terça-feira, 30 de junho de 2015

O elefante no escuro

Na Índia, uma parábola fala da experiência de quantos se propõem a conhecer a verdade. Trata-se de história divulgada no Ocidente pelos autores de livros populares sobre o modo de transmitir ensinos superiores. Esta prática exige um tanto de habilidade, porquanto cada um vive suas próprias ocasiões de aprender. Quando muito, adquirem versões subjetivas, convicções pessoais que tiram do grande todo, detalhes mínimos do que os sábios ensinam a seus discípulos.

Conta dita parábola que certa feita um rei apreciador das coisas do espírito reuniu três cegos e os solicitou que abordassem um elefante e, em seguida, explicassem do que se tratava. 

Um por um, os cegos se achegaram do animal e tocaram seu corpo em lugares diferentes.

Depois, trazidos ao soberano, descreveram o que haviam conhecido através do sentido do tato, esforço este acompanhado de perto por outros súditos ali presentes.

O primeiro cego descreveu que sentira pelas mãos ser enorme dotado de imensas orelhas, semelhante a tipo que poderia se deslocava no ar graças aqueles possantes instrumentos de locomoção.

O segundo, por sua vez, justificou que apalpara bicho de barriga avantajada, o que, devido ao peso do que acumulava, lhe impedia o deslocamento. Daí necessitar possuir patas comparáveis a troncos de árvores frondosas, com as quais permanecia preso ao solo, a se mover com dificuldade e risco para a segurança dos que viviam a sua volta.

Por fim, o terceiro cego considerou haver conhecido espécie rara capaz de reter o ar sugando-o através de orifícios situados na extremidade da tromba poderosa. Qual enguia gigante, o pavoroso monstro vivia de tudo examinar com o tal dispositivo, causando horror aos que encontrasse no caminho.

Como visto, o monarca ouviu nada além de ponderações de ordem singular. Porquanto, devido à limitação de suas vivências, os cegos apenas puderam abordar o objeto que apalparam sob os limites do que possuíam em suas noções anteriores.

O julgamento dos humanos ocorre nas mesmas e restritas limitações pessoais. Ninguém que se preze negará esta sentença, fruto do estado precário em que ainda nos achamos. São avaliações significativas, destacando a importância de se ser humilde no que tange a pontos de vista que precisam de maior indagação. Isto significa dizer, também, que a soma dos valores coletivos somados ampliam as chances de todos nós juntos um belo dia vir conhecer a Verdade absoluta na sua plenitude, por meio da fraternidade e união das individualidades pensantes.  

A energia em movimento

O trabalho, em tudo por tudo a força viva que movimenta a mãe Natureza. Aonde se vira e ali o braço ativo da produção anima os quadros da beleza universal, tela em que os animais elaboram o ritmo dos dias. As crises, os impasses, borrascas, vastidões, peças do grande todo que ferve na alma da existência. E tem mais, enobrece, porquanto se honesta alimenta o conceito justo dos elementos em crescimento. Desde os átomos, passando pelas células, a corrente sanguínea, o vento em aventura infinita, as ondas do mar insistentes nas praias ensolaradas, os raios, milhões, bilhões, dizimas, prestações, velocidade, o ar em movimento nos pulmões, os circuitos cerebrais... Impossível duvidar que há consciência no que existir, até no toar dos canhões, no latir dos cães, no uivar dos lobos, na lama, no verde, no Sol.

Quem sabe o gosto desse costume positivo é porque trabalha. Desocupado, aguente dificuldade em preencher a pauta constante do tempo. Tal prazer de executar as funções do trabalho alimenta de prazer o final do dia, além da consciência de paz, chega leve o sono e inunda de repouso os que desenvolvem atividades produtivas, honestas e justas, no decorrer das horas, na função sadia de estudar e trabalhar.

Uma oração, o trabalho resulta em bons frutos. Tão bons que proporcionam saudáveis ocasiões quando diminuem as energias físicas na existência das pessoas. 

Outros hábitos prejudicam; a lamúria, vícios, preguiça; o trabalho não deixa a idade escorrer pelos dedos e nada de seu construir dói, numa situação de saber que as oportunidades sumirão nas curvas do que ficaram lá atrás.

Descobrir a importância facilitadora de trabalhar cresce a personalidade e os diversos instantes da jornada terrena, tesouro precioso das pessoas, fonte de realizadora paz. 

Bem fácil revelar o primor desses pequenos gestos internos, experiência que, por vezes, só aprendemos no declinar que tanta qualidade boa ocasionaria vinda ao seio da rica juventude. 

sábado, 27 de junho de 2015

Mergulhar no próprio mar

Aqui descobrir o mistério do amor em mim, revelar que há portas que abertas mineram o Ser na essência de Si, também em mim, sim, senhor. Amar a intensidade de todas as saudades e dores, ainda que nuvens que passavam e marcavam o espaço da presença transformadora do gosto em possuir a existência qual fator de alegria, luz de transformação, meio de renovar os passos dessa caminhada rumo ao Infinito.

Com isso, deixar de lado o quanto amargaram perdidas ilusões que restaram varridas pelo sol de vidas sucessivas; abraçar com ânimo bem forte o desejo das verdades que curam e trazem aos frutos da melhor conformação diante de tantas dificuldades necessárias a evoluir que repousa no meu peito. Sustentar de mãos firmes as chances da esperança e manter acesa a chama da fé suprema nas ocasiões libertadoras quando fazia escuro nas dobras escondidas e se que deixara limpar em momentos inevitáveis das universidades do caminho perene.

Acreditar de certeza limpa na vontade das crianças que alimentam de sonhos as manhãs, o que nasce primeiro dentro delas e desfazem impedimentos, dissipam decepções e configuram possibilidades sem limite da felicidade logo, em breve tempo.

Elevar, pois, o pensamento aos níveis plenos de êxito e amizade no seio dos sentimentos de novos temperos de conhecimento trazidos pelo céu aberto do azul pleno, bondade de um Pai sincero. Jamais desistir,  mesmo quando parecem instransponíveis os obstáculos; fazer de conta que não é comigo. Criar na vida oração de poder e contar histórias de finais felizes às noites de lua; e apreciar o belo qual resistência; ver no brilho das estrelas que do alto o olhar da Justiça acompanha dias de crescimento.

Pregar a minha verdade no ritmo das palavras exatas; unir o sentido das causas nobres; e alimentar as gerações na leveza fértil da Paz que vem à medida que mergulhe neste mar de sermos nós. 

O pulsar do coração

O tanto da vontade em cruzar mares e querer obedecer ao princípio da espontaneidade, no fluir das ações da pura natureza animal das criaturas, invés de impor obrigatoriedade comum aos acontecimentos, isso de abandonar à própria sorte as condições e os meios necessários a viver entre pedras qual escorrer pelas águas que descem ao mar, causou nas pessoas espécie de acomodação a determinações que vêm de longe e chegam por causa da preguiça em raciocinar formas diferentes de responder ao desafio da existência. Uns passos ritmados deixados ao som do vento na folhagem, seguindo tramas de violeta tecidas nas flores espalhadas na vegetação rasteira dos brejos em festa. Permitir que mutações ocorram a todo instante das matas, livres de forçar os caprichos do desejo de encontro ao planejar das simultaneidades, sem restringir ao puro determinismo do espaço físico. Achar o trilho da ciência de si na alma do coração. Linearidade versus simultaneidade, pois tudo explode em momento a toda hora no fervilhar das ocorrências.

