cabelos grisalhos, porém fortes na resistência de chegar até agora e depois, no cruzar das estações, e seguirem firmes nos propósitos reunidos vidas adiante.

As lojas são quais esses estoques expostos numa grande feira, a cidade, confecções, material de construção, cartórios, artesanatos, produtos naturais, bolsas, calçados, perfumaria, eletrodomésticos, telefônicas, escritórios, variedades, bancas de frutas, verduras, novas lojas em edificações antigas, ferragens, produtos agropecuários, manipulados, supermercados, bancos, papelarias, copiadoras, lanchonetes, lotéricas, oficinas de computadores, de eletrônicos, espécie de burburinho que resolve tomar de conta do espaço e do tempo num único território. Eles, os centros urbanos de então, feira de variedades intensas, sustento e tradição da fase atual das civilizações, em rápido instantâneo..

(Ilustração: Rua do Crato CE (blogcariri.com.br).

domingo, 26 de novembro de 2023

Assim nascia uma nova linguagem


Naquele tempo quando os bichos ainda falavam a linguagem dos homens e estes a linguagem dos bichos, vivia à margem de um riacho perdido nas distâncias um sábio ermitão que resolvera reunir, passo a passo, a experiência das vidas com a intenção de criar uma  linguagem comum que atendesse aos dois segmentos, de bichos e homens. Dali nasceria a tão conhecida, agora, escrita criptografada e os algoritmos. Ninguém mais teria o argumento de não compreender o que falavam os animais ditos irracionais e muitos menos os seres humanos, a quem reservaram a nomenclatura de racionais, algo um tanto experimental, pois.

Seria qual lá adiante a corrida do ouro, o desbravar dos sertões ou a conquista do Oeste, todos no maior frisson à busca de revelar, afinal, o mistério da Árvore do Conhecimento, até então restrita só aos livros sacros. Vieram os enciclopedistas, a Revolução Francesa, conceitos ditos novos da Idade da Razão, que tomariam de conta do universo ali conhecido e imporia as recentes condições de pensamento. Normas amplas, atitudes extremas, impensadas, de grupos de poder, as guerras, os antibióticos, os alimentos sintéticos, as fórmulas matemáticas, a fissão do átomo, os remédios esteroides e as armas nucleares, nisso invadiram os palácios e domariam, a seu modo, as feras da Natureza através da extração do petróleo, dos auto.móveis a explosão e do uso indiscriminado daquilo mais pesado que o ar que vareja o mundo e tende ao espaço nos voos interplanetários da chamada Guerra Fria, à conquista dos asteroides, no entanto jamais vistos além das telas cinematográficas e dos vídeos monitorados pelos laboratórios e sistemas.

Nisso, os outros animais menos densos juntariam seus troços e voltariam às florestas que sobraram nas curvas dos grandes rios, deixando de lado o movimento das ruas aos trens, automóveis, motos, aviões, numa história que chega às raias da ficção e dela continuam a esperar resultados menos assustadores.

Eles, os tais bichos fujões, contudo voltariam a aparecer na Civilização através dos mesmos meios eletrônicos de que sumiram, no entanto com a devida reserva, porquanto poriam suas marcas apenas em fábulas, apólogos, canções, programas televisivos, nas tardes e nos desenhos em quadrinhos, que marcaram época e também tendem a desaparecer por força dos jogos eletrônicos que os dominam e fazem deles o que bem querem às mãos dos meninos isolados pelos celulares e dormitórios sombrios de um fins de tarde que eles mesmos imaginam produzir.

(Ilustração: Reprodução (reddit.com).

 


sábado, 25 de novembro de 2023

Eu homem e eu deus


Lá pelas tantas, eles dois viviam a meio do carrascal do Sertão. Resolveram isso, que ninguém até hoje sabe explicar o motivo, de vir morar numa chácara abandonada, ali esquecida naquelas bandas desertas pelos antigos moradores, que sumiram a meio de uma grande seca no passado. E viviam relativamente em paz, quando, sem mais, nem menos, o eu homem resolveu meter os pés pelas mãos e agir à sua maneira, isto é, tal faria um homem comum diante da torridez do universo em que mourejavam. Às primeiras horas de uma distante segunda-feira, já padecendo da fome deixada pelos outros humanos naquela solidão, e arriscou pegar a braços o primeiro animal que lhe aparecesse.

