quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O que as palavras jamais dirão


Bem que a vontade humana deseja, durante todo tempo, dominar o impossível. Na ânsia de afirmar o sonho e regressar às origens até então desconhecidas do existir, pululam neste mundo suas almas vazias na busca de revelar o mistério que habita o mais profundo silêncio. Aspiram invadir os domínios da solidão e contar, em longas falas, o conhecimento guardado debaixo das sete capas, nas cavernas do destino. Tocar as dobras do Infinito e trazer de volta os dias que aqui passam sem que deixar marcas reveladas, porquanto apenas deslizam feitos lesmas no rochedo das horas mortas.

Quantos sois sumiram lá no horizonte após iluminar perdidas aventuras de um palco de dores e amargas ilusões... Quantas saudades largadas às noites fantasmagóricas na forma dos reajustes inevitáveis... Nisso, apenas vastos desertos preenchem becos de angústias, enquanto o tempo senhor de si revolve as velhas feridas acumuladas no armazém das vaidades.

Assim, face o tropel dos instantes sucessivos, inesgotáveis, olhos buscam aflitos respostas pelo raciocínio e saqueiam o mercado das palavras ao impulso de acalmar corações magoados. Elaboram nas frases romances, poemas, tratados, relatórios, no senso de anotar o que, decerto, se perderia pelo espaço do inexistente. Tão intocável qual tapetes feitos de nuvens, tudo percorre o vento e desaparece no abismo, tangido pelos monges que conduzem a barca dos amores ausentes.

A enfieira dos seres viventes aceita, pois, obedecer, ainda que ignorando a finalidade que presencia fugir-lhes pelas mãos na forma de luzes em movimento, filmes da aparente realidade. Veem, e só, nenhuma alternativa senão fluir junto no firmamento, e gritam verdades, calam todas as dúvidas que por ventura pudessem alimentar, porque simplesmente lhes desfazem as próprias formas, rochas em decomposição, entes que não dominam nem a forma que os compõe. 

Nisso, restam pensamentos e sentimentos que acumularam nas palavras tentativas frustradas de compreender o incompreensível, os risos harmoniosos do silêncio que envolve de sombras o manto colorido de enigmas inaudíveis... 


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A que servem os valores morais


Valores, ou seja, as bases sobre as quais estruturar o comportamento nas relações entre as pessoas, sociedades e natureza. Afinal se busca níveis melhores que dimensões arcaicas, de quando animais e bárbaros, dos tempos das cavernas. Eles evoluíram desde que o homem é homem, de quando resolveu aprimorar realizações no decorrer da história. São padrões mais refinados de convivência que resultam nos estados de justiça e civilização.

A que servem esses tais valores morais? Só visam estabelecer pactos em favor dos grupos, ou indicam crescimento dos indivíduos nos planos elevados da ética e do progresso de sonhos maiores?

A psicologia evita o âmbito da religiosidade, mantendo compromisso restrito ao campo das reações aparentes das pessoas. Contudo há limites inatingíveis no desconhecido. Pois a ânsia das soluções bate de cara nalgumas impossibilidades científicas, estação provisória do conhecimento. E a dor segue doendo pedindo paz aos organismos enfermos da coletividade.

Nessas horas restam os valores, decisões pessoais estabelecidas no íntimo de vencer o vazio existencial nas criaturas humanas. Algo que deve existir plantado no território silencioso da solidão visando balizar as dificuldades existenciais. Nessas paragens longas e angustiosas, luzes acendem quando guardadas. Lembram a parábola cristã das virgens loucas, que não mantiveram o azeite de acender as lâmpadas, na chegada imprevisível dos noivos. E ficaram lá perdidas nas trevas do abandono, enquanto as prudentes revelavam suas localizações.

Nas noites e febres do isolamento a que se submetem os desavisados vagando pelos mundos incertos, o plantio e a colheita bem aos moldes daqueles que aperfeiçoam valores morais, servem nas ingratas situações da sorte e reduz a fome de Amor desses tempos transitórios.