Onde acontecimentos serão somente a casca da realidade, e as notícias dita a quatro ventos imitações grosseiras dessa casca que cai e se renova ao sabor do tempo imaginário, quando testemunhas resolveram sobreviver contando visões unilaterais da mesma realidade através da via de outras visões, meras respostas à impaciência de revelar a resposta ainda que montada às pressas em um canto qualquer da realidade. Sonhos vão de transformar consciências e nem gastar o salto do sapato.

Na sucessão de tantos êxitos apressados dessa civilização de aço, os industrializados do tempo presente, cascas se multiplicam a modo de compreensão do que jamais será compreendido nos termos atuais dos povos apressados, período quando o homem tornou-se peça vulgar de reposição da máquina colérica do lucro.

E lá está ele, o velho coração da máquina humana, a pautar na estratosfera da solidão o desejo que pulsa incansavelmente o clamor das orações acumuladas nos bem antigos santuários da Fé. 

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O presente

Na China existiu um velho guerreiro que nunca fora derrotado. Apesar da  idade avançada, era capaz de lutar com os mais novos e sempre levar a melhor. Sua fama atravessava o país, correndo mundo afora. Seus alunos o admiravam e respeitavam seus ensinos.

Lá um dia outro guerreiro famoso se apresentou disposto a medir forças com o Mestre, porquanto sabia do prestígio que desfrutava e trazia em si o firme propósito de vencê-lo em combate de proporções jamais presenciadas. Queria ser o primeiro a derrotar aquele senhor da luta.  

O desafiante, além de apresentar força e habilidade inigualáveis, possuía talento sem igual para descobrir pontos fracos nos oponentes, explorando-os até conseguir anular-lhes a concentração e vencer a resistência, destarte triunfando em todos os combates. Forçava os adversários a revelar as fraquezas, atacando-os, então, com extrema bravura. Dadas tais características, depois do primeiro momento de duelo ninguém resistiria a seus golpes fatais. (Descritas as características de ambos os lutadores, prossigamos a história).  

Sabedor das intenções do desafiante, o Mestre de pronto aceitou o desafio, no que pesassem as observações zelosas dos discípulos a preveni-lo. E veio a data do embate cercada de grande pompa, a reunir enorme multidão.

Os dois se posicionaram com o jovem guerreiro principiando a fazer provocações verbais usando de xingamentos vis, a lançar punhados de areia e cuspir no rosto do adversário, gestos que se repetiram por longos e longos minutos.

Entretanto, impávido, o velho guerreiro resistiu sem perder a tranquilidade, extático, calmo e dono da luta, se mantendo à frente nos golpes. Não demorou muito a derrotar o petulante agressor que, por fim, se esquivou envergonhado debaixo de apupos e vivas. 

Desconcertados por ver o Mestre se manter passivo no decorrer de quase toda a luta, os alunos quiseram saber a razão desse tipo de atitude em faca das agressões sofridas: 

- Por que o senhor teve de suportar tanta humilhação sem impor qualquer resposta, e esperar tanto para revidar as ações do opositor e chegar à vitória?

- Quando nos mandam um presente e nós evitamos receber – ele respondeu -, esse presente fica nas mãos de quem oferecer. Dessa forma, retorna a quem o enviar.  

terça-feira, 23 de junho de 2015

Flores metálicas

Enquanto as histórias brotaram feito capim seco em rachaduras de asfalto, nos becos, cardos cresciam pelos vãos abertos das calçadas de tijolo das igrejinhas, sítios largados diante da fuga rural do Nordeste. Resultado: um tal de organizar papéis que não acaba mais. Papéis e arquivos de computador, essa besta de carga dos tempos atuais, quando máquinas sofisticadas ocupam o lugar dos cérebros e de suas transferências forçadas, meio liberdade coagida, coisas de responsabilidades coletivas. Corrida pelo pão. Pela fama. Simulação de perfeição nas geringonças plastificadas, e fibras, e condutores, tipo formiga de monturo, personagens de desenho animado, seres humanos que abrem os braços ao desconhecido eletrônico, entregues aos futuros imaginários.  

Nesse passo, há sensações de pouca ou nenhuma autoridade conduz os negócios do Império, com tropas lançadas a tudo quanto é canto, batendo-se contra inimigos inexistentes, ou criados na ficção de filmes à moda mecânica.

Nas ruas, pessoas movimentam, daqui para ali, fardos industriais em troca de chãos. Despertam faceiras e realizam as tarefas de viver dos ontens por absoluta espontaneidade, livres das maiores cogitações de consciência, esgotados outros veículos individuais nos sonhos da plenitude de voltar a crescer novamente.

Crianças pedem brinquedos. Namorados, família, casa, comida. Jovens, alegria, invenção do místico, vozes e sons das muralhas intransponíveis, em meio ao toque burocrático da velha televisão e seus programas de fim de tarde amargurosos e, por isso, atraentes no sensacionalismo diário das doses de sacrifício impostas no cardápio.

Noventa por cento dos produtos mandados lá fora refletem o quadro da lamúria dos guetos, populações andrajosas e pasmas com a lama até o pescoço, a escorrer no céu aberto, no leito das salas-de-jantar e banheiros, antes e depois das campanhas políticas milionárias.  

Grandes farras de realimentação do sistema nutrem, pois, missões ingratas de preservar o patrimônio colonial das economias emergentes. A quem reclamar não existe nos códigos estabelecidos. 

Dormir feliz e acordar disposto, restam a eles as funções modernosas costumeiras, portanto. Repousar, bois do bagaço, ao estio das tamarineiras frondosas; e pronto.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Esse animal social

Tal qual búfalos, carneiros, formigas, abelhas, gorilas, o homem é um animal social, precisa viver em grupo a fim de exercita sua capacidade de cooperação.  Diferentemente de espécies outras, rende mais quando em manadas, fonte de abastecimento das funções complementares, sociáveis também por isso. Houve um tempo em que vagava solitário e competitivo, a defrontar os fenômenos naturais só em pequenas famílias, contudo exposto às penúrias do isolamento e à sanha carnívora dos outros parceiros de vastidões geladas. Daí querer formar os primeiros aldeamentos e reservar territórios onde puderam criar os reinos e províncias, reservados ao sabor das necessidades coletivas, porém restritos nas experiências depois conhecidas por cidades e estados, até o Estado politicamente organizado que agora se conhece.


No decorrer da aventura dessa civilização dos primatas humanos, acontecimentos somaram a cultura e o progresso através da interação, motivo primordial desde o início da história. Permanente troca de favores deu nisso que aí está, diante do egoísmo de grupo que resultou, fome de domínio além de todas as previsões, ocasionando as dificuldades que defronta a horda bárbara, a desviar as práticas do objetivo original de cooperação. Nações estonteadas no sangue fraterno de povos em crescimento exploram desnorteadas as sanhas agressivas dos bichos lá do começo, de quem fugiam trôpegas nas estradas do mundo. 

Nisso a Humanidade revela aspecto contraditório nos princípios que geraram os passos fundamentais do desenvolvimento da sociedade. Inversão assustadora, o que antes pareceu fator positivo, no andar dos cascos configura transição a níveis selvagens e autodestrutivos de sobrevivência. As leis da biologia que nutriram soluções estimáveis de crescimento e solidariedade ora exigem atitudes libertadoras e salvacionistas urgentes. 

