quinta-feira, 31 de maio de 2012

Puro instinto de conservação

Na caminhada através de estradas longas, nessa história que há de ser quase completa, a preservação das espécies, cuidado por demais inevitável, na angústia da precisão de produzir valores e necessidades novas, experiências e audácias, quais heróis valiosos das vitórias esplendorosas, para prosseguir, selecionar e correr todos os riscos, fugir de toda armadilha ao decorrer do percurso. Salvar vidas e se salvar (vida), mandatários da saudade lançados aos sabores tumultuosos dos ventos. 

Quais, pois, isso, de andar sorrateiro face dos tetos em ruína das ruas desertas, em cidades abandonadas, após largas explosões distantes, chegados solitários aos restos que ficaram ali perdidos entre nuvens de silêncio absolutas pelos cantos das cercas de arame farpado. De coração às mãos, esses agentes avançados da noite escura do desejo estiram passadas e avançam, na fome guardada na espera jamais satisfeita das sedes transcendentais, afoitos deuses. 

Nos blocos destruídos dessas gerações, paredes carcomidas no tempo fecham seus dentes nas dores intransponíveis dos trastes e das flores artificiais, nos toques autênticos dos poucos que ainda seguem no caldo de sangue pelas veias rasgadas através dos tecidos de corações magoados. 

Contar das movimentações clandestinas dos audazes aguça o amor pelas palavras e dispõe atitude continuadora do fator vida, no seio dos sistemas religiosos e profanos. Vultos encapuzados de tochas acesas nas mãos calejadas deslizam, contudo, misteriosos nas cavernas inundadas de substância verde que escorre nas pedras em volta. Os representantes anônimos das arcaicas raízes ardentes do furor das resistências, indivíduos mil, marujos desencaminhados nas frias ondas do mar do Infinito, seres humanos da caravana e vadios sobreviventes, cavaleiros andantes das jornadas mágicas de autores de Si, erguem os olhos e rezam.

Soltas assim, vadias alimárias na busca das alvoradas além nutrem de esperança as ânsias desesperadas, fé rigorosa que lhes invade a alma e desce e sobe os relevos dos degraus da espinha dorsal, os palácios e planisférios das vendidas estradas. Tontos de convicção, saltam inúmeros os impossíveis obstáculos da febre da dança tribal, vagueiam alheios aos tribunais da consciência e se ajoelham perante os totens; e devoram seus próprios símbolos na pele do corpo enigmático. Máquinas perfeitas desfilam incontroláveis com meios conhecidos, resistem a tudo a duras penas de adorar os nasceres de sol. Depositam aos pés da Eternidade este pedaço de Mim que cabe ao Senhor que carrego comigo nos refolhos da Existência que conduz incansável ao destino da Verdade.     

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Conversa de engenho


As sombras longas do fim de tarde casavam bem com o clima morno que se estabeleceu no beco entre a casa grande e o engenho, onde, acocorados, os homens da moagem ouviam atentos as narrativas do cigano Lourenço a propósito de seus sonhos e andanças pelo mundo, embalados na zoeira festiva da meninada a correr em volta, agitação natural de quem aceita as coisas e nelas se integra.

Fez-se no ar apito estridente do locomove ao término da jornada, liberava no eito a turma dos cortadores de cana, enquanto os ouvintes estiravam na distância o sentimento para buscar a vegetação do outro lado da represa o vôo suave das garças silenciosas, salpicando de brancas reticências o azul metálico da tarde em declínio, por cima de troncos calcinados das carnaubeiras; palmas tremeluzentes e ruidosas. O vento, por seu turno, escamava as ondas e distorcia a imagem das nuvens no leito do açude velho.

Palavras e aves do entardecer raspavam de leve os chapéus de palha dos caboclos, retorcidos pelo sol e manchados de suor, noturna sensação de abismo que entorpeceu os ânimos, alguns a esfregar os olhos no canto dos dedos, qual querendo despertar de sono pesado e guardar com esforço o que ouviam.

