quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O domador de cavalos


Em fazenda humilde das remotas planícies do Cáucaso, na velha Rússia, exposta aos riscos de uma vida afastada e rude, habitava família de pastores, pai, mãe e quatro filhos, três mulheres e apenas um homem, a lutar quais guerreiros para descobrir formas de sobreviver. Nessa peleja, mantinham rebanhos de ovelhas e cultivavam o solo.

Um dia, chegou à região manada de cavalos selvagens, animais imprevisíveis que surgiam do mundo estranho das florestas e desapareciam do jeito que chegaram, livres e sem dono, soltos pelas vastidões oceânicas, fugindo da aproximação de qualquer ente humano.

Corajoso, no entanto, o filho lançou-se na busca de prender esses bichos bravios, indo conseguir depois de muitos esforços, detendo-os ao cercado existente junto da casa onde moravam.

- Rapaz de sorte o teu filho, ainda na flor da idade e já adquiriu riqueza - comentou vizinho, a observar, na companhia do pai, as atividades do moço no curral a domar o rebanho que espanava impaciente pelos gritos e chicotadas do trabalho bem difícil.

- Isso é o que hoje a gente pode ver - respondeu pausado e cauteloso o pai, que também admirava as iniciativas do filho querendo amansar os cavalos inquietos. – Pode ser, ou não, essa boa sorte dele - completou.

Passadas algumas semanas, quando apareciam os frutos iniciais da custosa tarefa, o jovem se viu arrebatado pela fúria de um dos animais, que lhe jogou ao chão, indo, na queda violenta fraturar com gravidade o turno superior de uma das pernas, prostrando-se ao leito longas semanas.

- Lembro agora o que disseste daquela vez - recordou o vizinho, enquanto visitava o doente e a família abalada pelo acontecimento, acrescentando: - Na verdade, o que poderia ser boa fortuna tornou-se perda para teu filho, meu amigo. Com isso, também sofro contigo!

Sem muitas palavras a dizer, o pai, tristonho, respondeu: - Não é assim que analiso as circunstâncias, não. O que sucedeu pode ser de bom alvitre, todavia.

Entrementes, alguns meses transcorridos e sérios conflitos explodiram na fronteira, com povos em litígio motivando guerra descomunal, à qual foram levados aqueles viventes do campo russo.

O sossego do lugar amargou período brutal. Gastos imensos. Tributos pesados. Os jovens engajaram nas tropas, dentre eles os amigos do domador de cavalos, que persistiu ainda meses inválido, face do acidente, a ponto de só ele de sua geração ficar de fora das escaramuças.

Não tardou e, de novo, se ouviu, entre os dois vizinhos, outras considerações quanto ao jovem: - Ah! Disseram bem tuas palavras de que aquilo tudo traria a sorte do teu filho.

Ensimesmado, olhos acesos e semblante pensativo, o pai permaneceu envolvo no silêncio, sem externar o que lhe dominava o coração, deixando o próprio tempo contar ao amigo da sabedoria infinita do Destino.        

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Misérias da governabilidade


Isso também aconteceu no México dos tempos das conciliações após o caos reinante na Revolução, inícios do século XX. Eram tantas as tiras de comando entre clãs de mais diversos matizes, tropas e jagunços, bandoleiros dominando feudos, armas espalhadas por tudo quanto lugar fosse, tropeiros confederados, facções, gangues e partidos, que alternativa inexistiu além de chamar aquele mundaréu desencontrado à volta das mesas de negociação e formar um pacto sob a égide da famigerada governabilidade, cortejada de tantos e execrada de muitos.

Ali trouxeram cabras, fuzis, rifles e balas, desde Emiliano Zapata, Pancho Villa, Álvaro Obregón a Venustiano Carranza, Victoriano Huerta, Félix Diáz, chefes esses comparáveis, nos termos de Brasil e de práticas, a Jesuíno Brilhante, Sinhô Pereira, Floro Bartolomeu da Costa, Sabino Gomes, Virgulino Pereira da Silva, Corisco o Diabo Louro, dentre outros líderes das hostes nordestinos, isto mudando o que deva ser mudado, sem, no entanto, avaliar os desdobramentos posteriores por vezes de tristes memórias. Contudo, nas primeiras tratativas de organização ali estavam os principais nomes cujos donos antes agiam soltos durante a anarquia inicial daquela sociedade.

Isso falo a propósito de métodos políticos que visam conciliar interesses políticos variados e circunstanciais, com sentido de estruturar governos que conciliem populações, no decorrer da história humana. Ocorrências diversas há de se obter noutros processos históricos, quais Revolução Inglesa, ancestral das similares no Ocidente, Unificação Italiana, finais do feudalismo japonês, Revolução de 30, em nosso País, o que, de certa forma, lembra o Pacto dos Coronéis, no Cariri de 11 de outubro de 1911.
Certa feita, ao tempo quando assessorava D. Violeta Arraes, na Universidade Regional do Cariri, e ela retornava de Brasília, onde estivera com o então presidente Fernando Henrique Cardoso, me disse uma frase que ouvira do Primeiro Magistrado da nação:

- Violeta, não existe poder. E, sim, fatias de poder.

Restam, deste modo, algumas reflexões oportunas quanto a essa arte célebre  de engolir sapos, como definem a ciência da Administração, que preços pagar em relação ao modo de governar povos, neste mundo de meu Deus e dos homens?!

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O ferreiro de Barcelona


As trevas da Inquisição lastravam a Europa de terror e mártires. A Idade Média anulara os anseios religiosos da grande população através de cruel intolerância, solapando liberdades civis qual peste sulfurosa. Durante o século XIII, se cometeram ignomínias e atrocidades, ações que iam do confisco de bens a execuções sumárias, torturas e castigos inimagináveis.

No auge disso tudo, na cidade espanhola de Barcelona existia ferreiro afamado que ganhava a preferência dos executores na confecção de instrumentos requintados adotados pela repressão impiedosa. Suas algemas mereceriam mais respeito face ao primoroso zelo com que as manufaturava, sem existir quem pudesse superar na qualidade. Atendia com sobras as encomendas que viessem. De suas produções jamais alguém escapara. Um profissional e tanto o ferreiro daquelas peças de trancar os perseguidos da oligarquia religiosa que avassalava esse período trágico, no combate a idéias renovadoras e no escarmento das vítimas.

Pois bem, esse homem até se orgulhava disso: Ninguém se livraria das suas tenazes; ninguém, quando preso, fugiria dos atrozes mecanismos. O Infinito, porém, justo e sobranceiro, guarda lá surpresas, na ronda dos aparentes ditames da monotonia do tempo.