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

E essa vontade de viver


Essa vontade imensa de cruzar o território longo da existência vem ser a busca de um pouso seguro aonde nos deitemos em campos de leite e mel. O instinto natural da história das pessoas, valor soberano apesar de tantas contradições desse chão comum de abstinência e fé. A doce ilusão, que perpassa quase tudo, na imensidão de mundo maltratado pela insânia da riqueza, nas minorias, e calvário de muitos deserdados das doses materiais da fortuna. Conduzir o barco da sobrevivência, no entanto, a mares por vezes de procelas e desencontros, em que corações festejam cada dia que nasce no esplendor dos horizontes quais únicas razões de alimentar a vida. O desejo enorme de sonhar com os momentos de alegria passageira, que perseveram e alimentam o prazer dos amores quantas horas desleixados e pobres, porém o que a todos cabe na esperança do carinho tão necessário a se sentir feliz, amado, aceito.

Pergunta no mínimo instigante, a que final estamos aqui nesta lida. Não diria constantemente, que habitemos a casa dos instantes agradáveis que foge todo tempo, mas a angústia compõe o quadro da existência de ver sumir a idade, a saúde, os entes queridos. É a ânsia da procura, a ânsia da cura definitiva... Há nisso a chave do mistério de existir. 

Ninguém, de sã consciência, vive só por viver. Nas luas sucessivas, o sempre anseio humano de achar a resposta, eis a essência da filosofia existencialista. Trabalhar esse conceito desde cedo, de se encontrar consigo mesmo e com o desconhecido, que pulula nos refolhos da alma. Apenas largar de lado a angústia que significa representaria má-fé, desistência e derrota. Nisso, o ser humano consiste da liberdade o seu significado particular. E continuar vale dizer do drama e da comédia a obter a resposta conclusiva, que vale insistir até o claro da consciência acender as luzes da revelação.

Enquanto isto, o segredo maior dormirá com a gente nas malhas do sentir em que viajamos e que conta as estações e dão sentido ao existir, ação possível à pequena faísca da infinita Perfeição que somos nós.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

A ciência de uma amizade verdadeira

Dia desses, recebi pelas redes sociais um vídeo onde contavam a história de dois amigos cuja existência os levaria aos campos de batalha e, num mesmo contingente, poderem seguir juntos e enfrentar as intempéries de guerra cruel, qual cruel são todas as guerras.


Nisso, os dias foram passando sempre a defrontar as agruras do conflito, quando numa das piores situações vividas pelo seu exército, se perderam ou do outro. Exausto e só, já no acampamento, enquanto repassavam o efetivo da tropa, um deles notou a ausência do outro, e entrou em aflição. Buscou o comando e solicitou ir ao front, no sítio da encarniçada luta, à busca do inseparável parceiro.

Os oficiais argumentaram, no entanto, que a atitude no mínimo seria temerária e, decerto, o amigo havia de ter sucumbido nas violentas escaramuças do trágico dia. Mesmo assim, por mais argumentos que ouvisse, o soldado insistiu até obter autorização de retornar aonde combateram naquela ocasião.

Transcorridas longas horas, no meio da escuridão da noite, lá que o moço regressa trazendo às costas o corpo sem vida do amigo morto na contenda. Ao encontrar os responsáveis pela tropa, estes foram logo confirmando o que disseram, que de nada adiantaria tanto esforço de voltar ao campo da batalha, conquanto o soldado ali apenas restasse morto.

O amigo, porém, reconhecido pela chance que tivera de cumprir aquela missão, entre lágrimas e com um leve sorriso no rosto, responderia:

- Sim; mas quando cheguei junto dele ainda respirava e, consciente, me olhou agradecido e falou: - Eu sabia que você vinha à minha procura e, por isso, resisti até agora, para, em seguida, fechar os olhos e desfalecer silenciosamente.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O viver não tem rascunho


De comum, as filosofias ensinam valores a serem exercitados no decorrer da existência. São opções, nunca determinações, e nisso estudam o modo de comportamento dos tempos, examinam os métodos das gerações e concluem pelas doutrinas que levam às religiões e práticas sociais. Espécies de escrituras do que se obteve reação no decorrer das civilizações. Bem, isso, de meros repórteres dos idos e vividos significam os filósofos. 

