segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Boqueirão de Lavras

A cinco quilômetros da sede do município de Lavras da Mangabeira, região do Sertão do Salgado, no Estado do Ceará, localiza-se um dos mais belos fenômenos naturais de que se tem notícia em todo Nordeste brasileiro, o chamado Boqueirão de Lavras.

Talhado em serra de primorosa formação calcária, erosão espontânea ocasionada pela força das águas, o monumento geológico apresenta fenda de 40m de largura por 96 de altura, na Serra do Boqueirão, lavrado pelo leito contínuo do Rio Salgado, um dos afluentes principais do Jaguaribe, cujas águas desses trechos alimentam o Açude do Castanhão.

O Boqueirão representa dois contrafortes rochosos de massa pouso resistente, segundo o engenheiro inglês Jules J. Revy, responsável pelos estudos preliminares realizados para uma provável construção, naquela área, de reservatório, obra cogitada no tempo do Império, o qual ainda acrescentou ao seu parecer as outras dificuldades técnicas restritivas que se enfrentaria de fixar escoadouro sobre rocha sólida (à época inexistiam os recursos materiais desenvolvidos pela moderna tecnologia da construção posterior), caso levada adiante dita pretensão.

Cantado em prosa e verso através das produções de quem o conhece, este tradicional evento reserva no seu interior aspectos peculiares de relevo pitoresco, quais salões atapetados, móveis diversificados de mesas, altares, todos guarnecidos de toalhas, baixelas ornamentais e o desenho nas pedras de um carneiro, imagem encontrada pelos pesquisadores noutros fenômenos de cavernas, figura recorrente e símbolo mágico dos lugares montanhosos.

Numa longa caverna vazada sob as paredes de pedra do Boqueirão, depreende-se uma mãe d’água, isto é, lago interior cavado e conservado no íntimo dos penhascos, efeito visível noutros rios e que persistentes mesmo nos períodos de estio. Constituídas de águas cristalinas e calmas, apreciadas pelos animais silvestres, as mães d’água são chamadas também de camas da Iara, a deusa das águas. Segundo a tradição, em circunstâncias próprias, de raro em raro, essa personagem mitológica seria vista pelos afoitos aventureiros que procuram esses pousos recolhidos.

No Boqueirão de Lavras, a lenda marca presença por meio do folclore regional da Iara, bem como em torno da existência do Carneiro de Ouro, avistamentos narrados em ocasiões especiais pelos habitantes da região, afirmações legendárias que servem de contorno à beleza do marco original até hoje pouco explorado em termos turísticos, no que pesem as políticas oficiais do setor, no mundo inteiro.

A gruta desta formação rochosa fica numa elevação de cem palmos acima do leito do poço, abóbada achatada onde pululam milhares de morcegos, bichos típicos dos sítios longe do movimento intenso da civilização.

Na verdade, o Boqueirão surpreende os visitantes ocasionais do município, sem, no entanto, dispor do mínimo de infra-estrutura, o que facilitaria sua melhor abordagem. Uma estrada carroçável de piçarra permite o acesso de automóveis, contudo carece do mínimo de conforto aos que pretendem demorar algum tempo no local. 

(Foto: Jackson Bola Bantim).

domingo, 29 de setembro de 2013

História Eclesiástica de Lavras da Mangabeira

Em minhas mãos o livro mais recente de Rejane Monteiro Augusto Gonçalves, denominado História Eclesiástica de Lavras da Mangabeira, lançado no Cariri por ocasião do bicentenário da Paróquia de São Vicente Ferrer (30 de agosto de 2013). Na época, um filho da localidade, Padre José Joaquim Xavier Sobreira seria seu primeiro vigário.

A ilustre pesquisadora vem assim de produzir trabalho da maior envergadura, ao nível de qualidade de outros trabalhos da sua autoria, dentre eles a reedição do livro Os Augustos, cuja ampliação atualizou do que originalmente escrevera Joaryvar Macedo.

Nessa obra que vinda a lume, circunscreve desde os primeiros passos eclesiásticos brasileiros, com ênfase no crescimento da instituição romana pelo Nordeste. Rejane mergulha nos detalhes minuciosos dos registros da paróquia de Lavras, obtendo acervo definitivo e valioso a quem pretenda conhecer a fundo todos os meandros da Igreja nas terras sertanejas.

Desde os passos mais remotos do Catolicismo, dos vínculos com o Império, o livro disponibiliza datas e feitos, através de estilo estruturado, demonstração do fôlego empregado na intenção que abraçou com tamanha virtude.

Em acréscimo ao mérito de cumprir o objetivo a que se propôs, e recolher no tempo os elementos históricos da antiga freguesia até os dias dagora, a autora ainda acrescentou à edição rico acervo fotográfico e mapas relativos ao território da pesquisa, oferecendo, inclusive, gráficos e nomes das autoridades que compunham o universo político de épocas distantes do lugar.

A publicação, nas orelhas, contém texto do escritor lavrense Dimas Macedo, paladino incansável da intelectualidade cearense, qual Rejane Monteiro também titular de cadeira na Academia Lavrense de Letras.

Digno, pois, dos merecidos elogios o presente livro da pesquisadora, o que, decerto, vem enriquecer os estudos da nossa vida religiosa sob o prisma da civilização europeia em terras do Novo Mundo.  

Dulcéria e Fideralina

Aos interessados na história do feudalismo nordestino é fato consumado o mandonismo de Fideralina Augusto Lima, no correr das léguas em volta de Lavras da Mangabeira, no Ceará. Entretanto a matriarca topou com adversidades no império, dentre as quais de pessoas da própria família. Nas suas irmãs mesmas, Dulcéria Augusto de Oliveira, de alcunha familiar Pombinha, esposa do autorense Simplício Carneiro de Oliveira, e seus filhos, lhe confrontariam a autoridade dentro do clã dos Augustos.

Segundo o escritor Dimas Macedo... Conduta oposicionista (essa) que a velha Pombinha soube muito bem transmitir aos seus descendentes, especialmente aos coronéis José Augusto de Oliveira e Antônio Augusto de Oliveira, o primeiro dos quais, em Lavras, por dilatados anos, liderou a militância oposicionista ali desencadeada contra o Coronel Gustavo Augusto e seus comandados.

Ferrenha antagonista da irmã mais velha, Dulcéria sustentaria distância entre si sobretudo depois das ocorrências trágicas de 09 de janeiro de 1922, quando, nas ruas de Lavras, numa pugna aberta, pereceram o major Eusébio Tomás de Aquino e dois netos de Dona Pombinha, os irmãos Simplício Augusto Leite e José Leite Filho, Zezinho, sendo este também genro de Fideralina, cuja facção pagaria o preço elevado, um ano depois, da perda do Coronel Gustavo Augusto, em Fortaleza, vítima de atentado perpetrado por filho do Major Eusébio. O custo dessas vidas causaria, pelo resto da existência, afundamento intransponível do fosso existente no seio das famílias envolvidas.