Dias e noites passavam céleres, até que, durante festa de insistentes brindes, perante vasta multidão, o ferreiro, animado além do tanto nos assuntos do vinho, excedeu-se em palavras, deixando vazar segredos inconfessáveis aos quais chegara por via do prestígio adquirido junto à cúpula do Santo Ofício. Na carraspana, revelara notícias que determinariam seu próximo destino, bas armadilhas da língua.

Coisa pior não poderia acontecer. Cairia desse jeito nas garras mortíferas do mesmo tribunal a quem servira com esmero. A equipe dos doentes espirituais, por meio de julgamento sumário, cuidou da sua condenação, ficando desfeita a velha aliança de ferreiro e cliente.

Após o pesadelo das primeiras horas, ele despertou desnudo em solo úmido de infecta masmorra, colado de frio a pedras ásperas. Sentiu preso nos pulsos pelos crivos de metal enegrecido. Entre dormido e acordado, buscou esperanças no manuseio profissional dos mecanismos que o retinham junto da tosca parede. 

Recobrou lentamente os sentidos para perceber (qual surpresa desagradável!) que se via atravancado nos braços e pernas por dois pares das algemas que produzira na quase na véspera da infausta comemoração onde perdera a liberdade, sentenciado ao merecimento torpe que antes auxiliava outros a experimentar.
Em seguida e desencantado, se rendeu a esperar o improvável, como ocorre nas situações semelhantes, quando na medida com que medirmos medir-nos-á também a nós.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Os instrumentos de controle


Imaginar viver hoje sem a televisão eis  hipótese imprevista diante das normas atuais do controle social, enquanto os humanoides avançaram na preservação da espécie através dos elementos que criaram nas ruas e praças, a corrida esplendorosa da sobrevivência. Correm, correm para chegar a lugar algum, nessa faina incessante. Que outros meios, pois, haveria na igual finalidade de domar as feras da selva de cimento e ferro decorrente não fossem os tais instrumentos de administrações públicas em movimento?!

Ainda assim existem outros falares desse carma coletivo, nomes cheios de outras interpretações. Indiferença, necessidade, desencanto. Quando o tempo útil das pessoas se resume aos poucos anos da arrecadação dos pecúlios que irão lhes garantir os derradeiros anos lá na idade provecta. Enquanto as novas gerações pouco oferecem de criativo além de repercutir o enredo nesse drama, isso denota mudança nas expectativas, de recriar a vida noutro formato menos trágico, mais religioso, menos desesperador, nessa corrida estoica dos dias melhores que nada serão senão ilusão, caso sigam na direção grosseira de alimentar perdidas ausências dos valores da real prosperidade.

Há de haver esperança melhor, que desfrutar na prática transformadora da existência dos seres neste chão. O mal-estar dessa civilização desencantada tem, por isso, dias contados, fruto da saturação a que se chegou, que estabelece feitos únicos de interpretações no processo desumano. Viver a que destina ninguém quase sabe responder.

Atitude compatível ao grau do medo e da infelicidade servirá de tratamento ao vírus de intranquilidade que assola as instituições. Cheias de argumento derrotistas, apenas dão andamento ao paradoxo de falta de saída, presas ao consumo exacerbado, ao lucro da ganância, encobertas as versões falsas das respostas ao desafio coletivo. Rotundo limite já se desenha no sonho das criaturas. A razão pede resposta compatível ao tamanho da dor que fincou pés de raízes profundas no espaço de onde chegaria maturidade, hora estratégica de vencer a tristeza. Algo nascerá em horizontes de festa na consciência particular dos indivíduos, mergulho interior de largas proporções inevitáveis de vitória certa. 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A lebre desprendida


No registro das lendas que contam vidas passadas do Buda existe a que conta sobre lebre jovem que habitava as encostas de afastada montanha, tendo por amigos uma lontra, um macaco e um chacal.

Ela se alimentava de ervas, folhas e frutos e tomava como prática viver sem prejudicar quem quer que fosse. Entre os outros animais, ministrava ensinamentos de como distinguir o mal do bem, passando suas aulas através de lições as quais transmitia com prazer.

No transcorrer do tempo, aproximou-se o dia da festa maior do lugar, época de receber visitantes que peregrinavam pelas matas. De acordo com os costumes, preparariam oferendas a esses destinadas, recolhidas nos encantos da natureza.

Enquanto outros bichos dispunham dos meios de elaborar brindes valiosos, a lebre, contudo, defrontava pobreza extrema, a dispor, na ocasião, de ervas e coisas de somenos importância a oferecer aos que visitassem a mata.

Indagada pelos companheiros do jeito que demonstraria sua gratidão e respeito, não mediu palavras e disse:

- Caso alguém me procure, não oferecerei ervas comuns, de fácil localização. Quero possuir dote precioso. Nisso, a mim mesma, meu corpo, valor único que possuo, darei de oferenda, pois ninguém retornará sem a devida atenção de minha parte.

Chegado o grande dia, pessoas vindas dos mais afastados lugares adentraram as matas para conhecer de perto seus moradores, um desses peregrinos sendo o próprio Sakka, a personalidade suprema do Poder, que vê os pensamentos que fervilham as consciências. Veio investido na figura de um simples brâmane e de pronto se dirigiu à toca da lebre.

Ao vê-lo, esta, ágil e prestativa, depressa falou ao visitante:

- Fizeste o melhor vindo à minha morada, pois quem me visitasse neste dia receberá o que de mais precioso possuo, e é isto te ofereço na linda festa de todos nós.

Olhos atentos, o brâmane observava os raros e pobres trastes que existiam na casa simples, interrogando a que a lebre se referia nas suas palavras acolhedoras. Daí, ouviu o que ainda acrescentava:

- O dom de que falo, e que pretendo oferecer do íntimo coração, sou eu mesma, meu corpo vivo que aqui vês, e que mereces inteiro, pela nobreza de tua dedicação ao Bem nas tuas ações puras e austeras. Por isso, junta gravetos para acender o fogo e preparar o teu repasto.

Mediante oferta tão decidida, o brâmane se movimentou, fazendo crepitar uma fogueira cujas chamas iluminaram o escuro da folhagem.

Em seguida, num gesto impávido, ligeiro, a lebre lançou-se no meio das labaredas crepitantes, como quem se atira no seio de águas profundas, atendendo a todos os anseios e dores da existência que vivera até então. O brâmane nem teve oportunidade para impedir a intenção contundente da sincera devota.  

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uns privilegiados


Essas gerações recentes são elas privilegiadas de viver uma era plena de tanta alternativa de beleza transmitida aos quatro cantos da Terra pelos equipamentos frutos da pesquisa eletrônica. Tantos meios ricos de trazer adiante as riquezas culturais nos livros, filmes, artes plásticas, fotografias, músicas, etc., etc. Quanta beleza chega toda vez aos diferentes rincões desse chão, independentes de línguas, distâncias, quadrantes. A televisão, o computador, a telefonia, os meios de comunicação de massa, usinas de produção de inquestionável qualidade no que elabora e expande com a eletricidade, os transportes e as instituições. E quanta democracia de possibilidades, unidades formadas de artistas geniais, à velocidade da luz.