Com isto, aprendem que procurar nas páginas dos livros guardados quer-se conhecer, e estender a mão ao futuro inédito. Porém de um detalhe sabemos com fartura, todo dia é dia novo, toda época tem seus novos costumes e experiências. Qual dizem os sábios, o passado é rastro de um farol que ilumina para trás. E uma sequência nunca vista nos aguarda lá na frente. Esse tema envolve diretamente a distância entre teoria e prática. 

Assim, viver representa a claridade de todo momento, e pronto. Ninguém, pois, que seja mestre do próprio destino.

O mesmo ocorre no que diz respeito aos credos e religiões; vêm os ensinos e a resposta depende do grau evolutivo de todo crente, porquanto representamos o que o somos de personalidade e caráter. De igual modo, as práticas políticas e sociais, onde todos vivem as experiências que a hora ensina pelas mãos das circunstâncias. O cidadão carrega sua formação e responderá com ela de acordo com a capacidade até então desconhecida. 

Ninguém queira, por isso, dominar a sombra dos seus atos, necessidade mínima de ter humildade, vez ninguém ser dono absoluto da verdade e muito menos detentores de certeza absoluta. 

Os conceitos do conhecimento humano transportam essas notícias através das massas, e pedem coerência no exercício pleno da verdade transmitida. Todo dia traz em si novidades, por meio dos fenômenos. Destarte, qual dissemos, o viver não tem rascunho. Superar desafios e aceitar o inesperado, portanto, só reclama poderes que nem nós imaginávamos antes possuir.

Ilustração: A queda dos anjos rebeldes, de Pieter Brueguel. o Velho.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

O sapo e o vagalume

 

Para o sapo o ideal de beleza é a sapa.   Voltaire

Outro dia, em nossas comunicações, a minha amiga Geracina Aguiar me lembrou de uma das fábulas brasileiras bem aos moldes desta humanidade, que conta a história de vagalume que vivia nos lodos fétidos do pântano e notava, constantemente, o assedio de um sapo vadio a lhe buscar de alimento. Escreveu não leu e ali surgia o horroroso batráquio munido da língua pegajosa à cata do pequenino inseto, que sempre galgava fugir. E a peleja já até constava das rotinas daquela natureza primitiva, sob a observação dos outros viventes do lugar. 

Lá pelas tantas, num noite mais escura, o sapo realizaria seu intento e vê-se com o vagalume preso às mandíbulas famintas, disposto que estava de nutrir o velho sonho de devorar ao besouro luminoso. Porém, nas últimas providências que lhe restavam, o vagalume ainda consegue estabelecer rápido diálogo com o feio animal que o devoraria logo em seguida.

- Seu sapo, queira dizer, por que tudo isso, essa insistente vontade de me engolir há tanto tempo? – pergunta agoniado.

Arrogante, meio sem jeito, no entanto cheio do voraz apetite, o sapo, de chofre, respondeu:

- Ah, não, além de tudo, jamais me conformaria com sua audácia, pirilampo, de buscar iluminar as trevas do brejo e, quem sabe?, despertar a noite da escuridão impenetrável. Bem que podia ficar quieto no seu canto e esperar a hora do nascer o Sol. 

...

Entre o gramado do campo
Modesto em paz se escondia
Pequeno pirilampo
que, sem o saber, luzia

Feio sapo repelente
Sai do córrego lodoso
Cospe a baba de repente
Sobre o inseto luminoso

Pergunta-lhe o vaga-lume
- Porque me vens maltratar?
E o sapo com azedume:
- Porque estás sempre a brilhar!

                     (João Ribeiro - 1860-1934)

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Esses pobres amantes


Desde as pompas preparatórias, danças lotavam de nobres os salões iluminados e deslizantes casais. Os dois, a lady e o príncipe, semelhavam pássaros alegres, reflexos dos olhares longos de damas e cavalheiros, imagem milenar das monarquias, saracoteando sedas no efusivo ambiente. 