Seus inimigos políticos mais notáveis foram os filhos de Dulcéria Augusto de Oliveira, “a velha Pombinha”, irmã de Fideralina: os coronéis José Augusto de Oliveira e Antonio Augusto de Oliveira, o primeiro dos quais liderou, em Lavras, a militância oposicionista contra o coronel Raimundo Augusto Lima. Maria Gláudia Férrer Mamede

Já na idade provecta, Dindinha, sentindo o peso da idade, enviaria emissário até Pombinha, na intenção de merecer o perdão na forma uma visita de cortesia ao Tatu, onde vivia, e assim regressarem as boas relações.

Dulcéria, no entanto, apenas responderia que nada mais tinha contra a outra, porém que ambas permanecessem cada qual no seu lugar. E só. 

sábado, 28 de setembro de 2013

Abençoada liberdade

No Dilúvio, quando Noé recebeu a atribuição de construir a arca e esperar que chovesse o tanto de cobrir a Terra, por certo jamais imaginara vir ser escolhido naquela missão tão importante. Porém nunca duvidou, a despeito da polêmica motivada pelo assunto. Transformou fraqueza em força, animou a parentela ao trabalho, reuniu animais e acreditou (sobretudo), e ainda hoje imaginamos como pôde o engenho humano participar com tamanha envergadura na luta da sobrevivência.

A nós não compete julgar, como também não cabe duvidar que exista o Poder, fonte irradiadora de vida, função máxima do Ser, que provas por si só determinam quando muito até que ponto nossa compreensão é limitada nas razões da Eternidade.

O gesto de escrever permite, no entanto, deixar que o papel lance o sonho nas planícies do inatingível, aonde reunir ficção e elaborar ferramentas de fechar contatos e acender consciências. Mas o espaço tem de ser preenchido a todo custo, catando letras, sílabas, palavras, frases, pretexto de alguém nos acompanhar na montagem da cena do dizer.

Isto, todavia, não é bastante para que observar o trilho ininterrupto da história, perdidos que, por vezes, somos nos melhores propósitos, presas fáceis de manias, começos abandonados, fitas, velas, a confundir espelho com fotografia. (O espelho inverte a imagem, equivoca, troca os lados de nossa cara, enganando, remetendo de volta à caverna de onde saíramos um belo dia; pura irrealidade que se instala; ilusão que tritura tempo e seca de cair do pé, raias da imbecilidade).

Temos de perceber essa fórmula mágica da autotransformação, independente de esperar horas mais propositadas. Noés de hoje, alertemo-nos ligados através das parabólicas invisíveis, pois de algum lugar sopra o vento libertador. E a fantasia quase gastou todos os filmes de ação, muita superprodução sem que ainda sejamos heróis além dos banheiros, quintais, churrasqueiras, castelos, confeitarias, arquibancadas vazias, nada além de l5 minutos.

Nesse girar de pneus, rastros e calendários, estômagos secos e bocas amargas, robôs fora de uso. Estacionemos um pouco e sintamos a presença da luz que em cada criatura move a vontade entre faixas, flores, sorrisos, estágios da semente original.

Nuvens e naves riscam o tapete silencioso das estrelas ainda molhadas do frio da noite, quando os animais dormiam obedientes no Paraíso. E insisto em perguntar:

- Quanto falta ainda para outra vez nascer o Sol?...

(Foto: Jackson Bola Bantim).

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A luxúria

Existem palavras as quais a gente ouve e lê desde menino sem penetrar o significado, espécies de laminado onde o pensamento bate e não penetra, talvez por desinteresse, costume, acomodação, ou até mesmo ausência de necessidade.  Uma delas, Luxúriarepresenta, no meu cardápio de palavras, dessas que escaparam muito tempo de maiores aprofundamentos. Agora recente, no entanto, depois de escutá-la a propósito de acontecimento, quis dela conhecer o preciso conteúdo.

A luxúria (do latim luxuriae) é o desejo passional instintivo por todo prazer sensual e erótico. Também pode ser entendido em seu sentido original: deixar-se dominar pelas paixões. Wikipédia. A enciclopédia livre

Depois, a classificação entre os pecados capitais do Catolicismo, as ramificações entre práticas humanas que tendem a instintos bestiais, os vícios de multidões, ambientes lupanares, tendências a grupos de criminalidade, indicam nela fugas desencontradas aos meandros das fraquezas humanas.

No livro antigo dos Vedas, o Bhagavad Gita, faz sua referência, nas palavras de Krishna quando afirma: É a luxúria, nascida dentre a paixão, que se transforma em ira quando insatisfeita. A luxúria é insaciável, e é um grande demônio. Conheça-a como o inimigo.

Nas mitologias, cada civilização ao seu modo analisa e representa o instinto passional sob figurações e deuses, a Afrodite grega; Lilith, entre os judeus; dentre outros mitos gravados nas páginas da história.

Luxúria, que abandona princípios e valores na busca desenfreada dos prazeres da carne, a matriz da beleza desvirtuada pela satisfação embriagadora de raízes torpes, nos perdidos escombros das devassidões e malícias. Na fúria desvairada da obtenção imediata do sexo, contudo, perdições trituram a paz das consciências, a título de libertar os modos sombrios das origens brutais da animalidade.

Assim, quis conhecer da tradução esse termo e registrar no significado o nome de carga semântica que sujeita tirar a paz espiritual das pessoas, caso estas desavisadas se entreguem aos impulsos.    

Quantas e tantas outras citações existem a respeito do vocábulo no texto bíblico, recomendando providências e ações aos fiéis, em todos os profetas, apóstolos, as falas de Jesus.

A Festa da Renovação

Mantém-se viva, nos costumes da região do Cariri cearense, sobretudo junto às famílias simples e humildes da periferia das cidades maiores, das menores cidades e da zona rural, um rito de origem católica denominado Entronização ou do Coração de Jesus, costume popular do Nordeste brasileiro. 

Essa tradição diz respeito à casa. Ao constituir a residência, os seus moradores, de livre e espontânea disposição, estabelecem uma data para providenciar a entronização do Coração de Jesus e do Coração de Maria. Firmam, na parede da sala principal, a que fica defronte da porta de entrada do lar, um santuário, desse modo estabelecendo ali um espaço sagrado, dedicado aos santos da sua devoção. Torna-se esta a sala do Coração de Jesus. Eis o modo que se adota de também consagrar a Deus essa casa.

Na parede, juntos da imagem ou da estampa de Jesus e Maria, reúnem-se outras estampas e imagens de gesso ou madeira, também conhecidas na herança do Catolicismo, desde Santa Luzia, São José, São Jorge, Santa Bárbara, São Francisco, a Padre Cícero e Frei Damião, os santos populares dos nordestinos, dentre outros, postos em nichos ou molduras dos mais variados modelos. Uma decoração de flores artesanais de cores fortes, ao vermelho, rosa, azul, dourado, prateado, amarelo, envolve o lugar, apresentando painel intensa expressão visual, contornado de fitas e guirlandas feitas de papel crepom, papel de seda e aluminizados.