Sorrateiramente desceria das encostas rudes um filhote de guaxinim a querer beber água do açude quase seco, nas primeiras horas da manhã. E nisso o eu homem, escondido debaixo de rara moita de mofumbo, munido de uma pá e uma picareta, acertou em cheio o infeliz jaraguá do mato, rachando-lhe a cabeça.

Todo animado, ao chegar em casa, enquanto preparava o quitute do dia, lembrou de acordar o eu deus que ainda lhe dormia nas entranhas. Mas qual seria a surpresa; ele também estava de cabeça machucada, idêntico ao guaxinim que trouxera há pouco da espera no mato. Nem sei se só adormecido, no entanto bem baqueado no físico.

Não sabia o eu homem que o seu parceiro subiria naquele mesmo instante até o Deus de Todos, nos céus, a reclamar da agressão sofrida quando ofendido fora pelo eu homem.

Nisso, logo foi perguntado:

- Que fazia naquele momento da agressão?

- Andava em sonho à procura de água de beber – respondeu.

E seguiu o interrogatório:

- Com quais trajes? De bicho ou de gente?

- De guaxinim – definiu.

- Pois se conforme e acorde a fim de se alimentar da sua própria carne – foi o veredicto que recebeu.

(Ilustração: Guaxinim (paixaoanimal.com (reprodução).



sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Razão de estar aqui

 

Mas uma pessoa precisa de experiências novas, permitindo-lhe evoluir. Há algo em seu interior que o inquieta. Sem que haja mudanças, algo fica adormecido dentro de nós e muito raramente volta a acordar. Aquele que dorme tem de acordar. David Lynch (Duna)

A sequência de tudo impõe suas evidências claras de que existe um objetivo preciso nisso com que nos deparamos todo tempo e em todo lugar. Quais numa rede em movimento diante da realidade, seres e fenômenos desenrolam, assim, esse embate de objetos e abstrações, sob os olhares interrogativos dos povos, quais atores eficientes de uma epopeia inesgotável, e que seguem todos rumo dos céus da imaginação.

Haverá um roteiro justo desse desenrolar das sucessivas histórias, às vezes narradas, doutras esquecidas. Obedientes aos papeis em ação, todos, enfim, tocam entre si as cenas gravadas pelas normas do Destino. São superproduções indescritíveis que atendem aos critérios de forças invisíveis, padrões perfeitos de coerência e planejamento, investimentos de fortunas incalculáveis, lançadas aos tempos, depois aterradas ao que passou.

As artes falam disso, de outros universos além do que perceptível aos conceitos humanos, porém nos quais tudo e todos ali se acham envolvidos, perenes, vilões e heróis das largas cenas antes gravadas, epopeias maravilhosas, dramas sem igual, de que, independente do querer dos elementos em jogo, hão de obedecer a todo custo de sacrifícios e vidas o que haveriam de cumprir.

Nisto, a pergunta fabulosa do que seja a causa essencial do quanto de viver e cumprir as determinações dessa eternidade incalculável sob seus olhos em constante criação através de pensamentos e emoções. Serem os que desempenham e presenciam no íntimo os passos inevitáveis desse procedimento, somos criaturas e criadores da própria evolução.

Cativos ao poder sem igual do quanto obedecer, no entanto senhores dos resultados transformar-se-ão os gestos e os sentimentos. Esse algo que fica adormecido dentro de nós, isso consistirá no momento sob que depositamos o sonho da transformação definitiva dos milagres da Criação, sendo que fomos o princípio e o fim das mesmas horas nas existências, nos sonhos de quando ainda dormíamos...

(Ilustração: Duna, filme de David Lynch).

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Poder de decisão


Igual à força de seguir adiante. Saber do sentido de tudo em si próprio e efetuar as medidas exatas de exercer a liberdade tão propalada nos tempos. Saber-se deus, deus em seu território de ação, dado o poder permitido face à existência de escolher um caminho e ocupar seus espaços. Em quanto importa aceitar as consequências. Bem isto o que denominam livre arbítrio.

Tal tocar no teto do Infinito e conhecer o peso de determinar os próximos passos nas malhas do Destino, isto de abraçar o tempo, mergulhar as profundezas de viver e aprimorar conhecimentos, a braços com os frutos do que plantar.

Ninguém que seja haverá de fugir aos resultados daquilo que produz a todo momento, independente dos conceitos que os movem de agir. Esse outro lado do quanto ocorre depois disto nascem as filosofias, as normas, a ética, a moral, as religiões. Da persistência da espontaneidade vem a Lei que rege o Universo. Ausentes, pois, de opções pessoais, fluem as condições da Natureza; largos resultados que determinam, independente do que pensem ou publiquem, mas virão as respostas perpendiculares dos céus em movimento constante.