Sem, no entanto, mudar o rumo da cavalgada a favor dos sonhos de união, caberá tão logo agir no sentido de reforçar as bases dos impulsos fundamentais da existência, lembrando o que dissera Jesus de sermos um só rebanho e um só pastor.

domingo, 21 de junho de 2015

Major Bento

Dentre as muitas histórias registradas pelo povo figuram as do Major Bento, oficial da Polícia do Estado do Ceará, conhecido pelo rigor disciplinar com que tratava os problemas que lhe chegavam às mãos. Por duas ou mais vezes (anos 50 e 60) veio de ser delegado em Crato, onde pude conhecê-lo a se movimentar com seus praças da patrulha em um jipe de capota aberta na metade do carro, impondo respeito e determinando procedimentos. Dele a invenção do castigo conhecido sob a denominação de dança do sapinho, mais destinada aos farristas e seresteiros que fugiam do enquadramento regular, para, na ressaca, pularem de quatro debaixo de uma mesa com pregos de ponta para dentro, no tampo, ao som das músicas da moda.

Sabe-se que as festas juninas sempre (e ainda hoje) deram muito trabalho às autoridades, por causa dos fogos, balões, tiros, foguetões, provocando desassossego bem antes, durante e depois da época própria.

Numa de suas missões no Município, o militar resolveu dar um basta nos abusos generalizados. Com certa antecedência, baixou portaria para disciplinar o assunto, proibindo de modo terminante o uso de bombas, traques, pistolas, etc. Fossem barulhentos, perturbassem a paz pública, enquadravam-se na pauta das restrições. Vale lembrar que nas ordens emanadas dele, Chico Bento, como o apelidavam pelas costas, não cabia moleza. Enfim a conhecida (mas pouco obedecida) lei do silêncio fora imposta com justeza entre os cratenses.

Nessas rondas que perfazia para manter a ordem, certa noite, nas imediações do Colégio Diocesano, ao dobrar a esquina, Bento presenciou ato delituoso enquadrável na sua determinação, sendo praticado em flagrante delito, quando cidadão acabava de detonar bomba daquelas grandes, das mais zoadentas e perigosas, conhecida pela alcunha de cabeça de negro, visto o tamanho do artefato.

Parado o jipe, restaram no local, arrasado, o autor da contravenção e a patrulha policial cheia de vontade, pois outros circunstantes sumiram qual num passe de mágica. Antes da manifestação do delegado, reagiu trêmulo o acusado, através de expressão bem sabida nas rodas anedóticas da cidade:

- Mas Major Traque, foi só um bentinho que eu soltei.

Dada a força humorística da situação que se estabeleceu, o oficial caiu numa sonora gargalhada... e deixou a punição para o caso de reincidência; sorte do autor da peripécia.


Os capotes

Na pensão de Dona Lindalva, a cidadezinha garantia pouso aos caixeiros viajantes que se aventuravam nas quebradas daquele sertão. Chegavam quase sempre nas proximidades do almoço. Encontravam os colegas, a conversa comia solta, tempo suficiente de banhar o rosto, às vezes tomar banho ligeiro para esfriar o corpo e pôr em dia as conversas, comiam a refeição bem temperada nas amabilidades da proprietária, espírito alegre e cativante, antes de voltar ao trabalho da tarde. 

Naquele dia, Honório percorra a clientela, vendera a sua cota, indo buscar a pensão modesta. Satisfez o apetite. Trocou algumas palavras com amigos e ainda sobrou tempo de olhar, no quintal, debaixo de umbuzeiro frondoso, uma numerosa ninhada de capotes produzida de poucos dias. Mulher empreendedora essa Dona Lindalva, avaliou consigo. Os outros também notaram os capotes novos, enquanto a senhora lhes jogavam xerém, nas farturas do inverno.

Ainda tirou alguns pedidos mais no meio da tarde, totalizou o serviço, pernoitou e, cedo da madrugada, seguiu viagem.

Meses adiante, regressou ao lugar nas rotinas profissionais, quando se lembrou da pensão. Totalizou as vendas e logo buscou o estabelecimento da tradicional amiga. Asseou-se, exercitou o papo junto dos conhecidos, à busca das novidades. Chuvas escassas dominavam as preocupações. Conversa vai e vem, quando surge na memória a ninhada de capotes que avistara na outra visita e que lhe parecera próspera.

- Ah, o senhor nem queira saber, Seu Honório - falou enigmática a boa senhora. - Os bichos passaram todos no fundo desse dali – respondeu, indicando da janela um único exemplar de capote graúdo a ciscar os cantos do quintal.

Surpreso, o viajante quis saber detalhes do que ouvia, não satisfizera na sua curiosidade:

- Por favor, Dona Lindalva, explique melhor o que aconteceu com os capotes da ninhada que antes avistei. 

- Nem conto; sabe o senhor que a gente na cidade, sem terra para plantar, quando os bichos vão crescendo, nesses meses de aperreio, querendo salvar a ninhada, fui, toda feira, vendendo um a fim comprar o milho de alimentar os outros. Desse jeito, cuidando e repetindo, até que agora só restou esse que o senhor vê. Por isso digo que os outros todos passaram pelo fundo dele - falou cabisbaixa, e concluiu o assunto.  

sábado, 20 de junho de 2015

João Batista e o adultério

O zelo entre os casais significa uma reverência ao amor que uniu dois corações através da nobreza do sentimento. A sinceridade e o gosto de estar juntos demonstra a força do sagrado que em tudo existe no seio da mãe Natureza, daí o valor de preservar o bom andamento dessa ordem universal que ruma ao progresso da Perfeição. Com isso, preservar os laços da unidade conjugal impõe normas por vezes até difíceis de equilibrar diante dos chamamentos do caos das individualidades entregues aos desejos simplórios da carne, outras palavras a dizer aos impulsos da paixão. 

Enquanto olha um no outro, livres de instintos só de licenciosidade, os que se amam usufruem da pureza original do amor verdadeiro. Porém entregues aos espasmos do apego apenas físico estão sujeitos aos acidentes de ordem bruta, isto é, acontecimentos imprevisíveis do percurso dos objetos em choque, e não de seres inteligentes vivendo na Criação. 

O segredo que rege tais laços exige, por isso, disciplina austera, no fim de oferecer resultados ansiados da felicidade. Houvesse unicamente o instinto, a calma dos corações representaria visões ilusórias, invés de crescimento espiritual. 

Nisso João Batista desenvolveu a missão de convocar as criaturas humanas ao sentido puro que lhes espera depois da aplicação dos valores eternos face dos relacionamentos da matéria, do apego entre os sexos sob o prisma do amor eterno. Dedicou a firmeza que acompanhou seus passos a chamar as pessoas no objetivo de erguer a visão aos níveis superiores, ainda que vulneráveis aos acidentes do percurso no crescimento das gerações, nos leitos da sexualidade. Deu tanto de si o santo que clamou no deserto, a ponto de perecer vitimado pelos conceitos que pregou, quando feriu os interesses do Rei que ordenou o executassem, deixando aqui o ensino da fidelidade qual verdade principal dos que se amam e conduzem a família na história das raças.

Ao decidir entregar o sentimento ao que considera eleito do coração o indivíduo dá um passo principal no caminho da seriedade, ainda que passível de erro da condição humana. Contudo o mínimo senso de respeito a quem merecer a escolha requer atenção e grandeza, porquanto a força maior a tudo determina e torna sagrado.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Monsenhor Montenegro

Dia 10 de abril de 2005, um domingo, morria em Crato, por volta das 14h, monsenhor Francisco Holanda Montenegro, sacerdote católico de larga folha de serviços prestados à educação no interior do Nordeste. 