Após a anterior preparação da casa, através de limpeza geral dos cômodos, reboco e pintura, naquele dia escolhido, ao primeiro ato, tudo se volta ao andamento de uma festa social muito apreciada na região, oferecida a todos da comunidade. Dada a proximidade dos festejos do Natal, essa data quase sempre ocupa os meses finais do ano.  

No dia aprazado, de preferência no horário do meio-dia ou às 6h da tarde, aos acordes imprescindíveis de uma banda cabaçal e dos estampidos de bombas e foguetes, inicia-se a festa.

Depois de completados todos os passos do rito formal desse tipo de novena, os presentes retornam à frente da casa, o que nos sítios corresponde ao terreiro, para, assim, poderem apreciar a dança e a música dos cabaçais.

Muitas dessas festas ocorrem de hábito no aniversário de casamento dos donos, ou no aniversário de nascimento de um dos seus moradores da casa, somando-se, em consequência, as duas comemorações.        

A partir dessa primeira entronização, a cada ano, na mesma data, a festa se repente em obediência a igual sistematização. Antes, com a limpeza e pintura da casa, dos ícones e imagens dos santos e, no dia, com o espocar de bombas, fogos, a chegada do povo, da banda-de-couro, seguindo-se depois na distribuição de alimentos aos presentes, sob o clima puro da mais fiel religiosidade.   

Renascer das cinzas

Ave lendária, que, quando na idade do desaparecimento, levanta voo e busca lugar elevado, nos picos das montanhas distantes, estabelece um pouso e inicia o processo de se entrega aos desígnios do tempo.

Após viver os estertores da morte, seus restos entram em combustão espontânea. Queimam até restarem só as cinzas do corpo desfalecido.

Outro período depois, qual semente que brota do chão, das cinzas da fênix surgirá pássaro novo, nova fênix, que reviverá dos restos queimados. Renasce das cinzas, e crescerá na sua rara beleza.
Civilizações remotas guardaram esse mito nas histórias que preservaram. Chineses. Egípcios. Hindus. Persas. Há notícias dele em eras milenares, com descrições pormenorizadas do porte e dos costumes da espécie. Dizem os gregos clássicos que essa ave possui a força suficiente de transportar consigo pesados fardos, até animais gigantescos, e dispõe da força misteriosa de virar uma ave de fogo. Dura na faixa de quinhentos anos, vestida em penas brilhantes, arroxeadas de vermelho dourado, além de tons de azul e branco, no porte aproximado das maiores águias.

Através das avaliações de quem pesquisa a mitologia dos povos, a fênix representaria no inconsciente coletivo à alegoria do nascer e o pôr do Sol. Já estudos cristãos querem nela interpretar a crucificação e a ressurreição de Jesus, na Palestina, que recebeu vida nova em troca da que sacrificara no Calvário. Este o mito do eterno retorno, que corresponde à perpetuação, à sensação da esperança em tudo, o que envolve e conforta o transcorrer incessante da existência.

Heródoto, grego considerado o primeiro a registrar acontecimentos da história, escreveu: Existe outro pássaro sagrado, também, cujo nome fênix. Eu mesmo nunca o vi, apenas figuras dele. O pássaro raramente vem ao Egito, uma vez a cada cinco séculos, como diz o povo de Heliópolis. É dito que a fênix vem quando seu pai morre.

Às vezes procuramos escrever quanto às lendas, diante do prazer que nutre pessoas de gostar das narrativas. Mas chegamos a supor que antes o fizera dentro do mesmo tema. Ainda assim, trazemos a lenda dessa ave, rica de valores imortais.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A lenda de Omulu

(tradição afro-brasileira)

A deusa mais guerreira do Daomé, Nanã Buruquê, apaixonou-se por Oxalá, de quem pretendia conquistar o reino. Ele, por sua vez, não queria envolvimento com outro orixá, pois amava Iemanjá, sua mulher. Nanã, sabendo disso, fez vinho de palma, embriagou-o e seduziu-o, engravidando por via de consequência.

O filho de Nanã Buruquê e Oxalá, gerado na força da desobediência, recebeu o nome de Omulu e nasceu vitimado por feridas deformantes pelo corpo, motivo suficiente a que sua mãe o deixasse abandonado na praia, querendo que o mar lhe tirasse a vida. Avistado por enorme caranguejo, o bebê chegou a perder pedaços da sua carne, ferido que pelas pinças do animal agressivo. 

Quando veio a maré alta que começou banhar o recém-nascido, Iemanjá ouviu-lhe o choro e veio na busca, deparando-se com criança indefesa sagrando e quase morta. Tomada de profunda compaixão, pegou-a nos braços salvando de afogamento iminente.

No observar a redondeza, Iemanjá localizou uma gruta deserta onde acomodou Omulu. Improvisou berço rústico de palhas de bananeira, instalando-o e passando a tratá-lo qual legítimo filho, protegendo-o, alimentando-o com pipoca sem sal nem gordura e aliviando-lhe as dores dos ferimentos.

Desde então, sempre que os afazeres do reinado permitiam, vinha à praia e cuidava do pequeno, amamentando-o e banhando-o nas águas do mar.

Quando sozinho, Omulu percorria as matas e se aproximava dos bichos, dentre eles as cobras, com quem estreitou amizade.

Numa das visitas que recebeu da Rainha do Mar, Omulu se apresentou cercado de répteis, dentre eles perigosa cobra coral de sua preferida. Ao admirar o poder que ele tinha de dominar as serpentes, Iemanjá observou também que crescera e se transformara em jovem belo, sadio e disposto.

Já homem feito, Omulu decidiu conhecer o mundo. Juntou alguns poucos pertences, bornal, bastão e cabaça de água, acompanhou-se de dois cachorros e partiu com destino ignorado, vagando na face da Terra.

Viajava qual esmolé, mendigando o sustento e se dedicando a curar enfermos e a combater epidemias que castigavam as aldeias. 

Quando alimentado, mesmo assim continuava à cata de alimentos para repartir com os irmãos necessitados, convertendo a jornada em serviço de desapego e caridade.

As funções de Omulu se tornaram missão de trazer conforto aos desvalidos que encontrava. Isso, porém, provocou reações desencontradas nas pessoas ruins que, egoístas, nalgumas ocasiões recusavam o auxílio. Por esta causa, contrafeito, o orixá resolveu se embrenha mata adentro.

Nesse tempo, conheceu Ossanha, a deusa responsável pela vegetação. Dela aprendeu o jeito de trabalhar o poder das plantas e desenvolver o dom da cura. Hoje, rico dos conhecimentos da Natureza, segue vagando e ministrando os benefícios da saúde a quem merecer.