Nem de longe pensar ser a derradeira palavra dos desejos humanos. Nessa disposição do que sejam os laços sob que vivem, ninguém vangloria a só aparente vontade de preencher o mistério e dele fazer de conta nem ter a noção. Os limites da compreensão falam nisso todo instante.

E a imaginação fervilha de detalhes dos que habitam as mentes e as constrangem, na forma de utilizar desse valor maior do que seja liberdade, no entanto. Pensamentos, palavras, de uns a outros, das gerações entre elas, dos vagões dessa longa estrada que leva ao desparecimento. É tanto ser difícil a sustentação das intenções de cruzar os mares do passado e chegar ao porto seguro dos deveres que fossem de ter sido bem antes assim.

(Ilustração: Comics (Superman).

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Parceiros da ilusão


Andar lado a lado com as fantasias da aparente realidade, e mesmo assim ser feliz, se alegrar no tanto de tocar adiante sem notar que o tempo escorre pelos céus e desmancha o panorama ao nosso ver. Qual quem alimenta uma forja insaciável, os eus mergulham nas horas cheios da mesma fome dos dias anteriores, sendo em si fardos enormes a transportar enquanto criam motivos de satisfazer desejos e sonhos. Vultos encapuzados assim vagam às sombras dos destinos desconhecidos, padecem de iguais necessidades que impõem os momentos. Eles, os parceiros da ilusão que dormem sobre o pasto dos dias seguintes, velozes, que neles transcorrem as correntezas e sustentam a vida provisória de uma ausência de sentido em termos maiores.

Nesse quadro das ocorrências, desde épocas imemoriais andam aqui a braços com a vontade extrema de encontrar pouso, contudo num aprendizado inconstante, movidos ao fogo das lacunas e dos prazeres insaciáveis. Sabem o quanto podem, aonde chegam na medida em que observam os demais que despencaram nas antigas cachoeiras do que foram e que aqui passaram. Há, bem que demonstra a perfeição que rege as existências, que virão outras histórias, guiadas pelos ventos do Infinito, e que revelarão verdades inextinguíveis a qualquer custo da sensibilidade.

Até de ouvir isso, desses protótipos em ação, algo sacode o peito e quer-se evitar a todo custo ver de frente a verdade, estágio em que nos achamos. Bloquear as vias de memória e desenvolver outras razões de aceitar a própria ignorância. Foram milênios então longe que fossem de revelar maiores compreensões, além tão só de baixar a cabeça e entregar aos meros instintos a qualidade dos sons, e deixar correr o tempo nas malhas da escuridão. Dói isto saber e quase nada fazer.

Existem notícias dos dias melhores, de quando melhores formos nós. Lembranças antigas de uma perfeição imaginária ou recordações pertinentes; eles alimentam essa fome de conhecer mais, de ser mais do que ora somos. Achar na plenitude dos corações a beleza eterna da Consciência, tal será o instante da certeza do que desvendaremos, nesse horizonte de eternidades.

(Ilustração: Gravura de Francisco Goya).

domingo, 19 de novembro de 2023

Os conceitos individuais


Só se vê a realidade à medida dos próprios princípios, mesmo que nasçam das tantas experiências humanas, dos princípios antes estabelecidos nas gerações e nas tradições. Porém tudo dentro da limitação que define o ser que os percebe, longe pois de respostas precisas, definidoras de uma verdade maior. São verdades parciais; valores estabelecidos no transcorrer dos tempos que preservam o senso das pessoas que o somos.

A propósito, pensadores aprofundam o senso da procura, contudo restritos ao quanto possam compreender, sem a consideração do aspecto espiritual impossível das cogitações da matéria. Assim vem sendo desde sempre, na linguagem relativa desta humanidade. Quiséssemos conhecer a essência, daríamos de cara com as restrições. O que conhecemos esbarra nos princípios da matéria, algo reduzido aos sentidos e ao raciocínio, até hoje condicionados e perecíveis.

A decantada Ciência estabelecida no poder pelas civilizações padece do mesmo dissabor, ainda que reconheça leis diversas e imponha dominação pela força. A História isto bem define. Apenas uma parcela mínima de resultados demonstra critérios além das fraquezas dos lideres impostos pelas posses e atitudes totalitárias, a demonstrar o que significa a decantada evolução da espécie, fera que a si se devora.

...