Lourenço pôs-se de pé, catou as cordas dos burros e bateu-lhes nas ancas, tangendo-os ladeira abaixo na direção do reservatório. Meio caladão, tinha desses instantes de ficar sem saber explicar direito o porquê de se chegar naqueles assuntos graves, novidades antigas do interesse de quase ninguém e necessidade eterna dos mortos e vivos. Saber para onde se vai depois, quando acabar isso daqui.

O focinho dos animais, na calma das águas, ia desenhando movimento de ondas sucessivas, chamando a atenção do viajante para o sentido que tomavam, indo quebrar nas margens de pedra e argila ou se faziam mais extensas e rumavam para longe, no leito das águas profundas, oscilando a babugem esverdeada e as moitas de mofumbo adiantadas no lodo, quebrando o repouso das rachanãs e galinhas-d’água.

- ... Muitas oportunidades individuais - repetiu baixinho as derradeiras palavras de há pouco, querendo gravar, quais saíssem de outra boca que não a sua.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Uns imortais fetichistas


(Fetichismo, mania corrosiva de juntar coisas, sejam pequenas ou grandes. Culto de objetos materiais ou apego a eles.) Viaja-se e a bagagem vale pelas lembranças que se transporta, para si ou para os outros. Morre-se e ficam relíquias, botijas, testamentos de bens materiais; os baús, as recordações dos amigos nas rodas; as histórias infalíveis, resgates insistentes.

Nisso, de contrapeso, somos hábeis em reunir motivos de fixação que nada fixam, desfeitos na paisagem móvel da existência, dias aquecidos de impermanências, lições infindas, perenes em tudo, por tudo, portanto. 

Anéis e dedos, que também não ficam. Caravanas, que passam aos cães que ladram, no mesmíssimo formato dessa ópera insólita, estridente, agônica, permeada de silêncios agudos. Sonha-se no esquecimento das horas, companheiras de pêndulos que se movem impávidos. Nuvens suaves de outono, inverno, primavera, verão. Sol, que vem e vai e fica, e nós é que vamos. O esforço de cristalizar coisas se transforma em rochas fósseis, rochas cristais, marcas de espécies extintas no aço, no petróleo, nas enciclopédias, na lama dos guetos. Na história de bichos-alimária, cães de palha, todos, todas esfolados vivos, felizes bonecos de plástico e papelão. 

Energia infinda, essa, sim, que permanece no fluir universal, na busca de Deus das criaturas. O rugir dos ventos nas folhas que se balançam e caem. O som de eras milenares em muralhas que se desmoronam, dos monumentos carcomidos e reconstruídos de suor e impulsos desconectados. As imaginações retocando civilizações que se debatem nas páginas esvoaçantes dos reinos ilusórios. Tropas em conquistas estéreis, incógnitas dramas de quem padece as derrotas. Guardadas as lanças e proporções no terço dos armamentos enferrujados, nas praças cheias de gente vaidosa, nos festins descompassados... Castelos vazios, horas calmas, madrugadas de faustos e angústias.

Nos bolsos, a imunidade, seixos frios misturam as contas do rosário de lágrimas de saudades croaxando no peito, e malas pesadas nos braços da espera infinita. Olhos fixos na miragem de invernos desconhecidos. Firmeza na voz e pigarro na garganta seca. Fora, cantam pardais, efetivos a formar outra vez velhos ninhos teimosos nos beirais das construções; a paisagem fantasmagórica do extático, testemunha do encontro definitivo.

Esse dia, desse jeito de cenário, os artesões do depois vêm elaborar fios e tecerão longas auroras, nos cabos de luzes multicolores das marcas no seio das catedrais de pedra. Notas harmônicas envolvem as palmas de um tempo que deposita estrelas nos seus filhos diletos. Aqueles velhos fetiches guardados se somam em muitos de nós, apegos desfeitos nas velhas pessoas. Serão almas livres aladas, que pairam no além, aonde o Desconhecido aguarda de braços abertos.
          