Na cultura católica, para uns, o orixá representa São Roque, e para outros, São Lázaro.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Conversa de engenho

As sombras longas do fim de tarde casavam bem com o clima morno que se estabeleceu no beco entre a casa grande e o engenho, onde, acocorados, os homens da moagem ouviam atentos as narrativas do cigano Lourenço a propósito de seus sonhos e andanças pelo mundo, embalados na zoeira festiva da meninada a correr em volta, agitação natural de quem aceita as coisas e nelas se integra.

Fez-se no ar apito estridente do locomove ao término da jornada, liberava no eito a turma dos cortadores de cana, enquanto os ouvintes estiravam na distância o sentimento para buscar a vegetação do outro lado da represa o voo suave das garças silenciosas, salpicando de brancas reticências o azul metálico da tarde em declínio, por cima de troncos calcinados das carnaubeiras; palmas tremeluzentes e ruidosas. O vento, por seu turno, escamava as ondas e distorcia a imagem das nuvens no leito do açude velho.

Palavras e aves do entardecer raspavam de leve os chapéus de palha dos caboclos, retorcidos pelo sol e manchados de suor, noturna sensação de abismo que entorpeceu os ânimos, alguns a esfregar os olhos no canto dos dedos, qual querendo despertar de sono pesado e guardar com esforço o que ouviam.

Lourenço pôs-se de pé, catou as cordas dos burros e bateu-lhes nas ancas, tangendo-os ladeira abaixo na direção do reservatório. Meio caladão, tinha desses instantes de ficar sem saber explicar direito o porquê de se chegar naqueles assuntos graves, novidades antigas do interesse de quase ninguém e necessidade eterna dos mortos e vivos. Saber para onde se vai depois, quando acabar isso daqui.

O focinho dos animais, na calma das águas, ia desenhando movimento de ondas sucessivas chamando a atenção do viajante para o sentido que tomavam, indo quebrar nas margens de pedra e argila ou se faziam mais extensas e rumavam para longe, no leito das águas profundas, oscilando a babugem esverdeada e as moitas de mofumbo adiantadas no lodo, quebrando o repouso das rachanãs e galinhas d’água.

-... Muitas oportunidades individuais - repetiu baixinho as derradeiras palavras de há pouco, querendo gravar, quais saíssem de outra boca que não a sua. 

(Foto: Jackson Bola Bantim).

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Educação doméstica

Dias sucessivos e a criança sofria agressões na escola. Chegava junto aos familiares mostrando sinais de brigas e quedas. A genitora, apreensiva com ditas ocorrências, buscou o colégio visando esclarecimentos, a pedir explicações e providências:

- Três vezes seguidas ele chega de volta com hematomas e outras marcas. O que anda acontecendo na escola, professora? A gente confia o filho e se depara com essas situações desagradáveis. Paciência...

Diante da queixa e também preocupada com a repetição das hostilidades sofridas pelo menino, a titular da sala, atenciosa, considerou que os desentendimentos e as rixas que envolviam o aluno deviam-se à excessiva insistência dele provocar os colegas, aos gritos e mediante gestos de violência. Causava, com isso, respostas que vinham tirando a paz, nos dias recentes das aulas.

A mãe insistiu, no entanto, ainda que fosse ele o iniciador das brigas, que deveriam existir motivos para originar tanta desavença.
A professora, meio sem jeito, então acrescentou:

- Eu já procurei acalmar esses gestos grosseiros que o menino vem apresentando, mas ele responde que são esses os mesmos modos com que seu pai trata, em casa, sua mãe. Daí, mãe, venho achando dificuldades em modificar a maneira como se relaciona com os coleguinhas. 

Depois de ouvir as palavras sinceras da professora, cabisbaixa, querendo razões que justificassem uma resposta, todavia colhida de surpresa, a mãe só explicou:

- Não, não é bem assim – e saiu silenciosa.      

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Alta madrugada

Há poucos meses dali, Wagner Dantas, um dos meus cunhados, fora vítima do acidente aéreo que, em 1982, comovera o mundo inteiro, com a perda de mais de 100 vidas, na Serra da Aratanha, já próximo a Fortaleza, voo que procedente de São Paulo. Sua esposa, Lydia, a primeira das minhas três irmãs, ficaria com quatro os órfãos de pai, Juliana, Marcelo, Raquel e Renata. Esse imprevisto marcou nossa família de modo intenso. Vivíamos a fase de adaptação. Minha mãe e eu passáramos algumas semanas juntos deles, quando busquei auxiliar no que pudesse para a reestruturação dos negócios, enquanto minha mãe assistia os familiares dentro de zelo e superação também pessoal, pois as dores da perda lhe tocariam profundamente a saúde.

Na sequência dos acontecimentos, meio de noite já madrugada, tão logo voltara de Fortaleza, em Crato, minha mãe escutaria, vezes insistentes, a campainha do telefone, até resolver ir e atender.

Do outro lado da linha era voz masculina arrastada, falando sob esforço inaudito, querendo falar algo, porém lutando na articulação das frases, dada rouquidão quase instransponível. Ainda assim face as limitações do interlocutor, minha mãe conseguiria escutar algumas palavras que me diria pouco depois, as quais transcrevo resumindo a mensagem que recebera:

- Dona Lourdinha, cuide dos meus filhos... Cuide da minha família...

Sob impacto do que ouvira, tudo de reação que esboçou foi recomendar a quem falava que deixasse de brincar com assunto de tamanha seriedade, contudo assustada e pensativa.

Isso me chega à memória, passado tanto tempo, no entanto face considerar oportuno o registro, pois existem pesquisas atuais de captações de sinais de outros planos de vida onde inteligências buscam se comunicar através do uso dos instrumentos eletrônicos tão em voga nesta civilização. A prática desses estudos recebe o nome de Psicotrônica, ramo relativo à Parapsicologia, ciência ora em desenvolvimento.  

sábado, 14 de setembro de 2013

O hábito do trabalho

Só sabe o gosto desse costume positivo quem trabalha. Enquanto desocupado, haja dificuldade em preencher o ritmo constante do tempo. Tal prazer de executar as funções do trabalho alimenta de satisfação viver. Ao final do dia, além da consciência em paz, chega leve o sono e inunda de repouso os que desenvolveram atividades produtivas, honestas e justas, no decorrer de horas, nas funções sadias de estudar e trabalhar.

Uma oração, o trabalho alimenta e resulta em frutos bons. Tão bons que proporcionam saudáveis ocasiões no período quando diminuem as energias físicas, na existência das pessoas.

Enquanto outros hábitos prejudicam, a lamúria, os vícios, a preguiça, o trabalho não deixa a idade escorrer pelos dedos e nada de seu construir dói numa situação de saber que as oportunidades sumirão nas curvas do que fica lá atrás.

Se há um remorso mais forte do que outro, o do tempo perdido deixa trilhas de solidão maiores de todas no dentro das pessoas que adormecem sobre o vazio, que largam na estrada a saúde e das possibilidades, duplo abandono em forma de saudade sem jeito, nas ilusões da inutilidade.