Num só invólucro chegam The Beatles, Bach, Haendel, Sartre, Kafka, João Gilberto, Pink Floyd, Renoir, Virgílio, Platão, Tornatore, Lao Tsé, Jesus, Buda, Turguniev, Maupassant, Tchecov, Clara Nunes, infinitos heróis da sensibilidade cultural, religiosa, artística, oferecidos de modo limpo, refinado, elementos do bom gosto maior, nas lojas da esquina, esperança inédita nos tempos lá detrás.

O jovem contemporâneo transita os corredores da emoção elevada quais andarilhos das estradas de antigamente, olhos postos no Sol, na Lua e nas Estrelas, menestréis da gama infinita dos padrões atuais, objetos de rotina em que se transformaram as produções das gerações desaparecidas, no entanto sobrevivendo nos sonhos diários quais seres eternos habitantes do presente infinito.

Só de pensar nisso dá vertigem imaginar aonde chegaram, agentes da viagem planetária de um tempo exclusivo. Isso pede o mínimo de reconhecimento nas formas da bondade. Querer que outros também usufruam dessa fortuna que criaram os ancestrais. Trabalhar as malhas do coração e partilhar emoções positivas, nas bênçãos dessa alegria da beleza coletiva, rainha das oportunidades artísticas.

No mínimo, pois, isso, permitir que haja Paz neste mundo bonito, sendo irmão do irmão, feliz de herdar a orientação das boas práticas através do que constrói o que bem e nos alimenta sadios e animados.  

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Tiago Araripe


Somos amigos desde a década de 60, no auge dos movimentos que convulsionaram a cultura mundial, época da geração beat, hippies, rock, tropicalismo, psicodelismo, de tantas outras manifestações e reviravoltas que resultariam em profundas mudanças, que hoje empalideceram durante o atual momento da civilização de massa.

Líamos autores quais Jean-Paul Sartre, Hermann Hesse, Herbert Marcuse, Ray Brandbury, Erkine Caldwell, Louis Pauwels & Jacques Bergier, nomes que marcaram nossa formação de andarilhos e sonhadores. Viajamos nas asas da literatura de ficção, no cinema de autor e na música pop, pelas estrelas que fizeram a cabeça dos revolucionários daquele tempo de grandes definições. Adiante, os senhores hoje no poder ganhariam as batalhas da dominação, mas a luta seguirá através dos arautos da arte que insistem fomentar a Esperança.

Acompanhei o gosto de Tiago Araripe pelo violão e presenciei suas primeiras experiências de composição, algo nos moldes da criatividade diferente e rica que já observava nos seus textos plásticos inovadores. É bom escritor, herdeiro de valiosos autores das letras no Cariri, José de Figueiredo, o pai, e José de Figueiredo Filho.

Ainda na adolescência nos aproximamos. Ele viveu em Recife, quando, com o grupo Nuvem 33, participou da vanguarda artística pernambucana. Desde então, graças ao talento que bem lhe caracteriza, Tiago vem marcando presença na música brasileira. Trinta anos após sua participação no movimento Lira Paulistana e o lançamento de seu LP Cabelos de Sansão, o cantor e compositor cearense lança neste início de 2013 o Baião de Nós, um álbum que reúne composições feitas ao longo desse período e, principalmente após o relançamento de Cabelos de Sansão em CD, em 2008, pelo selo de Zeca Baleiro, o que o instigou a voltar a compor. Baião, maracatu, reggae e rock se misturam em Baião de Nós, que traz onze composições inéditas.

Lançado pela Candeeiro Records, com produção e participação especial de Zeca Baleiro, Baião de Nós foi gravado com uma banda montada especialmente para o projeto, formada por guitarra, baixo, bateria e percussão, além de inserções de teclados e sopros.

A sua voz doce e suave, que um dia Augusto de Campos comparou ao timbre dos trovadores provençais, é outra marca de Tiago Araripe.

No dia 09 de março, ele virá ao Cariri a fim de promover o lançamento do mais novo trabalho, através de espetáculo ora em fase de montagem.

Insistência


Era no tempo das chuvas. Fazia alguns meses que os dois noviços viajavam através das planuras exóticas da Índia. Desse jeito, cumpriam à risca os votos de piedade admitidos perante o Mestre. Para sobreviver, haveriam de esmolar no exercício da firme devoção. Conversar entre si e com os outros, quase nada; tão só austeridade, o imprescindível, nas horas de caminhada; leis de religião.

Uma manhã, quando chegavam às margens de um rio caudaloso, viram bela jovem querendo cruzar as águas tormentosas que desciam das montanhas, todavia sem coragem suficiente de realizar o propósito.

Perante aquilo, atencioso, um dos noviços se dispôs a prestar-lhe auxílio, carregando-a nos braços até a outra margem. De imediato, com isso mereceu do parceiro reprimenda cuidadosa, porquanto os preceitos restringiam aos monges maior aproximação do corpo feminino, analisava contrito e zeloso.

Vista a momentânea necessidade da moça, no entanto, o religioso insistira em ser útil, dispondo-se a levá-la consigo, fazendo-o apenas de maneira prudente, nos moldes das ações solidárias.
Vencida a correnteza, eles dois se despediram da jovem agradecida e seguiram a piedosa jornada de antes.

Horas depois daquela cena à beira d’água e o outro noviço, de calado que se mostrava, carrancudo retornou ao assunto de aproximar o corpo do das mulheres.

- Tu agiste de jeito equivocado – disse. - Um devoto cumpridor dos deveres jamais caberia no papel mundano que desempenhaste. Sabes bem que se torna impuro quem trabalha em desacordo com os cânones – externava indócil a indignação de horas atrás.

Absorto nas meditações de ofício, ouvia o devoto silencioso a censura, querendo, contudo, tirar por menos, e logo se justificava o tanto que conseguia. Disse haver laborado sem quaisquer intenções malévolas, além do que se protegera ao máximo das idéias pecaminosas. Nada de ruim acontecera consigo, portanto, no que pesasse os riscos previstos.

Volta e meia, o outro repisava a conversa:

- As oportunidades se apresentam no caminho a fim de podermos distinguir o que manda e o que não manda a Lei. Fiques, pois, sabendo que nunca deverias fazer como fizeste.

No que considerassem as reações cautelosas do acusado, repetiam-se admoestações...

Quase ao pôr-do-sol, de saco cheio com a impertinência do companheiro da estrada, o noviço resolveu cortar pelo tronco a história que ia longe demais.