Nascido na cidade cearense de Jucás, a 25 de fevereiro de 1913, filho de Seridião Holanda Montenegro e Almerinda Montenegro, foi responsável pela direção do Colégio Diocesano do Crato durante cinqüenta e dois anos, formando as principais lideranças das gerações que passaram pelas suas mãos, isto dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte e Ceará.

Membro do Conselho Estadual de Educação do Ceará por dilatado tempo, Monsenhor Montenegro publicou vários livros, dentre esses: As quatro sergipanas, Os quatro luzeiros da Diocese, Monsenhor Rocha, o apóstolo da caridade e Fé em Canudos. Pesquisador emérito, estudou com afinco a vida de Antônio Conselheiro, a história da família Alencar e a vida e a obra do Padre Marcos, expoente dos rincões piauienses, onde viveu a cumprir função civilizadora, tendo seu nome adotado por cidade que ajudou a fundar e desenvolver.

Foi também professor da Faculdade de Filosofia do Crato e membro do Conselho Estadual de Educação do Ceará, desempenhando sempre com amor atribuições nele depositadas. Era membro do Instituto Cultural do Cariri, em Crato, titular da cadeira no. 9, cujo patrono é Dom Francisco de Assis Pires, após defender tese sobre monsenhor Rubens Gondim Lóssio, seu anterior ocupante.

Escolheu o Cariri para o exercício do seu apostolado, onde hoje desfruta da fama que bem produziu, residindo no sopé da Serra do Araripe longa data junto de capela que ele mesmo construiu, ali efetivando trabalho de catequese, orientando fiéis, cumprindo seus deveres de ofício, encetou pesquisas e escreveu, de vitalidade admirável pelo tanto quanto se dedicou à lides educacionais.

Pessoa das mais distintas, Montenegro houve-se como poucos na faina de formar caracteres para a sociedade, conduzindo-os dentro de padrões éticos e morais apreciáveis, lembrança reconhecida na alma dos muitos que vieram ao Cariri neste período de tocante despedida, ex-alunos e amigos sensibilizados diante da perda.

As instituições que hoje assinalam o universo respeitável da cultura caririense guardam estreitas relações com o trabalho tão bem desenvolvido pelo Monsenhor Montenegro, figura ímpar de personalidade forte, dotado de carisma e simpatia fáceis, cheia de valores morais e intelectuais indiscutíveis.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Amor e destino

Desde o início entre os dois que ele notou a importância da presença, em tudo por tudo. Ela crescera na paisagem qual sol resplandecente em manhã primaveril, tonalizando cores e realçando a beleza espraiada na mãe natureza. Quisesse imaginar diferente, haveria multidões de argumentos desfazendo as chances de mudar de opinião. Nisso Hipólito rendeu-se nos braços de Alzira, fiel companheira de inverno e estio, consequência insuspeita de carinho e paz. Contudo jamais haveria de considerar o objetivo daquela mulher na sua vida.

Uma vida passada e se envolvera delituoso com pessoa de outro casamento. Perante as leis da reencarnação, a fim de resolver o impasse evolutivo, condicionara-se a passar situação assemelhada, respondendo o véu da justiça ao que impusera aos outros no tribunal da Eternidade. Sofreria não a título de vingança ou castigo, porquanto ditos fatores inexistem no código perfeito do Céu, mas submeter-se-ia ao crivo da Lei do Retorno, em que mereceria aquilo que plantara.

A companheira viera ao sabor das circunstâncias dos acontecimentos da colheita. Sem propósito preestabelecido, encontrar-se-iam certa noite, nos giros de um parque de diversão das festas de padroeiro, e se engraçariam um do outro.

Amor maior talvez existisse noutro lugar (quem sabe?), hipótese no entanto negada de pés juntos pelos amantes fiéis incondicionais.

Anos e anos de felicidade a toda prova, que transcorreram céleres, somada à chegada de filhos diletos. Doces enlevos e amplas satisfações impuseram àquelas vidas padrão incomum de exemplo de tantos, nos tempos críticos da indiferença dagora, cercados pela tecnologia indiferente dos meios frios da comunicação.

Hipólito e Alzira voaram tantas vezes nas asas da ternura que nada de especial percebiam nas oportunidades inocentes, seres das mágicas horas do amor.

Jamais avaliaram que no dizer do povo não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe. Trabalhassem essa perspectiva e guardar-se-iam melhor dos ataques da fortuna inesperada.

Correram dias ainda mais rápidos até o lodaçal da dúvida, desafinando as notas do bolero triste que os dois cantavam inocentemente sem saber que profetizavam um abrir e fechar de olhos. As folhas do outono levaram bem longe o pranto convulso, inundando vales e montanhas, misturando com preces magoadas, recitadas de prosa e verso, nas encruzilhadas do destino. Sofreram ambos, porquanto amar se amavam a não caber no peito.

O cavaleiro negro da sentença chegara em outra paixão para cumprir a sentença. Pena significava a destruição de Hipólito, o descaminho de Alzira e o desajuste dos filhos naquela geração. A cada um o quinhão, mediante a soberana fidelidade.

Antes de ministrar justiça, coube dosar os desdobramentos. No peso do amor desfeito de Hipólito e Alzira tornou-se valor raro o que reduzira a culpa do delito da história dos dois, relevando as dores a que o destino da responsabilidade viesse transformar em perdão o reconhecimento do crime. Como resultado, o sofrimento amaciado nos corações reverteu na consciência o amargo do erro. Na história, a família seguiu vivendo e cumprindo seu papel. 

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Jornal A Ação

Era o ano de 1966, terceiro do regime militar; governo de Castello Branco. Eu cursava o científico, no Colégio Diocesano, em Crato. Lia o que me vinha às mãos, ato mágico de conhecer os pensamentos alheios. Transpirava boa disposição para escrever. Sonhava com a oportunidade de utilizar, ao meu modo, as palavras impressas para transmitir o que vejo e avalio. Conhecera Antônio Vicelmo do Nascimento na redação do jornal Folha do Cariri, que funcionava no Edifício São Raimundo, na Praça Siqueira Campos, onde procurei publicar meus primeiros textos, sem muito sucesso.

Ele me convidou para auxiliá-lo na elaboração de um noticiário que apresentava na Rádio Araripe, quando ainda não recebíamos o sinal da televisão. Eu produzia a parte internacional, recolhida de rádios estrangeiras.

O trabalho durou poucos meses, até ele ser convidado para chefiar a redação do jornal A Ação, órgão secular da Diocese, que funcionava na Empresa Gráfica Ltda., em frente ao Palácio Episcopal, na Rua Dom Quintino. Reuniu equipe formada de Armando Lopes Rafael, Pedro Antônio Lima Santos e eu, estudantes aficionados das letras. Somaríamos esforços ao dos membros anteriores do semanário, padre José Honor de Brito, diretor do jornal e da gráfica, padre Gonçalo Farias Filho e o jornalista Huberto Esmeraldo Cabral.

Iniciava-se, desse jeito, momento atípico do jornalismo caririense, responsável por linguagem dinâmica, atual, ao nível do grande público, diferenciada dos moldes anteriores da tradição eclesiástica até ali utilizada. 

Nas suas primeiras providências, Vicelmo deslocou-se a Fortaleza, visitou as redações dos jornais da Capital, trouxe famílias de tipo para as manchetes e textos, logomarcas para as colunas e clichês de republicação, e pediu a compra de uma clicheria, à maneira dos jornais da época. Quando chegamos, existiam nas oficinas duas linotipos e uma possante rotativa recebida através de programas católicos de auxílio dos alemães, o suficiente a fazermos um bom produto.