Trabalho fortifica, enche de sabor as válvulas dos momentos que deslizam rápidos pelas ladeiras da memória. Pelos sentimentos, toca a música alegre do valor daquilo que transforma por nossas mãos e nossas mentes. Durante o trabalho, fogem selvagens os animais da imperfeição.

O progresso do desenvolvimento de tudo quanto até aqui a raça humana elaborou nasceu do esforço comum de quem trabalha, nas multidões e gerações que acreditaram no vigor da ciência e nos elementos da criatividade.


A primeira revolução da história por isso aconteceu no instante preciso da inteligência despertada nas oficinas do trabalho, semente de toda felicidade individual e coletiva.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Nas areias da Eternidade

Às portas do Infinito onde viaja nossa humanidade, entre o mar espiritual e a praia que pisamos às vezes de pés molhados, de um lado, a terra quente logo ali; do outro, de olhos fitos no horizonte das águas, ou apreensivos, buscaremos as árvores do Sertão, na intenção de mergulhar o interior do conhecido, ou afogar a solidão da alma nas profundezas do oceano impossível.

Assim, nas avaliações filosóficas, cogitações das possibilidades do pensamento e sentimento que somos, todos querem a custo desvendar o mistério do aqui e do agora.

Ainda que disséssemos conhecer os caminhos do Desconhecido, algo restaria inatingível aos instrumentos da ciência material na busca de solucionar e comprovar os enigmas da existência. Na fronteira da mente com a imaginação transitam esses viajantes das estrelas. Nalgumas horas, tocam os dedos nas muralhas da Matéria; noutras, em novas situações, respiram o ar fervoroso das chamas, na Fé, e tocam as portas das igrejas.

Contam as vozes das civilizações, desde remotas eras, os sinais que sábios desvendaram no íntimo da condição de seres viventes na carne. Descrevem também detalhes mínimos da Vida em planos além da carne, nas aventuras transcendentais. Noticiam sabores dos páramos eternos quais andarilhos a convidar transformações de comportamento dos que aqui permanecem presos ao chão.

Tudo isso elementos de percepção, o que impossível será obrigar aceitação dos demais só do querer de uns. O próprio método científico exige prova, nas conclusões definitivas das afirmações.
Do mesmo jeito que o espiritualista oferece os meios da aceitação da verdade infinita dos imortais, o materialista cogita de retornar às matas do interior mais pesado que o ar, nas visões de praia desse encontro das duas realidades, sem, contudo, poder impor resultados exclusivos, porquanto na consciência pessoal impera o crivo da visão do Eterno em doses menores dos tempos atuais.

Diante, pois, dos limites da nossa percepção caberá erguer toda força da humana compreensão e exercitar a inteligência de quem herdou pequenos grãos de pérolas, oferecendo meios à Luz da certeza da Perfeição Superior que tudo rege e governa.   

(Foto: Jackson Bantim).

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O profeta Jonas

Um dia, o Senhor dirigiu-se a Jonas, filho de Hamitai, e determinou que ele fosse a Nínive, cidade pagã de reprováveis costumes, levar aos seus habitantes  palavras de salvação.

No entanto, Jonas o que fez: arrepiou caminho. Desceu a Jope, onde, no porto, avistou fundeado navio de arribada para Társis e meteu-se no rol dos passageiros, disposto a fugir de qualquer modo da face do Senhor.

Em alto mar, porém, quando a viagem parecia transcorrer na perfeita normalidade, sem transtornos ou percalços, cresceu monumental tempestade, a todos espavorindo de causar dó e piedade.

Nessa hora difícil, a sono solto, Jonas repousava no porão do navio, isento de quaisquer preocupações terrenas. O comandante, que lhe conhecia os dotes espirituais, pediu que ele orasse em favor dos aflitos, naquele instante de perigo. De logo reunidos no convés, os membros da tripulação jogavam a sorte e reconheceram na figura do profeta o motivo da iminente tragédia que rondava a expedição.
Daí, quiseram saber mais do passageiro, quais suas origens, profissão, e detalhes úteis que falasse dos maus presságios circunscritos.

Ele lhes respondeu: - Sou hebreu e adoro o Senhor, Deus do céu, que fez os mares e a terra. Livro de Jonas l:9

Cresceu-lhes ainda mais o medo, porquanto descobriram a intenção do profeta de esquivar-se perante o compromisso firmado com o Pai de Tudo, levando Jonas a indicar o jeito que via de escaparem daquilo, só que deviam atirá-lo às ondas fatais do mar revolto, remédio certo.

Eles ainda resistiram à ideia do estranho e, por isso, clamaram aos céus misericórdia. Todavia acabaram aceitando lançar ao mar o profeta.

A sequência dos acontecidos torna esta narrativa de domínio público. Nas águas convulsas, Jonas viu-se engolido por baleia descomunal, em cujo interior permaneceu três dias e três noites, tradicional conhecimento da humanidade.

Na barriga do peixe, ele reergueu as forças e pediu ao Senhor, com sofreguidão, que voltasse a ver a luz do dia. Na aflição, afirmou sua irrestrita obediência aos fatores do Bem. De volta ao chão firme, a ordem que recebeu repetia os inícios da história, que seguisse na direção de Nínive, a salvar-lhe o povo, reino que chegou após três dias de marcha cerrada.

Nas ruas, pregou com abnegação os rigores da mensagem fatídica: Ainda 40 dias, e Nínive será subvertida, clamava sensibilizando os ninivitas. O rei do lugar aquebrantou a alma e mobilizou toda população pelos caminhos da virtude. Juntos, jejuaram. Privaram-se. Converteram-se. Arrependeram-se e oraram com força. 


Por conta desse feito de Jonas, Deus revogou o futuro cruel de Nívive, exemplo clássico de transformação coletiva, na voz dos antigos profetas judeus. 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Acerto de contas

Logo cedo, de espingarda em punho, o caboclo entrou na mata à busca da mistura do dia para as refeições da família. Andou muito e nada achou que atendesse o objetivo. De mãos abanando, desanimado, retornava ao casebre, quando avistou bela cabra a lhe cruzar o caminho. Sabia ser de um dos vizinhos, seu compadre, dono de muito bicho, que os vinha aumentando com facilidade. Coçou a cabeça, mediu as consequências e viu justiça no ato que planejava em nome dos filhos que precisavam urgentemente sobreviver.

Auscultou as imediações, se viu distante, solitário: a ocasião faz o ladrão, o povo diz, enquanto o isolamento propiciou a impunidade. Armou o gatilho e derrubou a marrã de criação. Arrastou-a para o mato; tirou o couro; partiu os ossos e a carne; desfez as possíveis pistas. Quando chegou em casa, vinha consigo, às costas suadas, o alimento de duas semanas, ou mais.