- A jovem que transportei no rio saiu de minha cabeça naquela hora em que desceu dos meus braços – asseverou veemente. - De tua parte, porém, deu-se o contrário, e ainda agora vens com ela no pensamento. A prosseguir na insistência, vou deduzir o quanto desejarias tê-la estreitado em teu próprio corpo, creio eu – concluindo de todo a lição.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Fazendo Arte


Arte, o que é isso? Nos começos da sua formação em palavras, lá na língua latina, significou técnica, habilidade, atividade humana vinculada à beleza, objeto da comunicação de conteúdos ricos de emoção estética, ciência do belo, destinados a transmitir emoções, percepções, ideias, sempre na intenção de aprimorar a consciência das criaturas.

O gosto pela Arte representa, assim, a evolução espiritual no retrato fiel do que acontece no íntimo de cada pessoa, busca incessante de um mundo melhor, construção de circunstâncias favoráveis que permitam crescer e desenvolver a sociedade.

As primeiras manifestações da Arte, lá nos tempos primitivos, possuíam estreita ligação com as funções místicas de rituais mágicos, na intenção de descobrir os mistérios ainda fora do alcance do senso comum.

Hoje, a Arte cumpre seu objetivo principal de refinar o trato social na civilização, ampliando a sensibilidade até que reconheçam os níveis amplos e as dimensões elevadas acima da rotina imediata do interesse apenas material da história.

Uma ligação aproximada deste modo existe no âmbito da religiosidade e da cultura, que estabelece papel orientador da Arte, apoiando condições de aprimorar o espírito, na peleja por tempos melhores.

Cientes de tais conceitos, a Arte representa, pois, possibilidades infinitas do progresso individual rumo às estrelas, por meio da literatura, da pintura, música, fotografia, cinema, escultura, teatro, dança, artesanato, desenho e das outras artes que agora permitem os meios recentes da técnica e dos instrumentos da atualidade eletrônica.

Cabe, sobretudo aos artistas, desempenhar, com essenciais dedicação e trabalho, a missão importante de serem arautos da transformação realizadora do presente, interpretes deste sonho de felicidade, através da inspiração superior da Arte.   

A busca


Nervosos quais ponteiros de segundo, são sujeitos os atores de andar em círculo, longe de notar o conteúdo que representa no Universo. As lendas contam da busca incessante em demanda do Santo Graal, por exemplo. Os instrumentos utilizados, no entanto, significam as alternativas à mão, por vezes equivocadas, porém que levam ao endereço da revelação. Há caminhos externos que trazem ao interior. E caminhos interiores que constroem o exterior. Há sentidos que conduzem à essência de Si, enquanto outros arrastam às necessidades materiais externas.

Prova disso, a audição. Nem precisa conter, basta se concentrar no ouvir e mergulhar nas distâncias infinitas dos mistérios junto da Natureza. Hoje existem movimentos de bloquear essa infinita possibilidade através dos excessos de som eletrônico que invadem ruas e praças, em volta dos próprios ouvidos, face aos danos que acarretam, aparelhinhos eletrônicos de ruído constante, esquecidos usuários de ouvir a realidade interior.

O tato, este já pede objetos físicos no exercício das funções. Precisa de exterior a fim de acontecer. Trabalha mediante estímulos vindos de fora.

Isso com relação a dois dos cinco sentidos, quando existe classificação de acrescentar outro sentido, o equilíbrio, ou sentido sinestésico.

Esse o catálogo dos relacionamentos do Eu, que ocasiona a busca da Humanidade, desde seus primórdios. Tal Prometeu, indivíduos sobem a montanha levando consigo o rochedo pesado, até chegar ao alto e ver rolar a missão ao recomeço. No transcorrer do processo de tanger a pedra, valores compõem a cena, pois existirá o Ser em si no amadurecimento, quando, um belo dia, desvendará as razões principais da condição humana e encontrará a emoção verdadeira do Sentimento.

Causa de toda ação e motivo de toda filosofia, desvendará a trilha dos milênios, o código libertador das repetições. À medida que elabora as circunstâncias, aprende os passos da harmonia. Os buscadores encontrarão as palavras certas de modificar o panorama, utilizando os elementos disponíveis, os sentidos, a inteligência, a memória, o coração, a vida, numa perfeição inigualável dos recursos à disposição, provas suficientes da existência perene do Criador.    

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Contradições de contradição


Quero falar dessa mania que a gente tem de querer encobrir o Sol com peneira. Veem-se os menores abandonados rondando nas madrugadas, escondidos da penúria e do gelo da brisa que sopra cortante, e tome desculpa à consciência, lente exigente dentro da alma. Anciões jogados às calçadas da multidão indiferente, dormindo, ou embriagados de realidade; e calma, calma, que o leão é manso, e as autoridades competentes resolverão logo o caso dessas pessoas. Crianças em idade escolar, perto das filas das farmácias e lotéricas, de mãos estendidas, pedintes da injustiça social, e seleciona moedas menores, deixando caí-las nas mãos desenganadas, juntando migalhas que gastam nos salgados e doces, vazios alimentos de vazias soluções individuais.

Houve um tempo, quando falaram de Estado Novo, Prá Frente, Brasil, Diretas Já, Nova República, Brasil Grande, Povo no Poder, lemas assim, frases de efeito, mudança, renovação, socialismo, euforia generalizada nas instituições que revisariam seus quadros nas eleições. Quase tudo dorme a sono solto. Promessas vagas de sonhos ainda circulam as planícies das cabeças em festa democrática, saudades das revoluções verdadeiras.

O tropel desfila nos corredores dos palácios em forma de fantasmas de erros largados nas ruas da amargura, jovens presos, viciados em droga no pleno do vigor físico, idade cheia infinitas vezes na seiva da Civilização, vendidos ao trato da justiça dos homens, matéria prima de penitenciárias infectas, nesse mundo de fria inteligência tecnológica, sedentos de segurança inexistente nas malhas da Eternidade.

Olhos abertos aos painéis dessa fama, artistas da mídia efervescente, deuses do Olimpo da contemporaneidade, vagueiam soltos nas mesas dos diretores de televisão, bichos de cargas expostos à execração pública, devido aos pecados contra a família, no pino do horário nobre dessa máquina de fazer alienados.

Os desmandos da história criada pelos fabricantes de ilusões, mercados abertos da fome de valores que transformassem o desejo de construir as chances da igualdade para todos, cidadãos de olhos arregalados nas flores da agonia de viver e ser feliz, ao encalço das bocas de feras desconhecidas, cevadas em bolsas financeiras, famintos aplicadores na roleta da dominação industrializada.

