A quantos deslizam afoitos na mesma superfície, quais aves de rapina da própria espécie nos longos trechos de histórias sem fim atiradas aos momentos e deles de novo recolhidas. Aspectos infiéis dos destinos; sonhos, imagens apressadas, conquanto jamais revistas outras vezes, sabem que deles inverto a fisionomia, deixando atrás de si meros fantasmas do que antes poderia ter sido.
Daí os dramas sucessivos das tantas conquistas territoriais construídas ao acaso da sorte, esquecidas que foram no espaço entre o imaginário e a fria realidade. Nem um, nem outra, no entanto. Perante os sóis, as dúbias fantasias, os mesmos trastes de supostas presenças logo agora invertidas a título de embriaguez humana. Um ser assim tão poderoso bem que, lá no tempo, enganaria até os deuses, a exemplo de Narciso, vítima das imagens com que contemplara no lago impossíveis verdades. Destarte, mero fragmento das superfícies acesas, ver-nos-iam a qualquer instante iguais nas lâminas de aço das consciências, abandonadas num simples olhar de vaidade.
Que outra senão essa embriaguez das ficções tornadas visagens de noites perdidas, na ânsia de achar na alma a liberdade que já carregam consigo e não o sabem, porém. E nisso recorrem encontrar da presença o ser que haveria de existir dalgum modo nalgum lugar. Deste poder inigualável de inverter verdade nas ilusões individuais, dali nasceriam certa feita os universos do egoísmo, das interpretações equivocadas e dos dramas.
Ávidos de desvendar o mistério das horas, eles tão só entregam da essência a melhor parte e se deixam arrastar ao mundo abstrato daquilo que buscam. Daí saem outros, tais fantoches abismados, maquiados, estarrecidos. E os séculos superam a ficção, se deixam mergulhar tal nos oceanos infinitos, pardacentas dúvidas dos passados transcorridos, esquecidos, abandonados aos disfarces que vêm buscar e neles perdem o senso.
Isto longe que seja de haver sucumbido à inversão da figura que tivesse consigo, nessa hora substituem o sentido que lhes trouxe aqui e sucumbem na solidão Passam a percorrer o trilho da indiferença, tornam-se exibicionistas e fogem das verdades originais.
(Ilustração: Narciso, de Caravaggio).