Dias transcorreram sem ser descoberto. O caçador parecia, no entanto, pouco confortável dentro dele próprio, dado o ato que praticara.  Vivia sério, sem graça, pelos cantos; de honesto, acordava no meio da noite empapado de suor frio, amargando pesadelos. A coisa tendia ao agravamento. Perdera-se sob as tenazes do remorso; sumira o patrimônio das velhas alegrias de viver.

De alma presa, bela manhã, resolveu se confessar. Procurou o vigário da freguesia e contou em todos os detalhes a história do delito de haver morto a cabra do compadre. Atencioso, o sacerdote ouviu a história, refletiu durante alguns minutos e disse:

- O senhor agiu de uma forma vergonhosa. Fez o que nunca deveria ter feito, querendo se beneficiar com aquilo. Desse jeito, para limpar o erro que cometeu, irá procurar seu vizinho e esclarecer o assunto, dizendo a ele que pagará o animal morto quando possuir recurso.

- Mas, padre, trabalhando desse modo, vou passar por desonesto - explicou contrariado o sertanejo. - Isso fica muito ruim para quem criou fama de homem sério como eu sou no meu lugar. Deve haver outra maneira de resolver – acrescentou o matuto.

- Meu filho, não vejo nada mais simples do que pagar a penitência – avisou o sacerdote. - Pois não cuidando agora, quando chegar o Dia do Juízo, lá vão comparecer, na presença dos santos, o senhor, seu compadre e a cabra que matou, o que ficará ainda mais constrangedor.

Nesse momento, ecoou no interior da igreja sonora gargalhada do caboclo, que em seguida foi dizendo:

- Ah, padre, agora compreendi suas palavras e o que devo fazer. Visto o que falou, reverendo, quando a cabra reaparecer inteirinha, viva, no Juízo Final, nessa hora, então, eu pego ela e devolvo ao dono, meu vizinho, ficando tudo resolvido sem maiores prejuízos. - E nisso se retirou cheio de felicidade pela solução do seu drama de consciência.      


Obs.: História que ouvi de Benvindo Melo.       

domingo, 8 de setembro de 2013

O que pode salvar o mundo

No Antigo Testamento, quando, em Sodoma e Gomorra, costumes nefastos da raça humana toparam os limites da tolerância e o Poder decidiu limpar o chão da miséria reinante, vivia na região uma família que merecera escapar da destruição.

Em atenção a pedido de Abraão, Ló seria valido, oportunidade única no meio de povo entregue aos piores desmandos da carne.
Hospedou dois anjos que vieram à sua casa, e deles ouviu que cumpriria eliminar da face da Terra as duas cidades pecaminosas, devido inexistir virtude entre as pessoas. Antes disso, porém, Abraão argumentara que ainda existiam indivíduos honestos e dignos dentre os habitantes dos lugares, e que seriam penalizados sem direito de receber misericórdia e justiça, no caso da execução sumária que procederiam.

Os anjos avaliaram, segundo o texto bíblico: Ora, não se ire o Senhor, que ainda só mais esta vez falo: Se porventura se acharem ali dez? E disse: Não a destruirei por amor dos dez. Gênesis 18:32

Abraão postulara, de início, pela existência de, pelo menos, 50 justos, número esse que cairia gradualmente a dez, sem, contudo, lograr êxito quando saía a procurá-los pelas ruas. Ninguém que fosse salvaria as duas cidades do que, em seguida, aconteceria.
Bom, a sequência da história mostra à fuga da família, Ló, esposa e duas filhas, deixando de fora os genros, que duvidaram da possibilidade de salvação.

Dentre as recomendações, a de que não olhassem para trás seria desobedecida pela esposa, incontinenti transformada numa estátua de sal.

Às vezes, imagino epopeia semelhante nas épocas dagora, quando desmandos parecem querer dominar os horizontes da sociedade; líderes traindo a boa condução dos povos; hábitos nocivos entranhados na vida de tantos; violência exacerbada, quase sem controle; ausência de solidariedade; indiferença e orgulho, frutos do egoísmo e da ganância. Contudo há, sim, que considerar diferentes as razões suficientes e melhores que as alegadas pelo pai Abraão. Porquanto hoje há pessoas sinceras, verdadeiras, corretas no seio das populações, e, com certeza, tais salvarão o mundo de medidas extremas, algo semelhante ao que ocorrera em Nínive, de Jonas, outra história boa de conhecer.   

(Foto: Jackson Bola Bantim).

sábado, 7 de setembro de 2013

Rosemberg Cariry

Primeiros dias de setembro de 2013, na terça-feira 03, reencontrei o cineasta caririense Rosemberg Cariry. Desde a década de 1970 que privamos de uma aproximação amistosa, ambos seguindo estradas que perpassam o Sertão, na busca de simbolizar a pátria comum por meio dos bens artísticos, ele, no cinema, segunda natureza da alma e instrumento de conhecer o mundo. Eu, nas palavras, esforço inglório de conter a voragem corrosiva dos tempos. Palavras e fotografias. E destas, uma nos reuniu através do filme Patativa do Assaré, Ave Poesia, cujo cartaz ilustro com fotografia do bardo assareense.

Nessa oportunidade, fomos até o Sítio Caldeirão, do Beato Zé Lourenço, área que pertence à municipalidade cratense e onde a secretária de Cultura Dane de Jane quer desenvolver empreendimentos voltados à história do lugar, ponto de destaque e valia do século XX, por significar o palco de famosa experiência coletiva rural pesquisada ainda hoje.

Através de excursão dos alunos do Curso de Comunicação da Universidade Federal do Cariri, nos deslocamos àquela região do município e vimos de perto suas potencialidades turísticas, dentre outras.

Minha intenção atual, no entanto, diz respeito ao cineasta Rosemberg, que já foi Secretário de Cultura de Crato e agora concluiu o 12.º longa metragem (Os pobres diabos) como diretor, o qual breve lançará num dos festivais do cinema brasileiro.
Nascido em Farias Brito, cidade vizinha a Crato, desde cedo demonstrou tendência à criação e liderança cultural, dono de história rica em produções. No início, vivera o universo das feiras e dos artistas populares do interior, ao lado de quem adquiriria o conhecimento que usa na temática dos seus trabalhos.

Percorreu as artes plásticas (desenhos, esculturas e máscaras de barro), música (composições e canto), literatura (ensaios, poemas e contos) e cinema (curtas e longas metragens). Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará, exercita a inventividade sobretudo por meio do cinema, nome de cunho internacional, viajando pelos países a divulgar as origens nordestinas nos diversos rincões, além de cumprir papéis destacados nos órgãos da classe cinematográfica do Brasil.

Rosemberg Cariry representa, pois, o espírito vivo das recentes gerações, considerado bem sucedido por quanto até aqui fez da verve talentosa que o caracteriza, exemplo de persistência e trabalho.   

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Balzac

Nas suas memórias, conta o escritor Dino Segre Pitigrilli que, certo dia, numa das visitas do explorador Alexander von Humboldt a Paris, este revelou ao seu amigo Dr. Blanche, conhecido pelo tratamento revolucionário que desenvolvia junto aos doentes mentais, o propósito de almoçar com um dos pacientes medicados pelo célebre estudioso, reconhecido precursor na arte da cura nervosa.