Ah, contradições de contradição, paraísos artificiais na caminhada solitária de seres limitados ao tempo da curta duração dos dias, sem amor e vontade que acordem cedo e durmam tarde, peixes egoístas presos nas redes que trituram autores de obras imaginárias, amantes de si mesmos e projetos futuros da felicidade, na elaboração do Destino misterioso. Amanhã.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O peixinho dourado


Naquela manhã, o humilde pescador saiu cedo a procurar sustento, dele e da esposa. Os dois viviam na penúria. Moravam numa palhoça junto de bela praia, aonde o mar quase sempre trazia numerosos cardumes de peixes deliciosos. Dessa vez, porém, a facilidade não se repetia. Pescou horas e horas, sem nenhum resultado positivo. Quando quisera desistir, peixe dourado, de tamanho insignificante, veio preso nas malhas da rede que jogava. Muito pouco, no entanto, para suprir a fome do casal. Nisto, ao segurar entre os dedos o pequenino peixe, uma voz inesperada se fez ouvir:

- Meu bondoso pescador, deixe que eu permaneça vivo - as palavras saíam claras da boca do ser minúsculo. - Para nada sirvo pelo pouco que tenho. E, além do mais, posso ser mais útil vivendo, pois posso atender ao todo pedido que o senhor me fizer.

Aturdido com a inesperada ocorrência, o pobre pescador quis comprovar aquela promessa que ouvia. Muitas histórias dão notícia de coisas assim - ficou imaginando gênios e outras maravilhas, ao que deve haver uma razão de existir. E um tanto temeroso, de imediato retrucou:

- Peixinho, me disponho a examinar o que dizes. Por isso, primeiro, pedirei que quando eu chegar em casa encontre a mesa posta com pratos dos melhores sabores. Caso atenda ao pedido, devolverei a tua liberdade. Disse e fez prumo de voltar ao lar.

De longe, avistou sua mulher, eufórica, acenando da porta de casa, lhe vindo ao encontro. Dizia que um rico banquete os esperava na sala-de-jantar. Enquanto saboreava os manjares, o homem foi contando o que se passara. Daí, trataram logo de preparar novo pedido. Iriam morar no palácio mais bonito que houvesse na Terra.
Libertado o peixe, de acordo com a palavra, este passou a servir com fidelidade e constância ao pescador e à sua mulher, agora habitantes de um palácio de sonhos.

Na sequência do tempo, a mulher pretendeu desfrutar da riqueza de uma rainha poderosa, sendo nisso também atendida. Depois, quis ocupar o lugar de papa. O peixe, sem desobedecer, de novo correspondeu à reivindicação que lhe fora apresentada.

Para quem antes vivia na miséria, sob os cuidados daquele peixinho misterioso a existência deles se transformara num paraíso. Todo o tempo do mundo era pouco para aproveitar bem os inúmeros presentes recebidos. Notava-se nos dois até fastio pelo tanto de coisas que ganhavam do bom amigo.

Belo dia, a mulher chegou para o seu companheiro e lhe transmitiu mais outro dos seus desejos imaginosos. Dessa vez superaria em exigência todas as vezes anteriores, pois ela queria, vejam bem, ocupar a posição mais elevada que existe e desfrutar nada menos do que das funções supremas do Criador do Universo.

No início, boquiaberto o marido reagiu, pois, pelo equívoco do pedido, anteviu os resultados que sucederiam à soberba da esposa. Porém não reuniu forças suficientes de lhe contrariar, seguindo triste com o pedido em direção ao peixinho, no lugar habitual.

Chegou, esperou, esperou... Mas nada de peixe. Tão só o mar silencioso respondia aos seus insistentes chamados. Dessa vez, o pescador não voltaria mais a rever o servidor fiel. Cabisbaixo, sem planos, na tarde cinzenta daquele dia, retornou à mesma casinha modesta do início da história. Apesar de tudo, no entanto, provara do conceito antigo que diz: Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.   

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

O barraco apertado


A luz dos relâmpagos que entrava pelas frestas da taipa clareou-lhe também o juízo. Manhãzinha cedo e buscaria o velho cigano na procura de conselho. Há muito tempo deixara de visitá-lo, achando que sofrimento afeiçoa o espírito, vem e volta com o sol de cada dia, aprimorando sem precisão de viver ocupando a vida alheia. Mas o cigano gostava de companhia. Bom de conversa, melhor ainda de conselho. Cedo, pois, retornaria ao homem solitário da Várzea.

Família numerosa, sertão de sustento difícil e, depois de tudo, o mais pesaroso que achava, dormiam naquela choça pequena, de quarto e cozinha, uns, no barro, outros, nas redes puídas que restavam; menino novo; o escuro das noites; e as goteiras friorentas por cima, na época de chuvas. Preocupação, nada resolve. Ação, sim.

Agiu. Logo cedo antes de cair no eito, arrancou-se, achou o homem ainda esfregando os olhos, enquanto curiava a fervura da água do café, acocorado no chão da cozinha. Voz escorrida, o semblante sereno de quem gastou as reservas de pressa e renunciava de juntar coisas perdidas desse mundo. Cumpridas as formalidades, largou num canto as raízes de macaxeira que trouxera de agrado, e desfiou o rosário das amarguras.

O cigano, obsequioso, calado, ouviu toda a história, que para ele nada de novo acrescentava ao passado, calejado nos cortes da experiência. Sob o recolhimento voluntário, tomava a capricho auxiliar as pessoas. Sabia da força que a palavra possui. Clareia estradas, refaz percursos. Do tom que escutava, julgou o tamanho da dificuldade.

- Pode conseguir uma vaca de bezerro novo? - quis saber o ancião. Ante o aceno positivo da visita, prosseguiu: - Eis aí o jeito. Bote eles dois para dormir no meio da sua família e só volte depois que passados quinze dias.

Decerto sucedeu o esperado. Problema cresceu volume no mocó já humilde. A dormida, antes sofrida, tornou-se insuportável sob todos os aspectos. Porém o pai manteve o trato. No fim dos quinze dias, retornou mais esgotado que da vez primeira, disso não duvidava quando pisou de volta o terreiro do amigo para buscar ajustar conformação.

- Pois agora, meu filho, retire a vaca e o bezerro e sinta o gosto do paraíso em que vocês antes se achavam - completou o cigano, inteirando assim a lição.

Só desse modo o homem compreendeu aquilo de se dizer que desgraça pouca é bobagem e dos males o menor. Por vezes, diante de penúrias indescritíveis, o sofrimento se dilui na impossibilidade para sofrer um tanto mais e chega-se no limite da resistência, igual à bonança que vem depois das tempestades.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Outros nomes da vaidade


Mágoas, ou melindres, as denominações que representam a clássica vaidade – expressões do mesmo tipo de sentimento negativo que só atrasa a evolução. Chegam cobertos de falsas razões, cercam os modos de comportamento e firmam pés na alma, quais protagonistas de dramas suburbanos, peças de preguiça moral que constrangem e machucam tantos.