domingo, 20 de maio de 2012

Nuvens de pedras


Aspectos assim das variáveis, imagens fortes da visão, representavam os voos solitários do pensamento nos horizontes em volta de um tempo. Pediam palavras, no desejo de significar a qualquer custo. Nalgum lugar e nisso, falei lembrando as horas que passava na varanda do sítio a observar movimentações nas nuvens pelo céu. Minha mãe me alertara disso, das figuras constantes que se formam e criam imagens inúmeras, rostos, bichos, cenas atípicas colhidas pela visão e transmitidas à imaginação no fundo azul do infinito. Menino, e ficava observando o cinema do firmamento, a televisão da minha infância silenciosa, solitária. Todo instante, as novas visões da matemática do Inconsciente mexiam as combinações de linhas gasosas da caligrafia monumental do lado de cima do sertão. Lá adiante, tempo da primeira escola, encontraria, no rajado da pintura dos lápis variações de cor parecidas, derramando pela superfície da madeira roliça, interpretações visuais assemelhadas com os diferentes traçados inscritos nas artes das nuvens. Formas informes, abstrações, instabilidades.

Depois, cheguei a trabalhar com telas e tintas, refazendo na intenção dos pincéis e espátulas o mesmo caminho da imprevisão das imagens da meninice. Buscava criar sentido às alterações sucessivas de propósito que a história da gente oferece a cada dia. Aflitos restavam gestos daquela força impetuosa, no propósito de achar fio de coerência. Horas seguidas, e o desejo de responder às alterações da natureza indicava só incoerência na própria coerência das movimentações dos elementos vivos. 

Em tantas tentativas abordaria as texturas que secavam nas telas e folhas, que, por vezes, viravam só manchas, até uma hora quando decidi recortar revistas e colar os pedaços inesperados, formando somas de tintas e figuras, sem, contudo, ter de esperar que secassem, isto para não melar as cores limpas que queriam a custo penetrar umas nas outras. Sairiam dezenas de painéis frutos daquele abstrato inconsequente daquela procura ansiosa para responder à angústia da liberdade solta pelo ar. Mas que permaneceria aguardando o interesse do olhar e das interpretações das outras pessoas. 

Desta maneira, as cenas que percorriam a visão, nas imagens do céu através das telas primorosas do Universo, voavam dos momentos às prioridades do pensamento, da linguagem. O esforço, pois, de concatenar o instinto de criar ora o identifico na insistência de tocar adiante ações da essência de tudo em mim, que estabelecem no si próprio a fluência inevitável das figurações. Máquina de justificar a consciência dos céus, agora fixo com palavras os quadros anteriores, formulando, na atenção de quem ler, os desenhos das nuvens de dentro de mim, partilhando sobrevivências e distribuindo pedaços do Ser interno com as pessoas, numa comunhão de sabores e emoções que tremulavam abandonadas nos corredores ativo do um Eu eterno.     

terça-feira, 15 de maio de 2012

Minas em mim


Da primeira vez em que cruzara o Rio São Francisco, deixava, de pouco tempo, o Sertão da meninice e adolescência, paragens constantes daquelas fases, e me via rodando pela Rodovia Transnordestina rumo às Minas Gerais. Festival de Inverno de Ouro Preto de 1971, anos de chumbo. Éramos eu e Tiago Araripe, amigos de longa data. Estivéramos poucos dias em Salvador e avassalávamos de novo a estrada no destino a Belo Horizonte.

Lá havia uma ainda cidade jovem, planejada em pranchetas, bem ordenada, arrumada dentro de traçados das largas avenidas e belas construções, rodeada de montanhas no azul cinzento das pedras minerais, ao mundo das histórias fantásticas doutros planos, algo misterioso, aberto para a imaginação franca, encontro forte das raras culturas que povoaram o centro do Brasil das gerais, primeiras aventuras humanas estrangeiras no interior do Novo Mundo. Nítidas lembranças dessas paragens siderais as guardo comigo, o trânsito disciplinado, as belas e ricas lojas, povo vestido a caráter sob o clima frio de meio do ano, elegância e desenvoltura que tocaram de perto os meus conceitos da gente simples de que viera. A fala solta dos mineiros, sim, um apego a mais, no ritmo, na melodia, no bom humor permanente, reunidos sob a batuta da facilidade no dizer, no brincar, chistear efusivo.