- Coisa nada fácil, nesse momento, Humboldt – advertia o médico. – Mesmo assim, verei o que posso fazer para atender-lhe o pedido.

Dessa forma, logo no dia posterior, encontraram-se à mesa da refeição Humboldt, Blanche e mais dois outros senhores, um dos quais trajava longa casaca preta, abotoada de cima a baixo, fechada por gravata escura, larga, que repontava, no ambiente, longos olhares sombrios de homem taciturno e misterioso.

Durante todo o almoço, tal cavalheiro permaneceria fiel à impressão que de início despertara no visitante. Ao chegar, dirigiu-se a Humboldt cumprimentando-o com gestos eloquentes, indo aquietar-se formal numa das extremidades da mesa. Comeria moderado. Beberia algumas taças do vinho que serviram, sem, todavia, nada pronunciar que lhe identificasse mínimos sinais de personalidade.

O outro senhor, por sua vez, ao contrário do primeiro, parecia um vulcão ativo, flamejante; de cabelos desgrenhados, casaco azul e alguns botões fora da casa, depunha os cotovelos impacientes sobre a mesa, que, a cada instante sob o seu peso, sacolejava de causar medo.

Ansioso, comia em ritmo acelerado. Engolia quase sem mastigar. Falava, falava, e perguntava muitas e insistentes vezes. Impaciente, era ele quem se respondia, antes de aguardar as respostas solicitadas. Cortava pelo meio as falas dos interlocutores. Despejava palavras através de todos os poros. Emendava assunto em outro, uma história na outra, o presente no passado, e esse no futuro.

Tempos após, à hora da sobremesa, Humboldt chamou de lado o seu anfitrião para, juntos, tecerem alguns comentários a propósito dos pacientes convidados, segundo imaginou o visitante.

Nessa hora, indicando com os olhos o segundo personagem, aquele da casaca azul, de atitudes eufóricas, que multiplicava palavras, chistes, anedotas e extensas tiradas filosóficas, balbuciou-lhe ao ouvido:

- Muito interessante o doente que me trouxeste. Seu paciente bem que nos diverte bastante, nesta ocasião. Parabéns pela feliz escolha do que solicitei.

Nisso, ligeiro, o médico reagiu contrafeito diante da avaliação do amigo:

- O quê? Não, não, senhor!

E insistiu a objetar: - Mas o doido que eu lhe trouxe não é ele, não, o que está pensando. É, sim, o outro, o da casaca escura – acrescentou Dr. Blanche.

- O que nada falou e permaneceu calmo todo o tempo? – indagou admirado o célebre alemão.

- Sim, sim! É ele o meu paciente, em fase de bem sucedido tratamento. Vê-se no controle do comportamento apresentado.

– E esse que pensei que fosse ele, então, de quem se trata? – quis saber Humboldt.

- Esse é Balzac, meu amigo Honoré de Balzac, o inigualável gênio da literatura francesa – com isso, ambos, silenciosos, voltaram aos seus lugares a fim de concluir o repasto.

Afronta

Seu Pedro atendia com zelo deveres do coração. A cada quinze dias, viajava de Crato à sede do município de Farias Brito, distância de 45 km, onde pernoitava, e cedo, no dia seguinte, viajava para ver a noiva na no topo da Serra do Quincuncá, isso tudo em lombo de animal.

Daquela vez, nada foi diferente. Completara a subida, chegando ao plano da chapada, quando resolveu esfriar s garganta e o burro na bodega de Jovino, bater a poeira, banhar o rosto, trocar de roupa, bem conforme das outras tantas vezes.

Desta, porém, algo imprevisto se daria. Encostado na ponta do balcão enegrecido pelo tempo, tipo esdrúxulo alterava a cena rotineira. Homenzarrão de tez escura e cabelos escorridos em cima dos ombros bebia cachaça de um copo de oito. Ao notar o recém chegado, se dirigiu a Jovino e ordenou abusado:

- Bota uma, que temos companhia.

- Não, senhor - de imediato reagiu o visitante. - Agradeço, pois não bebo.

- Bota assim mesmo – insistiu que oferecia. - E traga também uma barra de sabão.

O bodegueiro sentiu que clima tenso havia se estabelecido, mesmo assim cumpriu na risca a determinação. Aquilo que antes era só a bebida ligeiro virou lavagem de cachaça com sabão, apresentada ao noivo viajante para seu consumo imediato. Nenhuma qualquer chance de outra escolha, ele virou o copo goela abaixo, e em seguida, calado, olhos no chão, montou de novo o burro e marchou para o destino.

Perto dali, na casa do futuro sogro, contou os detalhes da ofensa de que fora vítima há poucos instantes. Os três irmãos da doce amada, caboclos fortes e dispostos, insistiram que o ocorrido merecesse pronta reparação e, reunidos em grupo, seguiram com dita finalidade.

Chegados à bodega, acharam as coisas conforme descritas pelo noivo da irmã. Eles três valentes ficaram guarnecendo a porta. O noivo entrou, pediu a bebida, o sabão, misturou-os quanto pode, e, se voltando ao desafiante, que ainda mantinha a pose arrogante no final do balcão, ordenou que este ingerisse a nauseante beberagem.

Nessa hora, atentou o ofertante de olhar no sentido da porta onde deixara os aliados na desforra. Era o lugar mais limpo desse mundo, nem vivalma. Correram os três. Conclusão: dessa vez, não teve nem direito a tira gosto; pois lamberia os beiços de sabão depois da segunda talagada de cachaça com sabão num dia único.

Pedro ainda hoje recorda com desgosto o noivado desfeito, que terminou sem chances, naquela oportunidade.         


Obs.: História ouvida de Antônio Nirson Monteiro II.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Salões de outubro

Chegara de volta da Bahia em março de 1977. Aos poucos fui me reentrosando com os velhos amigos do Cariri.  Ao lado de Vicelmo, realizaria série de entrevistas para o Museu da Imagem e do Som do Instituto Cultural do Cariri com José Geraldo da Cruz, Filemon Teles, Pedro Maia, Ramiro do Seminário, Antônio de Alencar Araripe e Almir Carvalho, personagens marcantes da Região, publicadas em seguida no jornal Tribuna do Ceará, em Fortaleza, exceto a de Alencar Araripe.

Já perto do final do ano, fui convidado por Luiz Karimai e Gilberto Morimitsu, para, juntamente com Isabelisa Cordeiro, promover o Salão de Outubro, o que se concretizaria com êxito no âmbito do Parque Municipal de Crato, hoje a Praça Alexandre Arraes.