A psicologia prática funciona assim quando mal utilizada, encharca de motivos inúteis o terreno da compreensão, observando a ação dos outros da humanidade, espécie de radar para fugir da raia das atitudes coerentes. Coleta aqueles pretextos de egoísmo e corre os corredores da existência, na intenção de fugir da evolução, querendo demorar no samba do erro. Com isso, atrasa a possibilidade do crescimento espiritual. Fica ali rondando cada passo no ponteiro das horas, séculos cobertos de argumentos esfarrapados para permanecer nos vícios.

As mágoas expelem o tóxico do orgulho, bucho inchado das lamas acumulados no medo de avançar os mistérios da perfeição. Operador da máquina individual, o ator permanece vítima de si próprio, guardando trunfos de ácidos corrosivos nos depósitos que serviriam ao desenvolvimento da personalidade, fossem melhor preenchidos.

Já os melindres expressam o instinto de conservação do que significa a importância criada na força do desejo de dominar. Ferido na autovalorização que produziu, o cidadão evita os acontecimentos, a real dimensão de si, atolado nos conceitos de imagens elaboradas longe da Verdade. Padece da enfermidade que inventou nas noites escuras do isolamento, qual rei sem coroa. Constrói a cama da solidão e nela deita, feito soberano de mundos imaginários, porém conquistados na alienação.

Ah, quanta valia jogada nas latas do lixo, tempos preciosos largados longe da construção essencial da Felicidade. Pobres melindrosos, magoados nas arestas da ilusão, vítimas do comodismo, presas da estagnação...

Todos possuem o peso certo de perfeição, sim, pois mais tarde ou mais cedo podem chegar na transformação principal, no entanto longe das balanças dos egos ambulantes que repassam tais respostas erradas, mágoas e melindres. Há descobertas justas aos desafios, sem esses enganchos. Só levantar os olhos da consciência e obter ganhos de luz que clareiam no horizonte o Infinito.  

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Afonsinho


1977 em Crato. Segunda quinzena de dezembro. Fagner fizera apresentação na Quadra Bicentenário, em show que ajudamos a promover, época posterior ao seu disco Manera, Fru Fru, Manera, trazido pelo empresário Francis Valle, nosso amigo. Com ele vieram Afonsinho, Amelinha, Wiron Batista e mais duas pessoas das quais não recordo os nomes. Permaneceram no Cariri quatro ou cinco dias. Organizamos um futebol no Itaytera Clube, num sábado à tarde, com a participação de Afonsinho, Fagner e Zé Luiz Penna, outro artista que também estava aqui na ocasião, hoje deputado federal e presidente do Partido Verde. Passearam em Juazeiro do Norte. E eu os receberia na casa de meus pais durante o período que demoraram na região.

Pude, então, conhecer de perto Afonsinho (Afonso Celso Garcia Reis), atleta do futebol que ganhara a mídia nacional por se rebelar contra a situação do profissional jogador de futebol submetido a empresários e dirigentes, obtendo na Justiça o direito ao passe livre, de que foi o primeiro detentor, instituição sob cujo nome o cineasta Oswaldo Caldera realizara, em 1974, filme longa-metragem documentando o feito, que circulava as salas do cinema engajado pelo Brasil afora.

Figura ligada também à música popular, vinculado ao grupo dos cearenses da MPB, seria esse o motivo da sua aproximação com Fagner, Francis e Amelinha, que lhe trouxeram ao Nordeste naquele momento. Pessoa politizada, alegre, gostava de cantar samba, de trato leve e amigo. Conversador, admirador da literatura e dos bons valores culturais.  

Daqui segui com eles a Orós, residência dos pais de Fagner, onde permanecemos dois dias, com Wiron, um dos filhos do industrial Eliseu Batista. Era véspera do Natal, que juntos comemoramos, e, no dia seguinte, viajamos até Fortaleza, e ainda permaneci, poucos dias mais, com o mesmo grupo.

Agora me voltam esses fragmentos de memória depois de assistir, na televisão, a matéria extensa quanto às relações que existiram entre o futebol e a política nos anos da ditadura militar, citando inclusive o desempenho marcante de Afonsinho, que ergueu a bandeira da autonomia profissional dos atletas em meio à repressão e aos conchavos da corrupção no esporte e nos palácios. Era fase perversa, tempos da Operação Condor, tristes idos que mancharam de sangue a história, com as alianças escusas dos regimes ditatoriais da América Latina deixando rastro de dolorosas perdas.

Afonsinho chegou a defender times conhecidos, quais Olaria, Botafogo, Flamengo, América de Minas, Santos, Vasco da Gama, Fluminense e Madureira. Envergara a camisa do Botafogo na segunda metade dos anos 60, e conquistara diversos títulos, tais o Campeonato Carioca de 1967 e 68, e o Brasileiro de 1968.  

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O soldadinho do araripe


A escrita busca atender aos anseios do coração, impulso que traz alegria, uma vez que fazê-lo constrói amizades no correr de palavras e pensamentos. Nesta hora, o gosto de contar requer novidades. Daí querer falar a propósito do Projeto Soldadinho do Araripe, desenvolvido no Cariri pelo casal Weber Girão e Karina Linhares, verdadeiros missionários das ciências biológicas nessa região de natureza e clima privilegiados.

De início, apenas o ícone desse pássaro soldadinho tocava minhas impressões, uma ave pequena, de penugem branca e vermelha, algo parecido com o galo-campina, guardadas as diferenças bem substanciais que só depois viria conhecer. Língua-de- tamanduá, assim denominam as populações locais, devido a sonoridade do canto. Outros chamam de galo-da-mata, ou lavadeira-da-mata.

Adiante, face às ligações com o Instituto Cultural do Cariri, sede em que eles funcionam, soube do quanto os dois cientistas estudam e divulgam mundo afora da espécie de pássaro, inclusive registrada por Weber junto à Ciência oficial, isto a nível planetário, constando dos compêndios ornitológicos de qualquer centro acadêmico.

As razões da importância dessa família de ave, cuja fêmea possuía plumagem verde oliva fechado, levaram em consideração o desempenho típico de escolher viver próximo dos mananciais de água, isto nas encostas da Chapada do Araripe dos municípios cearenses de Barbalha, Crato e Missão Velha, forte indicador, pois, da preexistência dos resquícios de floresta que formam o habitat necessário à sua preservação.

Estas características representam indicadores de conservação das fontes e da umidade das levadas, clamor da preocupação dos habitantes desse território reconhecido pela beleza das matas, no entanto sob constante ameaça predadora que pesa nos ombros da humanidade inteira em tempos pragmáticos gananciosos.

