quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A tartaruga

Certa manhã, quando Chuang Tzu pescava solitário nas águas de um rio profundo de sua terra natal, vieram procurá-lo dois serviçais do príncipe de Chu, a província onde habitava. Eles vinham cumprir as formalidades de propor ao sábio a incumbência de ser o administrador do tesouro da corte.

Silencioso, tranquilo qual o leito daquele rio, o discípulo de Lao Tzu apenas ignorou a presença dos visitantes e seguiu concentrado no seu ofício, indiferente aos acontecimentos em volta.

Preocupados com o tratamento recebido, os funcionários reais insistiram e, de novo, mais veementes, transmitiram a proposta do soberano. Nesse momento, reverencioso, Chuang Tzu cumprimentou aqueles embaixadores para, em seguida, afirmar:

– Um dia chegou ao meu conhecimento existir na capital da província o casco de uma tartaruga sagrada, morta há mais de 300 anos. E que Sua Alteza conserva essa relíquia debaixo de sete chaves, numa arca de ouro instalada no altar mor do templo, costume já originário dos seus ancestrais.

Os dois funcionários balançaram a cabeça em confirmação ao que ouviam, enquanto aguardavam o desfecho das palavras do sábio. 

- Pois bem, ouvindo esse convite do soberano destas terras, quero fazer uma pergunta aos senhores: Caso houvessem dado a essa tartaruga outra oportunidade, no lugar de ela morrer e virar instrumento de veneração, que pudesse continuar vivendo e arrastando o rabo no lodaçal dos pântanos, será que escolheria o sacrifício ao qual se viu submetida?     Os emissários nem 
careceram de muita demora até responderem quase numa só voz:

– Asseguramos, sem duvidar, que, se pudesse, ela preferiria continuar vivendo e arrastando o rabo no lodaçal dos pântanos.

– Eu imagino também que desse modo escolheria – retrucou o mestre, acrescentando:

– Por isso, desejo aos senhores que retornem e transmitam ao príncipe meus agradecimentos pelo honroso convite. Pois também pretendo seguir vivo e permanecer aqui em meu lugar, arrastando o rabo na lama escura destes sítios felizes onde vivo! 

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

As dimensões da memória

Por mais que haja essa disposição de esquecer os traumas da existência, o que predomina sobremodo significará memórias persistentes, essa energia advinda nas formações, senso de dominação que finca raízes e acontecimentos, e marca o andamento dos seres em tudo quanto existe. Em ondas e partículas, a memória tange o tempo no frigir dos objetos e das pessoas. Desde a memória mais original das primeiras formações minerais, vegetais e animais, até os níveis da transcendência da matéria aos mundos superiores, a isto que aqui nos encontramos.

Memória, memórias, caligrafia dos astros nos tantos detalhes dos quadros da Natureza. Há um código universal que assim prevalece e determina que aconteçam. Bem que muitos gostariam que fosse diferente, e que bem pudessem delimitar as ações, sem a sujeição inevitável às leis do grande todo. Que o poder dos humanos tivesse a condição de reverter normas e obedecer aos caprichos pessoais. No entanto, ledo engano. Força maior impõe e os fenômenos ocorrem no sabor de valores abstratos, desconhecidos, na linguagem comum.

Destarte, dever de submissão, representa sabedoria e rendição aos fatores determinantes do quanto seguimos desses códigos da Eternidade. Em tudo, pois, resta gravada a essência do Ser, do Autor que cria e rege a valsa do instante. Senhor absoluto das circunstâncias, jamais desconhecerá a consciência das ocorrências e segue seus andamentos, seja dentro das criaturas, seja no conjunto dos seres em movimento.

Eis a virtude da memória em suas inúmeras dimensões, que representam o plano da realidade visível. Enquanto que, mesmo sob as limitações da inteligência, ninguém dispõe de poder que supere o sonho do existir e permita mergulhar no mistério tenebroso disso. Depois, sós, lembranças vagas respondem silenciosas ao desespero de conhecer o outro lado das imagens que logo passam na tela das consciências, deixando apenas restos soltos de sentimentos guardados na imaginação do que fora e de onde jamais regressarão outra vez.

(Ilustração: Juazeiro da Bahia, foto de Emerson Monteiro). 