Sob o quadro atual de medo e apreensão, pouco existe de representativo dos valores que as gerações interpuseram de tudo que aprenderam, ou imaginam ter aprendido, conquanto o egoísmo dos inícios da raça permanece a valer durante todo tempo.

Vieram as filosofias, os ditos mestres das escolas místicas, os profetas, num aparente aperfeiçoamento do pensamento coletivo, e os frutos são esses que a tudo determinam em termos gerais. Esse diagnóstico evidencia com intensidade o presente de todos na face deste mundo. Países ditos ricos, desenvolvidos, exercitam os conceitos de predominância e destruição à medida em que resolvem conquistar os fracos e prevalecer na ânsia de conquista que os caracteriza. Isto bem aos moldes das tradições e dos costumes lá de antigamente, mostra da urgência de largas transformações além das meras concepções primitivas que controlam o painel existente e a lei do mais forte.

sábado, 18 de novembro de 2023

Sentido da evolução

São elas e as tantas marcas ali deixadas pelo tempo na face das memórias inesquecíveis. A função das vidas, embarcações de largo curso espalhadas no vento das virtudes. Música do silêncio. Individualidades em movimento. Horas mil gravadas no coração de todos. Isto de existir, a mágica fiel de tudo quanto há. Senhores de si, respondem aos apelos da Consciência e padecem amargas em muitas ocasiões da tatuagem da História na própria pele.

Quisessem fugir, restaria aguardar a força da imaginação e ter de regressar ao trilho que brota nas unhas dos seres materiais. As relíquias dos acontecimentos permanecem, pois, fixadas aos indivíduos e os transportam aos depois em fração de segundos. Isto que desliza entre pedras, esse líquido persistente de em tudo continuar inteiro, as dobras do Universo numa só criatura que somos nós e nas demais existências.

Noutras vezes, as lembranças do que sempre haveremos de ser durante a Eternidade, aqui, nas luzes de todo instante. Dias e dias que se sucedem através dos entes, pulsação do Infinito nas almas acesas às suas próprias atitudes e respostas ao desafio de viver. Nisto, em uma única direção a rasgar a cortina suave do espaço e seguir adiante através dos firmamentos.

Dessa urgência de compreender nascem os estágios diversos da evolução das espécies no que temos papel essencial, conquanto interpretamos o código aberto dos destinos dentro do senso comum, nós, os ledores de sorte dadivosa. Palavras que esvaem e permanecem com seu significado no painel das considerações pessoais. Esse limite de leitura determina suas condições de estar e permanecer, vadiar e desaparecer na linha do horizonte a cada passo, aos nossos pés.

Bem isto de sermos os autores e protagonistas dos dramas e comédias que perfazem a razão do quanto permanecerá à luz, transcorridos os desaparecimentos. Disso, convergirá o sentido original que conduz o mistério da evolução de que sejamos linha essencial e o final de um percurso inevitável.

(Ilustração: Combate entre o Carnaval e a Quaresma, de Pieter Bueguel, o Velho).


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Mundos à parte


Isso desses universos de um a um, de pessoa a pessoa, de que ninguém, a não ser o próprio, dá de conta, quando possível da distância infinita entre duas criaturas, espaços em movimento no decorrer das vidas, astros da magnitude que são. Verdadeiras civilizações independentes moram no mistério desses detentores da presença que circulam nas ruas, se tocam, se veem, se olham e passam uns pelos outros quais seres desconhecidos até de si mesmos. Trocam palavras, gestos, sentimentos, farpas, mas entes individuais alcançáveis, talvez senhores dos instantes de amor. Quiséssemos saber mais, nem de nós ainda sabemos, contudo.

Vazios imensos à procura da luz na Consciência, tais almas penadas que vagam soltas numa liberdade inexplorada, pouco utilizada no sentido da certeza plena de conquistar os encantos que elas significam, às vezes só no horizonte imaginam lá um tempo de percepção suficiente a desvendar todo mistério que representam e ser sua essência.

Longos intervalos, percursos inimaginados, preenchem neles a carga dos dias em transição. Deixam margem a roteiros nítidos de certezas, enquanto, noutras ocasiões, apenas desistem de ver e adormecem à sombra do passado, vítimas de saudades incontáveis, doídas, fervorosas. Muitos, milhares deles, transitam pelos domínios da imaginação, que ocupa o território da mente e fervilha à busca da compreensão.