Permanecemos só poucos dias ali também, visto o destino focado nas cidades históricas, convidados das escaramuças daquela época em transição e luta ideológica. Fase hippie, tempos reprimidos, senso de esperanças rasgadas nos conceitos pragmáticos dominantes. E nós, aves exóticas a sonhar nas ruas do Planeta com abertura, arte e possibilidades mil das aspirações de uma juventude macerada diante do inesperado, tacões do poder político.

Seguiríamos a Ouro Preto.

Levávamos carta de Figueiredo Filho a Antônio Pinheiro, cratense e diretor da Escola de Minas de Ouro Preto, que nos instalou numa das várias pousadas pertencentes à instituição, abrigo dos alunos no período letivo da escola.

Na antiga Vila Rica do herói Tiradentes, nos reunimos com outros amigos de Crato, José Esmeraldo Gonçalves e Pedro Ernesto de Alencar, em plano de viagem adrede montado por Tiago ainda no Ceará.
A quem conhecia essa parte do Brasil apenas de livro, oportunidade melhor tornava-se rara. Tudo era novidade nessa fase de intensas buscas existenciais ligadas a interesses psicodélicos, artísticos, literários. O período Médici, dos governos militares, agia com força total, ostensiva repressão para reduzir ao máximo o ânimo agregado desse festival que buscávamos. 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Vertigem


Certa vez, em plena manhã de um final de ano, novembro ou dezembro, na brisa fria e suave do sopé da Serra, lia Ilusões (As aventuras de um Messias indeciso), de Richard Bach, quando fui surpreendido no peito por sentimento de abismo que invadiu a alma do mesmo frio lá de fora daquela manhã; extático, entrou pelos corredores do tórax qual visitante calmo e silencioso; e agora retorna para ser lapidado nas palavras que nascem aqui comigo. 

Mexeu, sim, por dentro, e, descuidado, acionou qualquer botão, que abriu fenda descomunal de solidão, espécie de lava gelada dos vulcões cósmicos, escorrendo medo intenso pelas encostas da montanha do ser, extrato das ausências múltiplas, misto de todas as presenças, eco de galáxias sem aparente final, porta de mergulhos individuais distantes, longe, bem longe, fora das distâncias, nos subúrbios de nossa Via Láctea. Esse tal silêncio de solenidade exótica falava nos meus ouvidos de outras eras, outros planos, dimensões estapafúrdias. Confesso medo aterrador naquele momento, vontade enorme de mais companhia, gentes aos milhares, sede das multidões, das festas, zoada, movimento, quermesses animadas, pois a dor contundia numa condição e velocidade incontidas, lâminas cortantes da matéria, espécies de chamamento às origens dos vários elementos, amálgamas de esferas rolando em plenitude. 

Busquei calor, o calor dos sóis abertos lá em cima. As pálpebras da consciência, contudo, fechavam de falta de sentido os cômodos da personalidade, para virar, logo adiante, na energia fluída de calor na pele, sem, no entanto, alimentar novas chances quanto a retornar ao presente, salvar o passado conhecido, durante a só e única Eternidade que cresceu e abraçou o mundo em torno. 

Olhava o horizonte aberto na essência de mim absorto na grandiosidade da total integração, e fatores internos convergiam, crise das individualidades postas na mesa de planície colossal, e inúmeras tradições fugiram qual névoa desfeita. Sumidas as referências até então preservadas a sete chaves, cigano das estrelas, o eu vagava desarmado pelas espirais do salão imenso, no turbilhão da queda livre, através do antigo espaço indiferente que fugiu. Palco aberto e folhas jogadas ao firmamento, mãos sangrando de absurdo e sonhos, recebiam marcas de saudades profundas, emoções avassaladoras, moléculas e perfumes, soltas pelos ares rasgados em Si próprio. Uma dor translúcida e disforme devorou, assim, doces e ferventes reações inúteis de preservação dos valores arcaicos. Guardei das lembranças o inexplicável desse testemunho, notícia maior da experiência de ver bem perto o mistério abissal das idades, razões primeiras e derradeiras dos fundamentais motivos da existência. Naquele instante, isso veio à tona na voz de forte berro aos céus, entre as letras que dançavam soltas na vista do livro, em meio ao pudor das palavras e no clarão poderoso dos raios do Sol.