O enfoque dado à abordagem noticiosa permitiu que produzíssemos matérias até agressivas, questionadoras, por vezes destacando aspectos instigantes, sociais, policiais, políticos, inéditos na imprensa local.  Rápido vimos disso o resultado. Saía-se de uma centena e meia de exemplares, o que encontráramos no começo, para, nas maiores tiragens, chegar a algo em torno de 1.500 exemplares. Das iniciais quatro páginas, não demorou a que se chegasse a doze páginas.

Cheio de motivos palpitantes, o semanário provocou sensação, ao gosto dos leitores, que ganharam parceria na atividade, qual laboratório efervescente dos acontecimentos, a ponto de recebermos a visita de pessoas da cidade e de outros lugares para conhecer o trabalho. Na redação, transpirávamos esse clima de renovação, obtido com a nova política e as feições modernas do jornal.

Os anos de 1967 e 1968 simbolizaram marcos incomuns das transformações de costumes no mundo inteiro, evidenciadas pelos meios de comunicação de massa. Em Crato, o fenômeno encontrou, no jornal A Ação, um espaço de repercussão desse humor de liberdade e esperança, precursor das mudanças posteriores que varreriam a história contemporânea.

Tais movimentações jornalísticas adotadas extrapolaram seu âmbito particular e influenciaram outras áreas da comunidade, motivando aragem criativa, que resultou na elaboração de jornais estudantis, livros e mobilização cultural, algo semelhante ao que se dava nos centros maiores.

Estrangeiros de si

Quer saber mais dos reais propósitos, finalidade última de andar este chão de tantos mortos, em que pisar faceiro representa o desfile das gerações. Numas dessas tardes de sábado quando acontecidos seguem apesar dos trâmites equivocados e suas rotinas, imensos vazios parecem tomar conta das circunstâncias, na lembrança vaga da luz na consciência a procurar o sentido.

Contudo a quem escreve cabe o solitário dever das respostas, invés de perguntar; autor presente, leitor ausente... Leitor presente, autor ausente.

Nisso, algumas vezes, questões podem vir nos aspectos comuns, meandros e impressões onde viver significa reunir experiência.

Por exemplo, quando padecem as dores atrozes de existir, criaturas se submetem ao crivo de penas atrozes, tragédias aos olhos da rua, das residências, dos hospitais, manicômios, presídios, becos escuros, vilas descalças. Período em que outros, no tempo ao lado, riem e festejam turnos ilusórios, tronos atapetados, parques alegres, salas de espetáculo, estádios, mostras faraônicas do estado sólido da matéria, puros adiamentos.

Desta forma, entre lágrimas e sorrisos, há distância infinita, não superior, no entanto, a milímetros estreitos que dividem dois lados de uma mesma moeda.

Aquilo de lembrar vizinhos abandonados dos amantes fogosos, flagrante impõe na contradição à roleta da sorte, na escola do mundo. 

E cresce o enigma de viver diante da lei da compensação: Alimentar sonhos de felicidade perene em meio às guerras e crises, valores da busca incessante do ser. Noutras palavras, equilibrar os pratos da balança da fortuna requer mínimo de senso de justiça, princípio de não fazer ao outro aquilo que não quer a si, nas palavras de Jesus.

Afirmações exigem, pois, esforço de transmitir intenções claras, que representa a luta de encontrar o Si próprio, no intuito de superar a trajetória impermanente de morar um corpo de carne até chegar a espírito puro, sublime instante da revelação final da essência.

Todos, sem exceção, transitam nessa faixa de personalidade com destino traçado de chegar a ser eterno, percurso das vidas reencarnadas. Ninguém vem aqui só a passeio. Nas horas amargas dos conflitos, afloram possibilidades do infinito, encontro com o Eu verdadeiro, na morte da vida temporal e no renascimento para a Vida.

Este parto cósmico requer conhecimento e renúncia, qual largar a Terra rumo às estrelas, invés de peregrino. Nessa hora de chegar à casa do Pai celestial, fruto dos degraus da natureza, calados, romperão o peito os solitários humanos, nascidos no âmago do coração. Assim, primeiros raios do sol da manhã invadem a alma com o brilho das bênçãos, cessando dores lancinantes, malhas do aço resistente da esperança, em atitude certeira do amor de Deus em nós.  

(Ilustração: Hieronymus Bosch).

sábado, 13 de junho de 2015

Certa vez

... encontraram-se num aeroporto Dona Violeta Arraes e Luiz Gonzaga, amigos de longa data, ligados que foram ao Nordeste, além de identificados nas vivências do Sertão. Conversa vai, conversa vem, durante a espera dos voos respectivos, até que Dona Violeta, de sinceridade característica da sua personalidade, resolveu trazer à baila comentário que lhe rondava o senso, avaliando na frente do Rei do Baião algo que mexia nas suas convicções de pessoa sabedora dos acontecimentos:

- Luiz, você anda acompanhando Agamenon Magalhães nas andanças políticas de campanha, e cantando e tocando nos comícios desse homem, pessoa vinculada às oligarquias pernambucanas. De certeza sabe que o tal cidadão tem bases no atraso, da estirpe de coronéis exploradores do povo. E o que me diz disso, Luiz, em época de tanta valia que artistas trabalhem ao lado de quem precisa do apoio e da orientação de votar pelas transformações sociais, em favor lideranças engajadas nas lutas?

O menestrel das massas populares, gênio da raça, arauto das caatingas e já sucesso musical em todo o País, afasta um pouco de lado, coça a cabeça demonstrando alguma preocupação do que ia falar, mas assim mesmo quis expressou o sentimento que aquelas palavras provocaram no seu íntimo:

- Mas Violeta, você sabe que vim das brenhas, lá das bibocas do Novo Exu; tenho a pele escura, quase preta, queimada no eito das roças, acostumado a puxar cobra prus pés no cabo da enxada junto de meu pai, nas pelajas do chão esturricado; fui soldado raso, corneteiro de batalhão; nasci pobre; vim a ser sanfoneiro, quando essa profissão desclassificava qualquer um; migrei pras terras Sul desconhecido, quando poucos acreditavam em nossa gente, muitos menos em sanfoneiro matuto; rasguei o mundo com as próprias mãos, chegando hoje às raias dos palcos das capitais fazendo da fraqueza a força e venço a troco de largos esforços; e você, Violeta, ainda querer que eu seja comunista?!...

Dona Violeta, na melhor forma de considerar a justiça das ocasiões, pessoa de espírito nobre e altaneiro, escutou com carinho as palavras de Luiz Gonzaga, sorriu satisfeita e, nisso, ouvira o chamado de seu voo, daí ambos se despediram. 

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Ossos do ofício

Grande conflito acontece na consciência do advogado à hora de aceitar qualquer causa, por mais que se pretenda exercer o postulado soberano do contraditório, onde todos merecem a defesa. Há ou não culpabilidade? No entanto existe sempre um lado em que prevalece o senso da justiça na mais ampla nobreza. Daí o anseio do trabalho limpo em favor dos que merecem.

Sobre isso, outro dia Dennis Hartnett me contou caso ocorrido nos Estados Unidos, país onde nasceu, com um amigo de sua família, advogado recém-formado, idealista, disposto a ficar do lado bom das causas, pleiteado em prol de quem esteja correto, no pugilato da Justiça.