Nisto, a vontade imensa de solucionar o drama das existências e desvendar de tudo o enigma da felicidade tão sonhada. Deuses por certo inconscientes da grandeza que carregam no âmago, fogem dos seus altares e mergulham na escuridão dos instintos, fazem guerras, destroem semelhantes, amargam o furor da dúvida que lhes ferve o coração, isto diante do eterno que os domina todo passo.

Face a tanto, em carência de uma resposta consistente que acalme de vez o fome da iluminação, os céus os abriga no gesto dos dias a permanecer no tempo e permite que seja dessa maneira o roteiro das eras que insistem continuar no andamento da tela dos destinos.  

sábado, 11 de novembro de 2023

O encontro

 

Das certezas, em face do sonho constante de felicidade, harmonia e paz, existirá o encontro. Estudos indicam a necessidade atual de buscar, acima de tudo, o instante da realização do Ser. Isto resume todas as filosofias de todo tempo. A sede inextinguível da perfeição. A ânsia contínua de um propósito. O desejo da identificação definitiva conosco próprios. Haja o que houve, seremos isto, o sentido desta concretização dos sonhos bons em nós mesmos.

A vida não é uma roda perpétua de ilusões, mas um contato constante com o concreto, tanto em suas formas materiais quanto espirituais, Czeslaw Milosz.

O senso comum, no entanto, parece guardar de si o vínculo eterno que o permite viver e transcender o limbo aparente deste vasto mundo. Quando, porém, cresce a dor de existir sob a perspectiva de vencer este reino daqui do Chão, nessa hora vem o prenúncio dos dias melhores, equilibrados quais a mãe Natureza em volta. Sob o peso das imposições da matéria, o ser que o somos investe, pois, na possibilidade do Infinito, que traz o mito do herói ao nosso desempenho, invés do puro e simples prazer do imediato e do frívolo desaparecimento fortuito.

No decorrer das tantas vidas, com isso os humanos percorrem o trilho da libertação dito pelos santos, sábios e místicos, motivo essencial que nos indica a que viemos e a coerência das histórias vividas aos olhos do Universo. O mínimo que seja de percepção já oferece meios de aceitar a existência e aperfeiçoar as suas escolhas que trazem respostas à interrogação. Bem assim, acalmar o instinto e dominar o segredo que transportamos desde sempre aonde quer que vá e quanto ame as condições e expectativas. Na sequência natural desse exercício da libertação, ao momento exato, virá o encontro consigo e com a infinitude que transportamos na alma sem ainda de todo identificar.

(Ilustração: O triunfo da morte, de Pieter Brueguel o Velho).

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Histórias do Tatu (comentário de Vânia Fernandes)


O livro Histórias do Tatu, de autoria de Emerson Monteiro, traz relatos de sua vivência na fazenda onde nasceu, momentos com seus pais, seus avós (pessoas que deveriam durar eternamente em nossas vidas) e sua ama-seca a qual o escritor descreve com imenso apreço e respeito que sente aos cuidados dado por esta senhora ao mesmo e aos seus irmãos.  Assim como descreve algumas experiências da sua vida adulta, encantos e desencantos da sua vida na cidade grande, onde a existência na fazenda vem a ser apenas uma fagulha de lembranças quase apagadas pela caminhada que esse ser outrora registra em cada linha.  A simplicidade na escrita e o zelo em escrever cada detalhe vivenciado na sua infância e adolescência registra, por si só, como esses momentos vivenciados permanecem inquietantes na sua memória e no seu coração, Emerson Monteiro escreve com a delicadeza de quem vivencia a narrativa de cada episódio que retrata os seus momentos na fazenda onde viveu os sonhos e  aventuras de uma criança interiorana com a inocência de quem olha para o horizonte e se pergunta se o mundo acaba ali ou vai além do horizonte. De quem esculpi seus sonhos nas linguagens dos adultos, quem espera o alvorecer para ver a vida se renovar ao amanhecer. Com simplicidade e nostalgia, Emerson Monteiro descreve de forma intensa as peripécias de crianças, as duras aprendizagens no sertão do Ceará, assim como a luta e o valor da amizade que são retratadas com uma riqueza de detalhes que faz o leitor mergulhar em cada história e época vivenciada pelos personagens descritos no livro; só quem vivenciou dias da infância com visitas no campo, sabe a simplicidade e a riqueza e quão encantos que esses momentos trazem. Dos movimentos e agitação na época da moagem da cana no engenho do seu avô ao cheiro e o sabor daqueles dias ficaram lembranças, algumas marcantes outras nem tanto, no entanto cheias de aprendizagem. O livro registra um pouco de rivalidade entre famílias, situação comum em famílias patriarcais, seca, fé, estação chuvosa, memórias e as mudanças e as voltas que a vida dá, estampam assim alguns dos momentos registrados nesse livro o qual registra um pouco da simplicidade desse autor...