Puro sonho, festa de casamento que durou três dias. Ela chegara à real família pelo amor romântico tecido nas teias da candura. Nobre, linda, porém fruto de linhagem paralela onde a fidalguia concedera-lhe o sétimo céu de ser princesa no reino da Inglaterra.

Essas emocionadas fases, conquanto depois contraditórias, cobravam da família detalhes essenciais à preservação das condições iniciais. Diana Spencer existiu para o marido, seus dotes e filhos herdeiros. Repetidas vezes, quis se arremeter de encontro ao destino que lhe tirara da história plebeia, largado-a no paço. Entretanto reservara-se discreta no silêncio das alamedas, submissa ao cerimonial, das viagens de ofício e compromissos outros.

Fluíram longos dez, doze, quinze anos de regularidade protocolar.

Numa bela manhã de primavera, na discreta cavalariça, próxima de James Hewitt, oficial instrutor dos príncipes, viu o que lhe fez recordar os livros infantis, as histórias de encanto, no reservado coração adormecido.

Dispararam em si tontas emoções retidas pelo contrato nupcial das máscaras oficiais. O castelo hostil veio no seu encalço. Saber disso jamais poderia, visto fugir da lei e, estoica, abandonar as calandras escuras do preço que pactuara. 

Nalgum impulso, as carnes rasgaram a tradição do sossego. Apaixonada, a princesa amou quanto necessário, quiçá pela primeira vez. Sentimentos ganharam corpos. Dois amantes pecaram no palácio imperial. Ela jogou ao solo muralhas carcomidas de todas as convenções. Charles também derivou noutras aventuras e o conto de fadas virou crônica galante. Os filhos, sempre eles, pagam o desamor dos pais. 

Separada a união do século XX, feridas abertas aos tabloides sensacionalistas, repercutiram escândalo e dramas particulares, na roupa suja lavada nas praças. Viajou pelos países, a servir de emissária que tutela os exilados desse mundo torto. África. Ásia. América.  

Uma noite a todos de novo surpreende. Em 31 de agosto de 1997, em Paris, morre Diana junto de outro namorado, após baterem com o carro nas estruturas urbanas da capital francesa. 

Cinco anos do desaparecimento, jornal inglês traz a notícia de que o ex-amante da princesa fixou preço para suas cartas de amor. O diário londrino News of the World, na edição de 15 de dezembro de 2002, disse que o oficial James Hewitt buscou vender pelo valor de 10 milhões de libras (US$ 15,6 milhões) a correspondência amorosa. Esta é a primeira vez que um membro da família real escreve a um soldado que está no front, disse Hewitt, que recebeu as cartas de Diana durante a Guerra do Golfo, ao servir no Kuwait. Isso num besto desvairado de quem acolheu o amor imperial e perdeu a licença possível que houvesse para os amantes verdadeiros nos tribunais da Eternidade.


As chances dos turnos eleitorais


No aspecto clássico, a palavra política fica vinculada ao Estado e sua administração, isto, porém, numa tendência prática de ver política apenas como o exercício frio do poder. Qual disse Platão que a perfeição só existe no mundo das ideias, mesmo assim há que imaginar uma atitude humana mais inteligente diante dos problemas que afligem o mundo e as sociedades, daí a intenção de encontrar soluções justas dos problemas e definir padrões comuns de responder aos desafios.

Nisso, o que resta às populações, no sentido de rever o encaminhamento do sistema social, diz que a política deve ser um instrumento de considerar as dificuldades coletivas e descobrir métodos de funcionamento adequados à harmoniosa existência das pessoas.

Tal esforço demanda praticamente toda a história conhecida. Demasiadas oportunidades vêm tendo a raça no sentido de responder aos impasses dos tempos, contudo sempre a braços com limitações do imediatismo, em face do nível moral em que ainda nos achamos, quando o egoísmo domina pela força bruta e insiste continuar no poder mesmo a troco dos sonhos de paz e progresso, o que bem caracterizaria o ideal da perfeição.