Dentre seus primeiros clientes, surgiu cidadão indiciado como suspeito de contrabando de bebida. Meticuloso desde o início da defesa, o paladino do direito procurou se acercar de todos os elementos que evidenciassem a lídima inocência do constituinte, lacrimoso na justificação de ser vítima de trama insidiosa, porquanto não lhe pesasse o mínimo de responsabilidade quanto às acusações. Seria mais um dos casos onde se verifica perseguição do fisco contra alguém inexpressivo e de parcos recursos, e da insistência em prosseguir no ramo do comércio.

Ciente dessa isenção, cuidou logo o advogado de elaborar tese no tanto necessário ao convencimento do Juiz, coletando provas, estudando mais e mais doutrina e arrecadando as melhores jurisprudências. Seguiu bem de perto cada passo, se ocupando do andamento da ação como quem zela  assunto de ordem pessoal, até alcançar admirável vitória com a absolvição do réu.

Só após o encerramento do feito, ainda sensibilizados com a forte argumentação apresentada, resolveram acertar honorários. E qual não foi o espanto do causídico ao ouvir o cliente oferecer proposta reveladora de lhe pagar os serviços com caixas de vinho estrangeiro da melhor espécie, porém que sem a correspondente nota de fornecimento, pois haviam transitado por meio da clandestinidade! 

Aqui bem perto

As cores que mostram o melhor da história aos poucos revelam a necessidade das urgências de querer querer alguém bem de junto ao coração, repouso dos guerreiros insones dessa guerra surda dos verões inclementes que tonalizam os verbos e qualificativos. A fome devoradora das feras viciadas invade a soalheira e trabalha o cerne de todas as questões administrativas no ápice do desejo de contrariar as evidências. Mundo imenso dos demasiados esperares e água nos lábios sedentos das manhãs festivas do Tempo. Pequenos porém preciosos seres invadem o trilho das memórias falando das saudades antigas e dos frutos atuais espalhados na esteira dos primeiros sonhos, otimistas inveterados.

Quando palavras gritam mais alto do que a melodia, nessa hora o intenso apego aos gestos de carinho quase sumiram do universo das criaturas humanas e viraram pura excentricidade dos gastos, nos mercados abertos da prezeirama espraiada pelo espaço ocupado das velhas angústias. 

Num dia qual este dos namorados perguntando ao coração o que justifica viajar ao infinito das explicações e demonstrar justificativas ainda abertas de folhas de papel crepom, enquanto guerras insistem no comércio armamentista a céu aberto. Quem poderá vencer os instintos e chegar ao pomo do amor verdadeiro é de tal tecido que pretendo falar na força do gesto de contar as histórias que aos poucos revelam a necessidade urgente de querer querer alguém de junto, ao pé das lareiras do coração, repouso de insones da guerra surda que persiste, no deserto das consciências amarrotadas de abandonos, e assim se achar poderoso e garrotear a felicidade possível de tantos outros humanos seres.

Bom, as atitudes nos territórios frios do que a vida produz na Terra significam muito mais do que só repetir os erros de antigamente, velhas garras de bichos que insistem rasgar a própria carne a título de preencher os relatórios do medo e da solidão que de comum predominam, diante das amarguras da esperar de ser feliz. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Sagração de viver

Nessas manhãs frias de junho, nuvens cinza esvoaçando no céu aberto das profundidades audaciosas do abismo, pássaros silenciam à espera do Sol que decerto virá em seguida nascendo no horizonte. Janelas abertas às impressões primeiras da Natureza, o sentimento das pessoas já indica folhas em branco de graves divagações. Assim, bem nesse emaranhado de ausência que compõe o minuto que veio e se foi, resta só, tão só, esta pessoa que contempla o Infinito e alimenta nos dias que permanecem as cores vivas do eito das tantas velocidades. Quais pontos de referência do Eterno, fagueiros, andam os soldados dessa guerra sem fim da Felicidade, amantes de um Tudo imaginável e arqueiros do Nada que perlustra as eras. Sinais de interrogação das vivências, aventureiros dessa fragilidade desenvolvem estonteantes volteios sobre os instrumentos que rumam às esferas do invisível. 

Perante o imponderável das ideias e laçado nos corredores das palavras, há um ser que contempla, espectador da própria sombra, arquiteto de monumentos enfileirados nas histórias que circulam as mentes. Humildes servos das próprias alucinações, portadores das lentes de uma consciência primitiva, no entanto amontoam valores, carregam o desejo e a saudade colados juntos, números somados ao grande todo, interrogações de almas em fermentação.

Quantas e tantas oportunidades que lhes fecharam as portas e seguem realimentando sonhos humanos, peças chave na criação da Eternidade, conquanto máquinas forjadas a responder a solene pergunta das razões de andar aqui nas trilhas do tempo feitos cidadãos respeitáveis de instáveis existências. E nutrir com toda gana o peito de forte anseio e permanecer fiel aos postulados cruciais, motivo justo de conter em si o condão da sorte. Ninguém que se preze abre jamais do direito da perfeição, possuir nos pulsos o mistério da realidade que testemunha certeza nos passos. 

Essa libertação impaciente oferece o prodígio que Alguém um dia depositou à nossa frente, de viver no fito de chegar à resposta otimista do que somos nós para sempre.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Como lidar com a sombra

Há dentro das pessoas humanas setor em elaboração, matéria prima do Si mesmo, algo que revelará o sonhado progresso rumo aos níveis superiores da auto percepção. Essa tal região da alma denominam sombra, no espaço das terminologias da ciência psicológica. Território inexplorado, entretanto posse de todo indivíduo, oferece meios de libertação das malhas do egoísmo, no entanto a exigir na ação gana de herói, transcendência das malhas dos vícios na demanda do Santo Graal das lendas arturianas.

Como lidar com a sombra em um relacionamento ideal indica potencialidades até então escondidas sob os escombros da natureza, habilidade que reclama conhecimentos de ordem moral e ética para cruzar o pântano da involução neste mundo cheio dos desafios necessários e criar condições na personalidade em crescimento.

Isso determina esforço continuado de aceitar ser ainda limitado, portanto admitir que não se é puro no âmbito espiritual, e se está a necessitar do exercício da renúncia aos prazeres da carne.

Daí virá conter as emoções negativas sujeitas a invadir o cotidiano e impor restrições da fraqueza animal, instintos e impulsos perversos apenas reveladores do que há de se vencer. Nem por isso padecer sob a culpa e a vergonha de transportar essa carga em decomposição nos sentimentos e atos negativos.

Depois, dominar as projeções da gente na imagem que se faz dos outros ao considerá-los aquilo que surge por causa das limitações particulares. Trabalhar a honestidade e outros valores bons da amizade nos relacionamentos e na comunicação com os demais. Adotar a imaginação criativa de sonhos, desenhos, pinturas, escritas e rituais para revelar o Eu que antes ficara reprimido tanto tempo na história dos que vivem.

Conquanto pese milhões domar a sombra dentro de cada ser, isto produzirá maiores e melhores possibilidades no beneficiamento da nuvem escura da sombra coletiva que, às vezes, parece querer negar esperança a todos nós.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Aonde nos levam as palavras

Os polinésios, povo que conquistou o Oceano Pacífico em passado remoto, liam a existência de outras ilhas ainda que distantes através das ondas do mar que lhes batiam nas praias. Desenvolveram, então, sistema de localização de novas terras suficiente a viajarem milhares e milhares de quilômetros até chegar ao destino, isto por meio dessa leitura intuitiva e profunda. Algo semelhante, no campo das vibrações das energias que cercam a todos, às palavras ditas e jogadas ao vento, ondas que vagam no ar das consciências de certeza com a finalidade extrema de mostrar os caminhos pertinentes da libertação. Há tantas palavras perdidas nesse mar de sentidos que existiria destino aberto que aguarda leitores e ouvintes de vistas acesas, porquanto em tudo persiste a coerência natural dos fenômenos. No tal procedimento, restariam, tão só, os valores da interpretação do quanto se escuta, no intuito de obter finalidade.