O Evangelho de Hipólito

Acho que devido ao afã habitual de encontrar novidades literárias pelos cantos deste mundo, certa noite sonhei com livros, o que narro, agora, aos que leem estas páginas.

Em gesto de compreensão fácil para os que gostam de revirar estantes, entrara numa farta livraria, passando a circular entre gôndolas e prateleiras, na ânsia inesgotável de localizar autores raros e obras fora de mercado, atitude mineradora e até neurótica, dos que esperam descobrir a pedra mágica do livro perfeito, bem ao gosto dos ratos de livraria. Pé ante pé, olhos alertas, eu refazia o mesmo percurso no exame detalhado de lombos e capas, repetido vezes infinitas.

Foi o tempo do sonho mais do que suficiente a separar alguns exemplares, quais peixes melhores da rede de arrasto imaginária. Daí, segui ao caixa.

O funcionário que atendia junto da máquina registradora conferiu os títulos escolhidos, indagando sem cerimônia:

- Por que vai deixando de lado o melhor que temos no estoque?

Curiosidade despertada e logo veio o interesse de saber qual essa tal preciosidade que ficara atrás. Nisto, o mesmo senhor se apressa em indicar uma encadernação modesta, já amarelada, próxima dali, onde li de letras graúdas o título O Evangelho de Hipólito.

Visto o acontecido, resolvo mudar de opinião, substituindo algumas das preferências e adquirindo também aquele livro. Depois, saio da loja na deriva de outros sonhos.

Pela manhã, desperto, recordei com clareza de detalhes tudo o que acima transmiti. Porém algo me intrigava: O Evangelho de Hipólito; nunca antes conhecera obra com esse teor. Sei dos quatro evangelistas, Mateus, Marcos, Lucas e João. Registram-se acréscimos históricos nos evangelhos ditos apócrifos, calculados na casa dos cinquenta. (Seria um deles o de Hipólito?). 

E o tempo passou nos compromissos da rotina, onde cada dia se basta às suas preocupações. Quando, em noite posterior, ao dirigir uma reunião, meus olhos se detiveram no livro sobre a mesa, O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. Acendeu-me na lembrança o episódio do sonho. Então interpretei a charada e sintonizei que fora esse o livro que manuseara naquela livraria, naquela sonho.

Pois só nessa hora liguei os significados de Allan Kardec ser o pseudônimo usado pelo professor Hyppolyte Léon Denizard Rivail, nome que adotara no compromisso de codificar a Doutrina dos Espíritos, missão recebida do Espírito da Verdade, conforme assegurara no decorrer dos seus escritos.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Condição humana


A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana.
Albert Camus

Essa prisão no tempo vezes sem conta deixa margem imensa de buscar aqui um caminho entre as enxurradas que, velozes, passam aos nossos pés, na.luta insana da gente com a gente mesma. Nem de longe haver alternativa senão aceitar a tal condição inarredável sob que nos vemos, neste marasmo de saudades e apreensões. Um a um, seres individuais na ânsia de chegar adiante, nalgum lugar de si, face aos crepúsculos em ação permanente, e nisso a vontade insana de achar a saída que seja a algum lugar além desse que nos comprime e escorre pelos dedos, e abre o senso das soturnas perguntas ainda sem resposta.

Nunca haverá de se dizer que o Ser inexiste, porquanto pulula dentro de todos a força descomunal de existir sob pena de um limbo que não existirá, jamais. Enquanto folhas desse destino inexorável, as luzes dos astros e o movimento dos dias transcorrem sobre nós, numa voragem assustadora e definitiva. Presas de alguma ficção mais que real, sopesamos os laços que comprimem nossas veias, de tocar em frente o barco que somos e vivemos nas suas entranhas do mistério.

Tal seja a vagar nesse mar de lembranças a que damos vida em cada fôlego, qual que sobrevivendo face ao impulso dos momentos. Entes invisíveis veem na gente tais espelhos e personagens insólitos, nascidos da distância dagora com a Eternidade; fragmentos que resistem aos combates do desparecimento e da continuidade. Assim, meros sujeitos das sortes e expectativas, palmilhamos os próprios passos, autores do Infinito que habita o coração de todos. O amor diz: Eu sou tudo. A sabedoria diz: Eu sou nada. Entre os dois, minha vida flui. Sri Nisargadatta Maharaj

Quantas vezes, ouvimos as vozes da humana condição e persistimos em querer saber um tanto mais de que sejam as portas do abismo das ausências que nunca deixarão de caminhar conosco às bordas da imortalidade sem limite?!