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Justiça superior

Quem engana se engana, qual diz o saber das populações. Ledo engano pensar que fica impune quem pisar na bola dos praticados e atingir outros com  atitudes precipitadas no erro. Raciocínio simples por demais. E tantas vezes pensar que correm do destino ao meter os pés pelas mãos. Jesus bem que disse, com a medida com que medirdes, medir-vos-ão também a vós

Isso em tudo por tudo, nos transes deste chão das almas em crescimento. Imaginar o quanto de perfeição existe sempre nas mãos da Natureza e ainda querer fugir pela tangente, espécie de atitude às avessas que em nada corresponde ao tanto que recebemos desde os inícios desses acontecimentos. São assim tantos de nós, vivemos largados na correnteza, soltos no ar, vagando nas aventuras toscas, feitos pavões de fantasia, atirando dados nas roletas da sorte descabida de cobres e penitências. 

Há, no entanto sobranceira justiça, a do Poder sem igual, na luz viva das consciências. Ninguém queira inventar a roda duas vezes. Do mesmo jeito que a gente impera, de volta leis imperam sobre a gente. Leis magnéticas, monumentais, de ação e reação, de retorno, exatidão matemática e ordem suprema do Universo. Esconder de quem existem não alternativas, porquanto a luz da transparência é a luz das existências. Daí, correr em busca do sentido mais puro da Justiça inexpugnável, donde todos viemos e aonde iremos regressar, sobremodo, vestidos no manto definitivo da coerência mãe. 

Importa, pois, a calma diante dos desafios... Aceitar crises com grandeza invés de constranger o sentimento e cair nos desesperos. Ao sabor das sementes que plantar, nele saciaremos a fome de paz, tão logo o tempo assim o determine na face dos valores sem igual. Firmar na certeza nossos passos, tenha disto o nome que melhor queira de conhecer a Verdade absoluta, senhora dos mundos e das horas. 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Fragmentos

Cascalhos dessa velha estrada dos tempos que restam em pequenos indícios do que passaram nas outras caravanas, diante do sentido único do correr dos dias, fiapos das existências. Cacos permanecem largados, agarrados folhas, nos garranchos, nas encostas, feitos meros pedaços da história nos quais há que se ler os escritos da humanidade e suas tantas intenções. Por vezes bem sucedidas intenções; noutras, só experimentos de inutilidade e amenas oportunidades engolidas no seio da ilusão. 

Reza a tradição dos judeus que a tribo de Dã, um dos doze filhos de Abraão, mantinha de costume permanecer atrás das outras caravanas, quando iam fazer longas jornadas. A orientação seria na disposição de recolher os restos que as outras tribos fossem deixando pelas estradas, inclusive as sobras das orações balbuciadas, que lhes serviam de acréscimos aos rituais que também realizavam. 

Quase nunca os derradeiros imaginam a virtude dos que caminham no final das longas caminhadas, dispostos que estejam de chegar primeiro na beira do poço, qual dizem, quem vai na frente bebe água limpa. Mas no transcorrer das epopeias humanas há valores discutíveis nos tempos e costumes. Porquanto, também o dizem, a pressa é inimiga da perfeição. Valorosos contrastes deste chão. As cenas que se sucedem e a história que repete os feitos da ambição. Sob os conceitos místicos, correr dificulta a compreensão daquilo a que viemos buscar.

E nisso examinar os fragmentos fala alto às consciências face dos embates apressados e vitórias dos que imprudentes. As páginas voam e as lições ficam bem guardadas nos astros e nas criaturas. Quantos quebram a cara no dizer e perder logo além. Agoniados habitantes do Chão. Senhores das angústias e de correr aos precipícios de nada permanecer quando cruzar as horas e triturar os bens imagináveis... 

Fragmentos do inútil desejo, fagulhas de paixões e sobejos da sorte nas mãos do destino. A pressa, essa inimiga figadal da Perfeição. Resta ler nas entrelinhas do horizonte o segredo que vive esperto escondido na alma de tudo o que sempre viverá.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Poema de eleição

Pois não é que, sem mais, nem menos, Janaína me perguntou, numa mensagem, qual seria o poema de que mais gosto... Isso que me colheu de repente, e fiquei meio assustado de nunca haver pensado nisto. Mas viajei na surpresa e busquei entre os cacarecos da memória pedaços de lembranças dos tantos e tantos poemas que me tocam, eu que já declamei alguns no Jogral Pasárgada, à época do Colégio Diocesano.  