Mar aberto de compreensão habita, pois, o setor interno das criaturas humanas. Fruto da cultura e do aprimoramento dos gestos, infinitos oceanos e ilhas restam a conquistar dentro da própria existência pessoal, porquanto ninguém preenche sozinho o território das vivências. Dorme por debaixo dos travesseiros da história a fortuna monumental das pedras preciosas de resolver mistérios em proporção bem maior do que suportaria o pensamento calcular durante vidas inteiras.

A herança cultural da Humanidade dispõe desse poder incalculável de transformação ainda desconhecido da grande maioria dos habitantes do chão. Educar contém tal poder de usufruir desse patrimônio a olhos abertos desde que dominado e transmitido com a força da sabedoria. 

No entanto insistem muitos em dormir sobre glórias frágeis do prazer, anos e séculos sucessivos, determinados, quiçá, receber mais de mãos beijadas o que lhes vem aos pés nas ondas incansáveis desse mar de civilização, escravos de dolorosa acomodação. 

As palavras dizem e poucos ouvem, no som das trombetas que despertarão os arautos dos dias brilhantes do futuro em forma de Salvação verdadeira.

sábado, 6 de junho de 2015

Coerência

Dentre as tantas histórias de Francisco Cândido Xavier consta que, certa vez, o médium viajava de avião, na época dos resistentes DC-3, tradicionais bimotores a servir nas linhas aéreas do interior do Brasil, quando a aeronave resolveu falhar um dos motores em pleno voo
, para desespero dos que a ocupavam.

Mobilização geral na tripulação, por si só conformada, nessas horas difíceis. Os passageiros, todavia, entraram em pânico e desalento, tumultuando de incomum agitação os céus tranquilos das Minas Gerais.

Chico Xavier também não ficou de fora daquilo de emoções intensas nos momentos críticos. Entrou extremoso no clima que se configurava. Corre daqui, corre dali, braços aos ares, mãos a coçar a cabeça, gritos, aflição que tomava conta dos protagonistas, nas ensolaradas nuvens lá de cima.

Esse instante de gravidade fê-lo lembrar do seu guia espiritual, Emmanuel. Naquilo tudo, recolheu-se aos mais íntimos pensamentos e ainda conseguiu estabelecer contato e emitir pedido de urgência ao bom espírito, dada a situação vexatória por demais aonde padecia.

Naquele meio tempo, o comandante estabelecera providências e buscava aeroporto próximo, a fim de realizar o pouso forçado, quando Chico avistou, deslocando-se pelo intervalo das poltronas do avião, chegando na sua direção, a figura benfazeja de Emmanuel, motivo inigualável da mais pura felicidade do médium.

- Sim, Chico, me chamou? – indagou a princípio.

- Chamei, chamei – respondeu ofegante o sensitivo mineiro.

- Pois diga de lá o que com isso pretendeu.

- Ora, Emmanuel, não vê o que se passa comigo, no meio desse sufoco? Os acontecimentos a seguir como vão, e morreremos todos, sem qualquer apelo.

O espírito olhou em volta, prudente, reconhecendo a agitação que contagiava os ocupantes do vôo tumultuado. Outra vez fitou Cândido Xavier e disse:

- Sei, Chico, que ocorre tudo isso. Vejo o medo que invade os corações do grupo de que fazes parte, nesta hora – seguiu dizendo: - Contudo trate de adquirir a calma; se comporte à altura; controle seus nervos; dê exemplo de quem sabe das coisas do outro lado da vida.

- Mas, Emmanuel, o que espera para nos auxiliar a todos? Não observa que posso a qualquer momento desencarnar com a queda do aparelho? – e, quase a chorar, acrescentou: - Vou morrer sem ver os amigos, parentes...

- O que é que tem demais, Chico? Por isso mesmo, então, domine o desespero e morra com educação. Ao menos isso, morra com educação.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Asas que voam

Pelas frestas da janela, essas lembranças invadem o quarto sombrio daquele tempo escorrido nas noites do passado. Uma vez, recordo bem, reservara a mim hora de solidão. Apenas a porta fechada do banheiro deixava entrar por debaixo réstia de luz acesa, quase deixando entrever o vazio do ambiente. Piso de madeira. Rede armada. Estante a cobrir parede lateral. Birô com máquina de escrever em cima. E no rés do chão a eletrola que, no escuro amortecido, tocava o disco de Gal Costa dos anos 70. London, London. Hotel das Estrelas. Deixa Sangrar. Você Não Entende Nada.

Astral cheio de intenso fastio generalizado. Encontro comigo mesmo. Anos de chumbo no País. Vazio descomunal a rolar por dentro e em torno de mim. Todas as pontes destruídas. Atmosfera brilhante de feras no cio armadas de agressivo abandono. Eu ali foragido, à espera dos dias porvindouros. Notas musicais rolando no espaço, refeitas nuvens de fumaça espiralada. Estranhas, expostas na angústia enjoativa dos versos circulares das canções.

Marcas de ferro, na lâmina da pele desse pretérito que invadiu as entranhas dos idos futuros. A sensação das certezas de trilhos abertos nos passos adiante. Minutos eternos. Pássaros insistentes, contínuos véus ao vento. 

Pouco persistiu do instante exato, no calendário. Persistiram, no entanto, as emoções de invasão, no desencanto assinalado – extremos limites territoriais de transformar lembranças em fiapos de sobrevivência que me escorriam da ponta dos dedos da alma ao chão do quarto atemporal comigo deitado enquanto os outros, lá fora, dormiam a sono solto. 

Deixei rolar mais um e mais o mesmo disco a fio. Nenhuma pergunta além do que acontecia na música. Cabeça entregue a si. Olhos queimados da véspera. Saturação do desgaste nas mesas dos clubes e bares. Buscas inúteis de não sei o que. Forte pancada no peito, formas gasta de investigar a realidade corrosiva das notícias, portos rotineiros, blocos compactados e chamas apagadas.

Assim, voltar no tempo à música daquela noite antiga. Ouvir Gal Costa e o disco de 1970. Sinais da geração. Amplas cicatrizes, folhas secas que percorriam as veias, os ouvidos, rasgos finos, canais e pistões em surdina. Moléculas. Sabores de fígado que voltavam ao paladar. Atabaques. Pandeiros. Tambores. Totens dominantes, somas de pedaços, provas do delito de sonhar que imperava no repasto conservado no transitório. A saudade rediviva nas doces esperanças. Ninguém pensar em volver para dizer a história, cúmplices da ausência de depois. E os discos retornam ao firmamento aluminado, quais discos voadores, no cumprimento de missão adrede combinada em reinos siderais do infinito.

Pingos nos iii suaves espumas, vou me procurar na Lapa, quarta-feira de manhã. Toques de senhas misteriosas, que repetem as entradas de cena e alimentam enigmas de outras ocasiões semelhantes, noutros palcos.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Tempo, a pulsação do Universo

As palavras, quando insistem, acham jeito de sair dalgum modo... Querem dizer o que a vontade quer silenciar... Nisso vencem e chegam cá fora ainda molhadas no instinto de falar falas que querem elas dizer, independente de a gente possuir força de demovê-las desse espírito de liberdade que lhes caracterizam a natureza de palavras que vêm cheias do gosto de expor as frases, as sementes da compreensão. 