(Ilustração: A condição humana, de Marcos Jorge).

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Entre a teoria e a prática

              

Faixa estreita por demais daquilo que vem aos pensamentos e se transforma na matéria-prima do Destino. Nós, quais instrumentos da prática inevitável do que acontece aos nossos olhos, por vezes sem que possamos controlar ou evitar. Essa faixa quase imperceptível do tempo em nós, que nem chega e já desaparece nas fogueiras dos momentos, e nos tornamos, vezes sem conta, meros apreciadores das ações desse invisível, inderrogável, fruto de autor do quanto existe e dele somos parceiros, nas sombras das nossas interpretações. O que é certo, agimos lado a lado com as hostes que levam tudo adiante sob suas atitudes exatas de fazer e acontecer.

Passássemos turnos sucessivos a aprimorar a nossa participação nessas movimentações dentro e fora da gente, e restaria margem nebulosa a dizer do que fomos autores ou só simples expectadores. Mesmo de tal modo, primamos a identificar as reais condições de ser e viver individualmente, vaidosos parceiros exclusivos da presença humana junto a isto.

Eis papel crucial a defender, qual seja a urgência que dispomos de exercitar a capacidade individual de estar aqui e possuir uma inteligência rodeada de sentimentos e emoções a determinar a que vimos e, quem sabe?, até onde chegaremos algum dia. Ninguém foge de si; há nisso uma tónica irreparável, uma sentença primordial. Em seguida, a pergunta fundamental, qual seja a missão de toda pessoa? O acervo das questões essenciais a responder depende, pois, das nossas ações efetivas, além da teoria do intelecto, porém isto que bem determina a paz da consciência de um ao outro. São muitas as respostas, na proporção de todos e suas qualidades.

Enquanto isto, sobreviver às contradições do exercício daqui do Chão, das responsabilidades a braços (.. cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo, John Donne), vindo disto o princípio da participação coletiva à medida em que evoluímos passo a passo.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

As sombras da noite


Ao longe, o latido insistente de um cão qual quem grita aos astros mensagem desconhecida, e me conformo em apenas ouvir e presenciar o escuro da noite no fulgor dos céus e suas estrelas distantes. Hora adequada a relembrar o que passou; passou e permanece preso nos grilhões das horas que não mais existem. E uma mera escuridão toma conta de tudo em volta. Os tempos largados pelas calçadas numa paragem qualquer, onde circulam os derradeiros noctívagos e os sons lamurientos do que foi nos restos inúteis dos dias e na espera de outros momentos. Querer reencontrar as ocasiões e nem de longe qualquer nova oportunidade de aquilo regressar, das marcas dos prazeres mortos que, no entanto, fixam residência nos mourões da solidão das criaturas humanas.

Isto, as nuvens cinzas que persistem dizer dessas vezes em que, de tanto amar, a gente esquece de que tudo também passaria, mesmo que fruto de langores e carícias jamais imaginadas. Tudo, tudo, enfim, desfeito pela cinza do Tempo que devora o que há tão pouco realizou com tanto gosto. E por dentro, as pessoas e suas garras de ilusão, formas neutras de sentir o espaço que escorreu pelas veias e, nesta hora, fustiga de dor o coração. Lerdos instantes que só depois viram saudade atroz a confluir nos rios de amanhã.

Enquanto agora persistem os sons estridentes dos bichos noturnos a vadiar pelos pastos em volta, na alma desses seres adormecidos, quais bichos entregues à própria sorte. Fazem de si meros instrumentos de lassidão e dúvida, objetos em movimento nas esquinas deste mundo. Vento frio repisa as árvores silenciosas e segue rumo ao pouso derradeiro dos fulgores que descem das alturas e acalmam docemente os corpos abandonados às poucas luzes dos sombrios recantos, nas cidades esquecidas.

Só então dar-se conta de que outro dia virá ao sumir das réstias amarelecidas, e que sempre haverá o senso de nunca reconhecer, no dia, os gemidos deixados nas mesmas noites aonde seguem os dramas de vidas inteiras na busca à claridade do Sol.

(Ilustração: Noite estrelada sobre o Ródano, de Vincent van Gogh).