Poesia clássica, romântica, moderna, de vanguarda, sertaneja, traduções, o que quer que fosse, que valha a pena nesta hora. Versos, reversos; poemas livres; rimados, metrificados; conhecidos, desconhecidos; em prosa; concretos; abstratos; tristes, alegres; venturosos, místicos; tradicionais, recentes?! Andei, que andei; olhei as prateleiras do juízo, isso num ritmo breve, porquanto não aceitaria nunca não ter um poema de predileção, eu detentor do prazer das palavras, espécie de virador das folhas secas dos livros, heranças inevitáveis dos dias, assim qual cão farejador dos inspirados autores.

Até no sentido de livrar a cara de mim mesmo, numa chamada à responsabilidade pelo tempo aplicado no filão das letras, e tratei logo de achar a resposta que devesse à filha indagadora. 

Andei na seara dos confidentes das horas de solidão, nas caladas dos volumes e das horas. Drummond. Vinícius de Moraes. Raul Bopp. Mário Quintana. Castro Alves (Vozes d’África). Cecília Meireles. Murilo Mendes. Ihhh, Fernando Pessoa, monstro sagrado da expressão portuguesa. Bertolt Brecht. Sonetos de Machado de Assis. Olavo Bilac, o perscrutador das estrelas. Raimundo Correia. Padre Antônio Tomás. Ferreira Gullar. Hummm, tarefa das arábias me fora trazida a queima roupa. Os amigos daqui, de valor inestimável, Patativa do Assaré, Luciano Carneiro, Edésio Batista...

Bom, ainda que cheio de empáfia de conhecer do povo de tamanha inspiração, haveria de achar a joia rara dessa coroa dos versos no meu gosto que desafiava o senso de apreciação. Então aflorou, sim, em flagrante súbito quando firmei os pensamentos. O poema que aprecio incondicionalmente, Janaína, é de Manuel Bandeira, Profundamente: Quando ontem adormeci / Na noite de São João / Havia alegria e rumor / Vozes cantigas e risos / Ao pé das fogueiras acesas. / No meio da noite despertei / Não ouvi mais vozes / nem risos / Apenas balões / Passavam errantes / Silenciosamente / Apenas de vez em quando / O ruído de um bonde / Cortava o silêncio / Como um túnel. / Onde estavam os que há pouco / Dançavam / Cantavam / E riam /Ao pé das fogueiras acesas? // — Estavam todos dormindo / Estavam todos deitados / Dormindo / Profundamente. // Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci. // Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo / Minha avó / Meu avô / Totônio Rodrigues / Tomásia / Rosa / Onde estão todos eles? / — Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente.

domingo, 20 de janeiro de 2019

Em paz na consciência

Ida sem volta vive a vida, sentido exclusivo de todas as gerações, das que passaram e das outras que aqui também passarão. Nem adianta confrontar opiniões perante os metais consistentes dos seguimentos eternos, porquanto habitaremos o solo das almas na força da certeza de quanto receberemos, sempre nas luzes da Natureza definitiva do poder além dos objetos que se desfazem à medida que sustentam o projeto da História. 

Raiz da aceitação, pois, comungar das bênçãos de sobreviver a tudo, eis o destino único dos mares, das luas, no firmamento e nas cores. Seres e senhores dos valiosos sonhos, toquemos passo a passo a espera infinita, porquanto somos entes imortais a circular nas veias esplendorosas do Sol. 

Nalgumas ocasiões, frutos dourados das águas da existência, aceitamos o dever conosco mesmos, andarilhos das estrelas às portas da Salvação. Arautos do bem, instrumentos da realidade presente na força das convicções, tracemos, a todo instante os sinais indeléveis da perfeição. 

Isso acalma as tempestades donde vieram os dias de felicidade, e construiremos verdade maior no seio das gentes, autores dos livros da redenção e da paz. Na certeza dessas palavras firmes de quem deseja concretizar planos de solidariedade entre os laços da Criação, vamos nós à busca incessante dos valores da grande transformação.

Tantos iguais aos mistérios que ainda somos aqui irão de junto aos campos iluminados da esperança, e próximos estaremos dos dias em que os Céus abrir-se-ão aos sentimentos naquilo que seja belo, simples e bom. Significa isto o processo de equilíbrio das graças supremas na idealização do Ser de que fazemos parte, composição da essência de tudo quanto há. 

Assim, através dos caminhos do coração, edificaremos de amor mundos de plenitude, sob a tranquilidade universal da música das esferas, senhores absolutos da fiel aceitação do Criador em nossos corações em festa. 

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Um mundo que se desfaz...