Existem personalidades marcantes na História que lideraram profundas mudanças no comportamento das coletividades e ocasionaram o grau evolutivo em que ora nos achamos, no entanto tais exemplos só de longe são seguidos pela massa, a ponto de só verem a política qual trampolim de dominação, independente que quaisquer virtudes e nobrezas. O sonho clássico da política, hoje, no mundo inteiro, com raríssimas exceções, representa o instinto do domínio escravocrata de constranger os demais a pretexto de angariar recursos e marcar a divisão das classes sociais, em que o forte domina e impõe seus costumes perversos.

Eis o quadro real dos dias, onde a lei da selva como que ganhou conceito de inevitável, feras na luta de sobreviver a todo custo, não importa o idealismo e a Verdade. Na faixa estreita da liberdade que herdamos de enfrentar a ganância dos profissionais da política cabe a todos acreditar nos valores nobres e prosseguir fieis às lições da Ética durante todo tempo.

Ilustração: Detalhe de Jardim das delícias terrenas, de Hieronymus Bosch.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

As naus do Infinito


Desde quando os primeiros foguetes rumaram a Marte que vazio profundo permaneceria no peito dos que aqui ficaram; de olhos fitos nos céus de depois daquele dia, névoa cinza cobriria as cabeça. Os pioneiros deixariam de lado a suposição de que estávamos sós no Universo; haveria possibilidades de encontrar outras humanidades noutros planetas distantes; e seguiram o sonho. Que direito houvesse na imaginação do povo, reveria as atitudes dos quantos que consumiam as riquezas deste mundo; persistiria, sobremodo entre os jovens, um gosto fantástico de que outros e mais outros foguetes também subissem, e nisso trabalhavam muito, no intenso calor do Sol, e à noite permaneciam até as altas horas de pensamento fixo nas luzes que riscavam o espaço a meio das raras nuvens, pois bem dali que eles voltariam numa doce madrugada, argonautas, desbravadores que partiram cheios da certeza de trazer notícias boas de haver, nalgum lugar, mundos de mil e uma noites em que coubesse de todos continuarem a rica aventura dos humanos. 

Horas, luas, meses, longos e frios temporais de novos invernos, sempre de almas levadas nas marcas deixadas naquela partida luminosa, de quando eles sumiram; vidas voltadas a retornar e oferecer saídas, de mãos beijadas e sabor aos corações da Humanidade.

E seguiram inúmeras as novas gerações; passadas se foram as originais, que guardaram a tradição dos homens errantes mandados ao firmamento, a salvação que nutriam os próximos passos da história. Voltados, no entanto, aos afazeres mundanos, muitos esqueceriam os astros lá nos céus, desistiriam do ânimo de que, num fria madrugada, desceriam de olhos vivos e alegres naquela primeira leva a distribuir nacos de esperança e festa; eles, os viajantes que avançaram na intenção de revelar aos que ficassem o mistério das alturas. 

...

Qual dizíamos há pouco, séculos, milênios se desfizeram no furor do tempo, e apenas raras lembranças restaram, nalgumas comunidades afastadas, de que, a certo momento, alguns deles mergulharam no desconhecido à busca da sorte. Assim, dos poucos resquícios, surgiria uma religião que denominaram As Naus do Infinito, e que reza de olhos focados nas luzes que brilham nas noites, enquanto aguardam, silenciosos, as notícias que venham deles, nascidas na imensidão longínqua. 


domingo, 4 de outubro de 2020

Sementes do desconhecido


 Escravizado às camadas inferiores da varada, algum animal escondido ali buscava acordar dos entulhos, dos galhos e folhas secas, até obter êxito nos esforços e surgir à vista de quem olhava interessado em descobrir o que adviria daquele movimento estranho de debaixo das entranhas do chão. Espécie alimária entre ressequida e semelhante quase à textura dos galhos e das folhas secas da entrecasca do solo, dali surge médio corpo de um jacaré filhote de boca grande e dentes afiados. Assim inesperado, preenche o espaço das apreensões de quem assistia. Algo de se recolher com cuidado ao espaço que lhe restava, em defesa dos botes do estranho visitante vindo das entranhas da terra. 