O eficiente exercício da função dessa pesquisa, no que diz respeito ao soldadinho do araripe, amplia visões a formadores de opinião e autoridades responsáveis, graças ao empenho e formação aplicados à espécie, hábitos, alimentação, rotinas, reprodução, índices, população, dentro dos métodos sistematizados aqui postos em prática desde 2005. Por conta disso, o Cariri ganha as páginas da cultura científica e recebe visitantes de outros rincões, testemunhas comprometidas perante a saúde ecológica da Terra, leitura comum de consciência universal.

Além das pesquisas que realizam com habitualidade diária, os titulares do projeto administram parcerias importantes e intercâmbio junto a agências nacionais e internacionais, divulgando resultados nas escolas e nos meios de comunicação, trabalho que executam sob os auspícios, dentre outros, da Acquasis – Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O crime do aborto


O saber natural em sua ação persistente criou as condições de gerar filhos e os seres humanos em sua ignorância os expelem a sangue frio natimortos, quais eliminassem animais desnecessários, seus próprios semelhantes.

Houvesse leis pela preservação da vida em soberbas características de contenção dos desmandos praticados em redor do mundo e, decerto, a história mostraria inegáveis oportunidades de felicidade a esses tontos mortais esfomeados de prazer imediato.

Jamais, senão agora, demonstrações de ausência de lucidez parecem crescer no horizonte esfumaçado da destruição na flor da idade, em meio aos escombros da barbárie que toma conta dos séculos. Símbolos de paz viraram motivos de ausência de critério, nas promoções desencontradas de minorias vencidas.

Mas falávamos da covardia do aborto... Que pouca honestidade para com os semelhantes a nascer essa atitude dos legisladores lusitanos... Nem de longe se deve imaginar uma coisa dessas para o Brasil, povo originário dos avôs do outro lado das marés, que desta vez desistem de querer renovar a espécie. Exemplos melhores já nos deram, com certeza... Lições práticas de vida, a língua, o sentimento latino, o fervor, a musicalidade. Agora, contudo, quebraram a cara, e nós nos negamos a segui-los.

Tirar a vida, como querer? Não sabemos repor o viver de quem morre, por isso não se devem eliminar os seres humanos que aguardam as mesmas chances de brotar, crescer e conhecer.

A morte dos inocentes em gestação clama consciência, portanto. Falar na esperança dessas vidinhas em sumidouro, desejos de viver na lama dos ausentes, dói e requer disposição de ânimo aos que lutam pela paz. Aquilo que seria a festa das famílias, chegarem novos filhos, torna-se chama apagada no vento abusivo de vazias palavras soltas, derramadas.

E falar em amor exige coerência a uma civilização bandida, revirada nos laços das armadilhas, caminhos tortuosos, vilã matreira de poucas luzes. Gritos de promessas, entretanto, rasgam o espaço de sombra. A força de sobreviver, falando alto nas entranhas das gentes, indica o valor carinhoso de novos sonhos.

Quisessem reverter os quadros fantasmagóricos da indigência e praticassem hábitos justos e alegres de salvar os que, mais que antes, precisam nascer...

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Rebanhos dizimados


Sei que a Natureza possui leis justas; algumas vezes, duras, porém justas, inquestionáveis. Leis que exigem adaptação e obediência; e que obedecê-las representa norma de sabedoria na evolução dos modos de viver no movimento das atividades humanas.

Tais avaliações significam a obrigação para fazer a leitura correta das estiagens recentes nas chuvas do Nordeste brasileiro, reduzidas que foram a padrões inferiores, até dizimando parte da criação do gado bovino, de si já diferenciado e restrito a raças fortes, indubrasil, zebu, mestiça, quase só espécies aclimatadas aqui desenvolvidas. No entanto, dessa vez, impossível de resistir aos resultados impiedosos ocasionados após a soma dos sucessivos estios de épocas consecutivas.

Esses índices pluviométricos caracterizaram outra das denominadas secas verdes em anos interligados, trazendo pouca água aos reservatórios, afetando a produção agrícola e eliminando os pastos, longe dos períodos fartos das fases decantadas pelos poetas e trovadores populares noutras horas.

A realidade dos três derradeiros anos culminou, nesse ano de 2012, em calamidade que trouxe à memória o ano de 1958, de triste recordação, quando os rebanhos do centro-sul de nosso Estado praticamente se viram eliminados sob a inclemência da ausência das chuvas. Vítimas da escassez do líquido precioso e do alimento, reses morreram abandonadas ao relento das vastidões ensolaradas e impessoais, mostradas em páginas do cancioneiro nordestino, a exemplo de Luiz Gonzaga, na canção Jesus Sertanejo: Na serra, nos campos / Ai desencanto que a gente tem / E o vento, que sopra, ressoa / Ai sequidão que traz desolação, uma letra impecável de Janduhy Filizola.  

De dezembro a fevereiro, os viajantes que percorreram municípios do sertão, do Ceará e de outros estados vitimados pela calamidade, testemunharam o quadro dantesco das carcaças viradas em couro e ossos, restos que minguavam as prendas valiosas dos moradores da zona rural. Houve fazendeiro de perder algo por volta de 20 animais num único dia de penúria, na quadra adversa da seda dos seus queridos rebanhos.

A reflexão que sobra qual lição: Encontrar onde tudo identifica a linguagem da Natureza, que representa o quanto ainda necessitamos conhecer da vocação do território da caatinga, no semi-árido, ora desabitado e virgem das soluções indicadas pelos meios oferecidos aos habitantes, séculos depois de exploração e frutos limitados a vozes do clima característico desta área geográfica.  

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Akira Kurosawa


Na época das sessões das quatro dos Cines Cassino e Moderno, imaginar o dia em que pudéssemos alugar fitas, ou DVDs, e trazer em casa isso nada mais seria do que sonho fantasioso, coisa de mentes férteis tipo Júlio Verne, o modelo de ficção daquela época, anos 60 e 70, não tão distantes assim, mas que o tempo encobriu sob as cinzas televisivas do mau gosto das novelas.

Hoje, contudo, ficou rotineiro passar numa locadora e escolher, entre milhares, os filmes de preferência e levá-los para assistir em casa, numa mágica propiciada pela tecnologia, chance de conhecer obras raras dos melhores diretores, o que ocorria apenas por coincidência de oportunidades, no passado.

Quem curte o cinema de autor, jeito como denominam os filmes de arte, por exemplo, pode bem usufruir as criações dos diretores excepcionais, aqueles que utilizam com maestria a linguagem sob preocupações estéticas de refinado gosto.

Desses, merecem destaque alguns nomes: Ingmar Bergman, Louis Buñuel, François Truffaut, Michelangelo Antonioni, Vitório de Sica, Pier Paolo Pasolini, Jean Luc Godard, Glauber Rocha, Frederico Fellini e Akira Kurosawa, numa amostra rápida.