... E se refaz logo em seguida, mundo este nosso mundo onde mourejamos à busca de libertação definitiva da condição sob que existimos. Laço de incompreensões e portal das maravilhas, nele traçamos o decorrer dos dias aqui onde aguardamos os Céus no direito de saber antes o que virá. Quando chegam respostas textuais, até aceitamos a forma, no entanto carecemos de maiores esclarecimentos que justifiquem a outros setores racionais da consciência animal, que sirvam de explicações e preencham os espaços do entendimento. 

As horas sucedem o tempo e o Sol ilumina caminhos... No vazio de momentos deste presente que ronda o inesperado, nuvem de sombras cobre os horizontes e raramente revelam maior conformação, porquanto a ninguém foi dado saber de tudo além das existências atuais. Estágio primitivo, pois, de sentimento dos valores do Universo, apenas um mínimo de pequenas estampas fere o senso num tanto mais de futuro, porém, de acordo com o limite do insondável às constatações humanas, seres audazes que permanecem soltos no ar entre súplicas e misericórdias.

Todos, sem exceção, bem anseiam descortinar os degraus do Paraíso, outrossim submetidos ao determinismo da espécie no transcorrer frio das eras. Luzes que acedem de raro em raro e tocam sonhos e esperanças, e atônitos vão a sós face a face com o relativismo do conhecimento geral. 

Isso, pois, de perguntar sacode as noites, prevalece nas crises de viver... Reúne mostras de interpretações dos sábios e deixa que acalmem pensamentos ansiosos, todavia no prazo do conforto e das satisfações, o que some como que por encanto ao primeiro obstáculo. Adiante reagem de armas em punho ao frigir das angústias e das dúvidas, e sofrem com isto quais guerreiros perdidos pelas escuras cavernas da ignorância.  

Bom, quisemos assim demonstrar aspectos do teorema das ausências de claridade na alma até quando, um dia, vislumbremos alvoradas de rara beleza que nos reservam Amor, depois das muitas existências nas escolas deste Chão. 

(Ilustração: Colagem, Emerson Monteiro).

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A Banda do Companheiro Mágico


Dentre as lembranças inesquecíveis que guardo comigo dos tempos quando vivi em Salvador, na década de 70, este marca um momento rico das boas recordações baianas: 

Fora convidado por Boanerges de Castro, amigo músico e colega de banco, a realizar documentário de uma festa de que ele anualmente participava, no sudoeste da Bahia, no povoado de São Gonçalo da Canabrava, próximo à Serra da Mangabeira, na Chapada Diamantina. Prometera ao santo padroeiro que, todo ano, compareceria às suas festividades e, juntamente com mais dois amigos músicos, acompanharia a procissão pelo vilarejo, inclusive a executar os hinos em sua homenagem, em meio às atividades do lugar. E naquele ano eu iria com ele a fim de fazer o registro cinematográfico da sua presença naquele ano.

Antes, porém, passaríamos pela Ilha de Itaparica, quando iria participar, integrando um grupo de metais que formava com mais onze outros músicos, do I Festival de Música de Mar Grande. Assim o fizemos. Chegamos com alguma antecedência e acompanhamos os dois dias do evento, naquela vila, uma das tantas que formam a Grande Itaparica.

No derradeiro dia, domingo, acordamos cedo e os músicos saíram da casa onde estávamos e foram ensaiar a céu aberto, ao sol intenso da manhã. Juntamente conosco estava Edgard Navarro Filho, um cineasta baiano, também meu amigo. Enquanto ensaiavam, pedi a Edgard sua câmara e cuidei de fazer algumas tomadas do grupo, que, por sua vez, se motivou e seguiu pelas ruas de Mar Grande a executar o repertório da apresentação da noite; no decorrer do trajeto gravaria novos enquadramentos de cena.

A película virgem na câmera, uma Chinon, super-8, era, no entanto, restrita tão só a poucos minutos, e fui gastando o cartucho à medida em que andávamos pelas ruas. Nisso, avistei um pequeno circo das imediações, já na praça da vila; convidei os músicos a entrar e tocar no picadeiro. Nessa hora nos acompanhava número expressivo de populares trazidos pelo ritmo cativante das melodias, ao som febril dos metais, frequência que cresceu ao chegarmos no circo. 

As músicas do grupo, repertório de qualidade exemplar, animado aos moldes da alegria baiana, motivava todos a dançar numa total animação, ocasionando evento improvisado e espontâneo. E eu a filmar, convidando as pessoas a participar da película improvisada. 