Dos artistas que participaram lembro-me de alguns dos nomes: Ivan Alencar, Macário Brito, Jackson Bola Bantim, Stênio Diniz, Luiz Karimai, Gilberto Morimitsu, Isabelisa Cordeiro, Rômulo, Múcio Duarte, Célia Teles, Zé Ferreira, Ciça Louceira, Ciça do Barro Cru, Meirinha Germano, Geraldo Urano, Hugo Linard, Paulinho Fuísca, Deca, Zé Roberto, dentre outros. Eu me fizera presente com desenhos e colagens, o que naquela época usava como expressão. Houve dessa vez uma apresentação de Fagner, na Quadra Bicentenário, como parte dos acontecimentos da mostra que fora bem visitada pelo público.

No ano seguinte, promoveríamos, no Instituto Cultural do Cariri, cuja sede funcionava na Praça Três de Maio, uma exposição individual dos meus trabalhos, com 35 pinturas, desenhos e colagens.

Em maio, realizamos, ao lado de Mônica Camargo, uma pesquisadora que viera do Rio de Janeiro, o Salão de Maio da Faculdade de Filosofia do Crato, sob a coordenação de Vera Lúcia Maia, ligada ao Departamento de História. O evento foi prestigiado pela escritora Rachel de Queiroz, em duas salas das instalações da faculdade, no Bairro do Pimenta, onde estiveram expostos 58 artistas e artesãos caririenses, numa mostra de rara qualidade.

No mesmo ano de 1968, promovemos, Karimai, Morimitsu, Isabelisa, Stênio Diniz e eu, a Bienal de Juazeiro do Norte, no Salão Paroquial da Igreja de Nossa Senhora das Dores, com o apoio de Padre Murilo. Dessa atividade constou, no derradeiro dia, apresentação de Dominguinhos, na Quadra João Cornélio, que ficava nas proximidades do Salão Paroquial.

No mesmo ano de 1968, voltamos a realizar o Salão de Outubro, dessa vez como mais artistas regionais, inclusive utilizando por galerias o espaço das antigas jaulas dos animais que antes ali existiram, nos inícios do Parque Municipal.

Há registros cinematográficos desse Salão de Outubro de 1978 realizados e que pertencem a Isabelisa Cordeiro, ora residindo em João Pessoa, na Paraíba.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Costumes

As dificuldades de transporte sempre acompanharam o ser homem nas fases da História. Exemplo disso, quando não havia os meios atuais de estradas e seus idolatrados veículos automotivos, deslocar os doentes no sertão exigia esforços inestimáveis.

A solução encontrada tantas vezes era estender uma rede em uma madeira bruta e distribuir o peso nos ombros de valentes carregadores, perfazendo a pé longas distâncias na busca do socorro médico, sendo também essa a modalidade usada para remeter os falecidos ao pouso derradeiro.

Nos caminhos, quem encontrava um carreto sombrio daquele tipo logo queria, de curiosidade, saber o que conduziam seus portadores:

- É vivo ou é morto? - perguntavam de costume onde fossem passando com a maca, o que acanhava os vivos que tivessem de utilizar o tipo de ambulância do passado, pondo-os numa situação vexatória.

Sobre tais situações indesejáveis, o Padre Neri Feitosa, em seu livro Usos e Costumes de 50 Anos Atrás, conta que o Seu Pedro de Brito, varão residente no Quebra, sítio do distrito de Ponta da Serra, em Crato, quando adoeceu e teve que ser trazido às pressas para se tratar na sede do município, se viu nessa condição de enfrentar tal embaraço, estendido numa rede levada  no ombro à busca da cura.

Em princípio, reagiu de não querer acordo. Preferia se acomodar nos matos a defrontar os agoureiros do percurso. E o doente, por nada deste mundo, queria ir na rede, com receio da pergunta costumeira - afirma o sacerdote em seu livro. No entanto, dada a persistência continuada dos familiares em cuidar da saúde do ente querido, o sertanejo aceitou fazer a viagem.

Justificados zelos, porém dito e feito, pouco demorou lhe acontecer o que temia. Envolto nos lençóis da jornada a caminho da cidade, conduzido nos ombros de dois caboclos fortes, na estrada, certo instante escutou, contrariado, a temida pergunta de algum observador:

- É vivo ou é morto?

Sem esperar a resposta dos carregadores, o enfermo afastou as bordas da tipóia improvisada, botou a cabeça para fora e, de pescoço esticado, ainda resmungando (- Eu não disse, eu não disse!), de logo revidou:

- É vivo, seu filho da puta!

                                             

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

São Gonçalo de Amarante

Consta da tradição popular que Jesus vinha por uma estrada deserta quando se deparou com Gonçalo, músico de Amarante, localidade do Império português.

- Mestre, em que posso ser útil para diminuir a devassidão neste mundo? – naquela hora perguntou o músico a Jesus.

- Gonçalo, por mais que fizesse, não dominaria o espírito rebelde dessa gente – respondeu o Mestre Divino. – Todos se mostram surdos aos ensinos, igual a muitos que preferem continuar na trilha da perdição.

- Senhor, haverá, por certo, meio de educar as pessoas. Quem sabe pela música possa tocar os corações? - falou Gonçalo, disposto a servir o bom caminho.

- Tudo pode acontecer. Já que é violeiro, quer experimentar o dom que possui? - acrescentou o Mestre. E seguiram prosando. Dali, os dois combinaram que o músico realizaria a proeza de mudar os pecadores para receberia em dobro os poderes de curar neste mundo.

Gonçalo seguiu com a missão. Quando chegou à Vila de Amarante, tratou que, naquela mesma noite, tocaria uma festa para quem fosse ao salão de dança no baixo meretrício. Os frequentadores do lugar, animados, aceitaram o convite.

E festejaram a noite toda, até de manhã cedo. No cantar do galo, ainda se ouvia o pinicado da viola do músico. Chegava a hora do trabalho e deviam procurar suas obrigações para retornar à noite, e continuar a função da dança. Mulheres e homens, outra vez, se alegravam com a música de Gonçalo.

Enquanto isso, a notícia se espalhava nas cercanias. Quando escurecia, se apresentavam os interessados no folguedo, que, de novo, invadia a madrugada. Antes do fim de cada festa, Gonçalo repetia o convite para a noite seguinte. Não deixava diminuir os ânimos, e dessa forma prosseguiu dias a fio. À noite, os bailes de rara animação; de dia, os duros afazeres para manter a sobrevivência.           

Na maneira de Gonçalo, todos, sem exceção, tanto as mulheres quanto seus amantes, se viram na condição de abandonar os vícios e a fornicação, graças à música e à exaustão, nas numerosas festas. Passados mais alguns dias, o artista concluiu a tarefa e se apresentou a Jesus, levando consigo uma fieira de almas que havia conquistado.

O mestre Joaquim Pedro da Silva, responsável pelo grupo da Dança de São Gonçalo, que existe na subida do Horto, em Juazeiro do Norte, conta que ali Gonçalo adquiriu o merecimento de poder socorrer aqueles que lhe procuram, sem carecer de qualquer intermediação, com a força espiritual que recebeu quando cumpriu o ofício por que Deus determinado.