Desta vez, dizer do poder inimaginável do fator Tempo, sujeito/objeto inevitável onde haja existência. Esse ritmo constante do coração das pessoas, dos animais, átomos, águas, nuvens que deslizam pelo céu; dos motores, das batidas de conjuntos musicais, relógios e horas, em tudo por tudo a eterna continuação das máquinas infinitas a comandar o sistema universal, toque de extremos que se encontram sem jamais fugir da linha imaginária dos córregos, rios e praias infinitas da constância. Lá onde persista a sobrevivência do movimento vital, ali dormirá acordado o pulsar essencial das tramas, na cortina que envolve os berços.

Em profunda reverência, o tom festivo das melodias qual quem talha as molduras de quadros monumentais, ali os cuidados da criação elege resultados mil de impressões definitivas numa saudade que vem e volta. Gravações de páginas divinas, o Tempo mexe na gente lá por dentro, contando das buscas inevitáveis do momento seguinte, aspiração dos que precisam tocar as caravelas do destino aos portos temporários da felicidade.

Quando menos importa, despertamos outra vez ao sabor dos sonhos e andamos algumas braças mais, nessa jornada pela obtenção de novos amores, na intenção forte dos desejos maiores que nós, sabores guardados na imaginação da procura. 

Ninguém fugirá, pois, à marcação dos calendários da sombra que acompanha todo passo, irmã gêmea da presença no seio das criaturas, caldo grosso de metais derretidos na alma. Às vezes encapuçados de vaidades pegajosas, segue o peregrino rumo a intervalos que contam só das travessuras do Tempo nos riscos da pele, cicatrizes e rugas que lhe compõem a história lavrada de perdidas atitudes. E os dias revelarão o sentido da reverência ao herói de todos os labirintos, deus da Verdade absoluta. Ele, Tempo Rei em tudo quanto há. 

A barba e o frade

Depois de raciocinar um tanto, o frade optou por deixar a barba crescer. Interpretara ser a natureza que fizera desse jeito, assim devendo seguir. Quando cofiava o queixo peludo, pensava no jeito de quem obedecia por conservar a espessa barba quase passando do peito, ancorada no avantajado bucho a lhe servir de moldura.

Os alunos respeitariam frei Atanásio de qualquer modo, pois avistavam nele o exemplo de dedicação ao magistério com carinho especial, além de saber a fundo língua inglesa e biologia, as matérias de sua predileção, que transmitia nos dois turnos do colégio.

A confiança que concedia a seus alunos permitiu, naquela manhã, dar ouvidos a Tenório indagar o uso da sua barba na hora de dormir:

- O senhor bota dentro ou fora do lençol a barba, professor?  

O bom frade aquietou. Perquiriu da memória a resposta. Nada, nada se ofereceu de imediato. Portanto, sem dispor dos elementos necessários, não conseguir lembrar as coisas acontecendo debaixo dos lençóis noturnos. Sorriu desconsolado, levando a sério o assunto. 

Disse ao pequeno que deixasse a pergunta guardada e a refizesse numa outra ocasião, achando houvessem lhe pegado em grave desatenção consigo próprio. Observar-se-ia melhor das próximas vezes.

De noite, cumpriu a disciplina e se recolheu à cela, de pensamento ligado na pergunta do aluno. Num comportamento fora do habitual, zeloso afagou a cama, preparando-se para o sono...

A surpresa maior lhe esperava. Nada obedecia ao pretendido. Buscava jeito de um lado, de outro. Revirava daqui, dali. Lençol faltava nos pés, na cabeça. E a barba necas de alojar, esquentar canto. Por dentro do cobertor, espinhava, incomodava como nunca antes. Por fora, aí também não funcionava. Por fora, por dentro... Qualquer das posições causava-lhe desconforto. Rejeição total do costume que nem chegava à lembrança das noites anteriores. 

Espantado com aquilo, o sono viajou para muito longe. No seu lugar apresentou-se a indesejada vigília. Noite inteira e o frade manteve os olhos arregalados. Aquilo, sim, pôde classificar de noite em claro.  

Cedinho, quase ainda no escuro da madrugada, saiu calorento, banhou o rosto e desceu ao pátio do colégio, onde lia o breviário. Outro espanto. Quem primeiro apareceu no corredor: Tenório e sua carinha adolescente. 

De sorriso nos lábios, parecendo saber tudo que se dera durante a noite do religioso, logo veio perguntando:

- Aí, frei Atanásio, de que lado fica a barba quando o senhor dorme?

Nessa hora, o frade ferveu por dentro. Sem contar conversa, naquela hora dirigiu ao aluno extensa preleção sobre gente bisbilhoteira que, esquecida dos modos sobre o respeito, invade a intimidade alheia. Calado, atencioso, o estudante a tudo ouviu, decidindo não mais voltar a falar no assunto ao professor, que, dali adiante, sempre conservaria raspado o simpático rosto.


Nota: História ouvida do padre José Honor de Brito.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Sou o que faço de mim

A tradicional conceituação de existirem os três aspectos comuns de personalidade para formar a constituição da individualidade, quais sejam id, o eu primitivo; o superego, o eu ideal; e o ego, o centro real da pessoa, a consciência do eu, o que representa a base original de onde procede ao que se fará de si mesmo. Tais são conteúdos iniciais de um longo itinerário a chegar na transformação do ser rumo à realização maior das existências, o que se dará sob as leis fundamentais do reconhecimento dessa longa estrada, até a individuação definitiva. Há, em consequência dessa dialética, uma personalidade suprema das individualidades em formação, o que admite, desde as religiões mais arcaicas, passando pelas teses estruturalistas das escolas científicas que estudam a psicologia humana, uma confluência ao Eu verdadeiro, que ora recebe nomes diversificados, a depender dos códigos que aprofundam o assunto. Cristo, Senhor, Consciência Cósmica, Suprema Personalidade de Deus, Eu Superior, Krishna, etc.


Enquanto de um dos lados, na vida de relações, observa-se essas configurações para a formação da personalidade instalada em todo ser humano, o aspecto instintivo animal; o eu moralista que a tudo define sob o prisma da fundamentação teórica do que deveria ser e ainda não o é; e o eu das relações consigo mesmo e com o universo, o que expressa nomes, pessoas, memórias, pensamentos, sentimentos e valores externos do ente social; no outro pólo dialético apenas a ordenação objetiva da síntese, ou nova tese, indica tão só a completa integração da personalidade com a natureza mais perfeita, inclusive acima dos juízos de valor, justificativa da existência da espécie e causa primeira à qual regressará à medida que reencontre o ele perdido, na vertente universal de tudo. Será o regresso à casa do Pai, qual dito nalgumas escolas místicas.

Todo o sentido daquela interpretação fragmentária da realidade, que obedece ao prisma dos três aspectos científicos das variações que formam a personalidade conhecida, apenas, portanto, significa uma fase primária de localização dos conceitos do eu consigo próprio, à mercê dos vetores da realidade interpretativa enquanto inexiste a conversão a que se destina no objeto do processo vida, uma razão maior e motivo primordial da existencialidade humana e dos demais seres e objetos materiais.

Ao instante da percepção criadora do Ser definitivo, o que aborda a epopeia da civilização no decorrer da história das existências, revela em si o ápice da criação e o crepúsculo das coisas na matéria, conquanto fundir-se-ão as consciências na luz espiritual da imortalidade eterna, a resultar na totalidade plena e satisfação absoluta da existência e do movimento que formam a Natureza.