É a propósito desse derradeiro diretor que queremos agora tecer algumas considerações: Akira Kurosawa estreou no cinema em 1942, com o filme Sugata Sanchiro. Conhecido no Ocidente através de Rashomon, com que ele ganhou o Leão de Ouro, no Festival de Veneza de 1951. Recebeu também um Leão de Prata, por Os Sete Samurais, a Palma de Ouro, do Festival de Cannes, por Kagemusha, a Sombra do Samurai; dois Oscars, também por Rashomon e por Dersu Uzala, outra obra prima; e mais um prêmio especial da Academia, que lhe foi conferido em 1990, por dois admiradores declarados - os cineastas Steven Spielberg e George Lucas.

Ao longo de sua carreira, tanto nos filmes de época (histórias de samurais), quanto nos que se desenrolam no Japão contemporâneo, o cinema de Kurosawa visa o desenvolvimento de uma consciência individual, o que um crítico, Donald Ritchie, chama de descoberta ou revelação da personalidade.

Kurosawa em momento algum renega suas origens japonesas, mas também aprecia o faroeste americano e a literatura russa clássica, de Máximo Gorki e Dostoievski, os quais, junto de Shakespeare (Trono Machado de Sangue, baseado em Macbeth, e Ran, adaptado de Rei Lear), acham-se entre os autores que adaptou para a tela.

Porém há um filme de Kurosawa que consideramos seu trabalho modelo, Sonhos, encontrado nas locadoras caririenses, onde narra oito histórias de sonhos pessoais, numa interpretação fílmica da rara beleza plástica, inesquecíveis aos que se dispuserem conhecer. Criador torturado pela forma e, por isso, quase sempre insatisfeito com o que produzia, chegou a afirmar: A perfeição é impossível, e seguiu pelejando para realizar o filme ideal. Seus trabalhos podem não raiar o absoluto perfeito, mas se acham entre o que de mais belo e denso existe no cinema de todos os tempos.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os dentes da cobiça


Há inúmeras lendas que correm chão contando de Jesus e dos ensinos que semeou mundo afora. Uma delas, transmitida pelos dervixes, sábios do Oriente, fala de certa vez quando o Divino Mestre caminhava próximo a Jerusalém, seguido por pessoas ainda envoltas da cobiça, o interesse ganancioso pelas migalhas que caem das mesas dos senhores.

Essas pessoas insistiram para que lhes revelasse a palavra forte com que o Salvador levantara Lázaro da sepultura. Mas Jesus evitava falar nisso. Giravam os assuntos em planos diversos e, volta e meia, traziam à tona o mesmo tema, a Palavra que ressuscitava, dita nas oportunidades de reatar os laços das vidas que se foram nos planos da matéria.

O Mestre, no entanto, conduzia falas do jeito de ensinar a libertar para sempre e não só durante alguns passageiros anos os quais logo adiante se esfumam no correr das eras.

Os santos passos e a conversação seguiam sem, contudo, quererem atender aos mais ambiciosos que alimentavam o desejo da palavra santa, de trazer de novo os que a morte produzisse. De tanto insistirem, Jesus resolveu permitir que soubessem do termo que traz de volta os que morreram.

Calados durante o tempo restante da caminhada, andaram suficiente a que, no primeiro pretexto, escapassem noutra direção.
Na noite daquele dia, dormiram sono solto. Cedo da manhã seguinte, organizaram bagagens, traçaram o roteiro e seguiram viagem. Antes de esquentar o sol, trocavam opiniões quanto ao segredo que haviam recebido. Quais previstos pelo assunto trazido, avistaram uns restos de ossos espalhados nas areias ali perto. Viram, então, a ocasião indicada para experimentar o poder da fórmula obtida com tanto empenho na véspera.

O primeiro deles chegou junto dos restos do animal desaparecido e proferiu com força a Palavra maravilhosa.

Aos poucos, os ossos retomaram à estrutura original do bicho, que recebeu carne, peles, garras e o restante das partes que o compunham, naquilo reanimando fera agressiva e perigosa, que surpreendeu o grupo e devorou a todos, lição exemplar.  

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Big Besteira


A sofisticada evolução tecnológica reserva todo santo dia recursos para que a sociedade encontre seus caminhos de sustentação e progresso, no decorrer dos séculos da Civilização. Inúmeros sábios queimaram pestanas e vidas estudando, buscando, elaborando os instrumentos de que carecemos, no aperfeiçoamento das estruturas científicas e permissão de chegar aos padrões da atualidade, nos vários campos de atividades...

Milhões de seres pensantes se jogaram em campos diversos da batalha cotidiana, espezinhados em condições mínimas de trabalho, vítimas de limitadas possibilidades, a fim de trazer às gerações bases de tempos melhores, mais justos, democráticos...

Mães sofreram dores do parto, na ordem natural de filhos sadios, bonitos, brilhantes... Professores esmeraram o conhecimento e a disciplina, em salas de aula por vezes inóspitas, restritas a aspectos precários, de pouca iluminação e longínquas distâncias...

Líderes pelejaram, submetidos ao domínio dos ditadores insanos, prisioneiros entregues ao furor da clandestinidade, vagando nas ondas incertas, com idéias firmes de justiça, trabalho, igualdade, paz, alimentando bandeiras de sonhos, quase sempre incompreendidos...

A pesquisa, que, de comum, se desenvolveu diante das enormes dificuldades financeiras, em galpões improvisados, à luz de velas, em horas tardias...

Classes inferiores amarguram e sofreram constrangimentos, na mira das baionetas, dos canhões, nas guerras de conquista, de manter privilégios, a chorar filhos mortos no ostracismo sem glória, em pátrias estrangeiras, desconhecidas...

E qual o fruto de todo esse esforço descomunal, apresenta o vídeo chamejante de cores belas e movimentos da madre-televisão, nas salas principais? Os reality shows, ao modo de Big Brother Brazil, alter-ego da sociedade destes tempos críticos onde tipos recolhidos numa gama suja, vêm com a imaturidade humana de antes da caverna, dotar de insegurança e despreparo a pré-adolescência, retrato desfocado daquilo que, em fase menos infeliz, haveria de permanecer restrito aos divãs de terapeutas, aos quartos dos motéis, dos prostíbulos, jamais levado aos quatros contos, na cara de espectadores imprevidentes, existisse decência na feitura das programações.

Os meios de comunicação de massa, na maioria, agem assim, dentro de horizontalidade característica, invés de procurar a verticalização das concessões de serviço público que são. Praticam, isto sim, negócios escusos, na sede do lucro descarado, por preços de ocasião, na curva da economia de escala. Usinam peças que se encaixam nos buracos que oferecem as massas, independente dos efeitos morais, período em que moral virou símbolo de fora de moda.