Mas achou por bem de suportar na casa a presença do inesperado ser. Haveria de superar a visita e seus modos, sempre em favor da instituição doméstica. E o tempo foi deslizando no correr dos dias, nas linhas das horas intermitentes, meses, levando a novo acontecido. 

O bicho ainda pequeno lá numa incerta ocasião acharia de se meter em um buraco de outros insetos no encontro de uma parede do lado sul da casa e nele permanecer algum tempo, sem mais, nem menos. Sumiu desaparecido dentro do furo qual houvesse terminado de tudo o drama. Que durou outro tempo, talvez longo, talvez breve, no juízo de velocidade da testemunha que acomodava os sucessivos inesperados. 

Ora só o que viria ocorrer. Daquele buraco, aonde penetrara o filhote de jacaré aparentemente inofensivo pela idade, sairia já no formato de espécie maior da mesma família dos dinossauros, mas noutras e maiores proporções, esse de pele enegrecida, consistente qual o casco dos bichos do passado geológico dos antigos predadores, e com aparência agressiva de apreciador de carne sangrada, de gente que fosse e achasse pela frente. 

Ele, que acompanhara tudo a partir do nascedouro da primeira visão, notou a gravidade dos sucedidos, presenciou em si o risco da sobrevivência em xeque, e somou as peças do enigma. Deveria sobreviver, sim, no intuito primeiro maior de cumprir a missão lhe destinada. Fugiria na primeira nave que lhe viesse recolher face ao desencanto das populações em volta de fogueiras acesas nas noites frias do estio da Terra. 


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Um mundo se refaz a todo momento


A cena final do filme Ran, de Akira Kurosawa, genial diretor do cinema japonês, mostra dois exércitos feudais em confronto numa planície linda, de verde intenso e luzes fulgurantes. Nisso, o plano de próximo vai distanciando para o alto afastando daquela batalha derradeira dos dois clãs em luta, ficando cada vez maior o plano e menores as imagens... até desaparecer numa única visão planetária, minúscula, e sumir de tudo. Quando, certa vez, perguntado o que representaria essa conclusão do filme, Kurosawa considerou ser o que imaginava a visão de Deus quanto aos acontecimentos daqui do chão, dos movimentos de causas e condições, fluir universal das consequências que somem no vazio cósmico.

Esta diluição dos instantes se sobrepondo a novos instantes que vêm e vão, céleres quais vieram, bem significa o que denominamos realidade, sem sustentação definitiva, sem praias de respiração. Apenas um escorrer de tintas nas telas do Infinito, ensaios de um artista magistral, incansavelmente, repetitivamente. Espécie de rascunhos de sonhos que desfazem ao vento das horas mortas, as ânsias humanas gestam o firmamento e somem de junto, autores da própria função, no entanto ausências de resultados, desparecimentos, desejos e velas acesas apenas repastos feitos ao nada inevitável dos dramas.

Nesse intervalo entre dois fragmentos de tempo ali moramos todos, nutrição de eternidade que nunca ultrapassa a visão imediata, eixo central das horas em movimento no carrossel bravio das circunstâncias. Assim contemplamos o definitivo, porém almas largadas aos caprichos da mutação permanente de coisas e seres entre partos e sepulcros, fantasmas nas madrugadas anônimas dos séculos em decomposição.

Há, outrossim, lógica em tudo. Esse roteiro das descobertas face ao mistério das existências, lesmas de rochedos monumentais e oceanos indóceis, o segredo de todos os códigos representa a razão essencial de andar pela História feitos animais esquecidos de contos maravilhosos. Neste trotar de pernas no deserto da solidão, somos heróis das lendas que viveremos lá um dia nos trilhos da Esperança e da Paz.