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Quantas histórias


Inícios da década de 70, quando vivi na Bahia, em Salvador, e cursei Comunicação (com habilitação em Jornalismo), na Escola de Biblioteconomia e Comunicação, da Universidade Federal. Era o representante dos estudantes no Departamento de Jornalismo.

Uma tarde, quando menos esperávamos, eis que se nos depara Luiz Gonzaga Júnior (Gonzaguinha). Isto numa época político ultra vigiada, sem o mínimo de flexibilização cultural, em que havia censura de tudo quanto era lado. Vimos o artista subir as escadas do edifício e logo o reconhecemos. Eram diversas as salas, porém numa delas cabia mais alunos, e foi exatamente nesta que resolvi convidar Gonzaguinha a falar às turmas, que compareceram em massa naquele momento inesperado.

Fiz rápida organização, expliquei os objetivos daquela atividade e transferimos a palavra ao convidado que, em fala demorada, descreveu o quadro cultural brasileiro da ocasião. Os professores, inclusive o diretor da unidade, fizeram de conta que tudo aquilo estivesse em nossas mãos, instante esse que marcou profundamente a todos nós.

Eu me dedicava mais à disciplina de Fotojornalismo, tendo sempre comigo uma câmera. Realizei, então, algumas fotos, as quais, possivelmente, ainda existam nos acervos que me acompanham.

Lembro bem, e chego a reviver com emoção, aquele momento raro, sob o crivo da exceção nacional. Gonzaga Junior significava dos raros compositores que produziam à busca de liberdade de expressão, dentre eles, Ivan Lins, Chico Buarque, Antônio Marcos, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil, Milton Nascimento e o Clube da Esquina, Jorge Mautner, Egberto Gismonti, Taiguara, Walter Smetak, etc. Tempos bicudos, de sonhos e clandestinidade, que deixaram marcas inesquecíveis na alma da gente, e hoje representam fase de luta, incerteza, esperança... Isso numa Bahia de muitas novidades e tanto movimento libertário.

Lá adiante, depois de voltar ao Cariri, uma manhã, ao chegar no Banco, me deparo com Gonzaguinha sendo atendido num dos caixas. A ele me encaminho, quando conversamos um pouco e eu lhe recordei daquela vez de Salvador, naquele instante de audácia e afoiteza, a risco doutras consequências.

Hoje recebi de meu amigo Edmar Dino, a música Estradas, desse valioso compositor e me veio à memória isso que aqui pude narrar, sentindo saudade e certeza do quanto existem das tantas histórias a circular na eternidade das memórias do nosso coração.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Essa tal de realidade


O que fazem dela em novas versões?! Todos têm a sua própria, que nem sempre coincidem. São frutos de extrema necessidade que afirmam de só estarem vivos, vagando pela face do Planeta. Assim, as mídias, os versos e as miragens. Criaturas fantasmagóricas que andam soltas pelos ares desse tempo tão aberto às horas, que dele ninguém mais pergunta do senso e do que seja talvez nalguma ocasião. Sei que há mil amores, há consumo, festas, viagens, permissões e limites à toa no passar dos firmamentos. A realidade individual que se repete nas calçadas e nos alpendres. Chega e some à medida dos desejos de forças abstratas que a determinam e utilizam dela ao sabor das pretensões.

De longe é de admirar o que antes foi nos tempos das caravelas, tudo longe, de meses depois quando navios buscavam os portos e descarregam suas especiarias. Agora existe um clamor de verdade nas longas histórias imediatas que são contadas, largadas nesse mundo afora, numa espécie de roteiro fabricado com antecedência nos gabinetes, a fim de suprir as urgentes determinações. Meio parecido com roupas que vestem e despem, deixadas ao relento de novas aventuras que sejam melhores e convenientes.

Nisso, a fome de verdade campeia nos ares à medida em que outras urgências interponham outras atitudes, e as multidões vão acima e abaixo, tais barcos em mares convulsos.

Nada melhor, no entanto, do que ensinam as escolas místicas, de buscar dentro de si a essência do que seja a todo momento, na hora presente, o mistério entre o que passou e o que há de vir, isto nas malhas das consciências individuais, matrizes da longa jornada que virá logo então. Enquanto de fora os dias acontecem e deixam as marcas profundas da impossibilidade face aos destinos em jogo forjado pelos pequenos grupos dominantes, nas dobras das criaturas, lá no íntimo da compreensão, onde habitam séculos de procura em forma de resposta que chega ao instante certo na plenitude e na Paz.

(Ilustração: O desenho extraviado, de Hieronymus Bosch).