Isto já com mais de vinte minutos de função, Edgard, descalço, pulando no calor do asfalto quente, ficou admirado de tanto tempo de filmagem; então me perguntou se o cartucho ainda resistia naquilo tudo. Eu respondi que de há muito gastara a película, e mesmo assim não quis interromper a gravação impossível, face ao fenômeno que verificado no entusiasmo daquela gente. 

Daí, seguimos até o porto das barcas de Mar Grande, a dirigir a multidão,  por volta de cem ou mais pessoas, no ritmo acalorado. Mais um, mais um Bahia, mais um título de glória...

Desceríamos até a praia e persistimos naquela fantástica produção cinematográfica durante alguns outros instantes complementares. Nessa hora, daria sinal a todos de que o cartucho do filme terminara, e saímos, os músicos e eu, de volta à casa onde estávamos. Eles tocavam e os populares, da praia, embevecidos, acenavam em despedida. 

Apenas imaginário como um todo, o que só Edgard e eu sabíamos, tenho certeza que aquele filme e aquela manhã inusitada permanecerão para sempre na memória dos que dela participaram sob tanto fervor e tamanha felicidade.

Na sequência, tomaríamos estrada através da Ponte do Funil, na BR-101, e buscaríamos a localidade aonde fizemos o curta-metragem São Gonçalo da Canabrava, de minha autoria, sob a produção de Boanerges de Castro. 

(Agora recente avistei o seu endereço no Messenger e envie minhas notícias, 44 anos depois: – Lembra do nosso filme de São Gonçalo? 1975. Banda do Companheiro Mágico. – Oi Emerson, claro que sim! Que bom ter notícias suas! Feliz ano novo!).


O tempo

O tempo dá, o tempo tira, o tempo passa e a folha vira.                                                                                              Provérbio africano

Uma vez ouvi, lá na Bahia, que Tempo é dos mais importantes dos orixás das religiões afro-brasileiras. Logo em frente das grandes casas do candomblé, por exemplo, com ênfase em Salvador, há grande árvore de gameleira branca de raízes salientes envoltas com um alá (pano branco), sendo este um IROKO, de fundamental necessidade numa casa do culto. Por isso admirado, venerado com fervor. São por vários os sinais da sua valia no fremir dos acontecimentos deste Chão. E há uma história que narra a lenda do Tempo:

Diz o mito que no princípio de tudo, a primeira árvore nascida foi Iroco. Iroko era capaz de muita magia, tanto para o bem quanto para o mal, e se divertia atirando frutos aos pés das pessoas que passavam. (comunidademensageirosdaluz.blogspot.com) 

Senhor das verdades absolutas, desliza ao sabor do movimento dos astros, fagueiro e livre, dominador das esferas e provedor dos alimentos. Ele, silencioso, firme nos páramos eternos, testemunha o fluir das luas e o reviver dos sóis entre nuvens e flores, qual donatário único da esperança e administrador das vidas e renascimentos.

Desde sempre o Tempo aqui esteve, origem das origens e fonte do equilíbrio da justiça. Ainda no blog acima citado lê-se: É também a permanência dentro da impermanência e impermanência na permanência. O ciclo vital, que não muda com o transcorrer da eternidade. A infinita e generosa oferta que a natureza nos faz, desde que saibamos reverenciá-la e louvá-la.

Dado o respeito sob o qual essa existência definitiva permanece diante das determinações das existências, assim reina e impera, flui e permanece, independente das pobres vontades humanas e das meras ocorrências virtuais que persistirão acima dos bens passageiros. Em tudo por tudo, ali está Iroko, escriturário de valores e sonhador das virtudes. 

Aos gregos, detinha o título de Cronos, aquele que pare e devora os próprios filhos, autor dos dias e ceifador das eras sem fim, amém. 

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Voz da experiência

Nem sempre fica só no dizer e no fazer, há que conhecer e dominar o conhecimento, fugir do puro instinto das determinações inconsequentes. Isso o que denominam sabedoria, de sustentar as normas pela experiência adquirida no passar inevitável dos dias e das gerações. Reunir as reações às nossas oportunidades de vida e aprender com a prática. Todos têm disso a cada época. Sem mais, nem menos, ninguém possui todos os elementos de substituir as peças de reposição dos pensamentos apenas ao sabor das crises anteriores. Antes que aconteça o tal exercício do poder pessoal difícil responder aos desafios.

Bom, quis contar da importância de toda fase de vida, as épocas dos aprendizados constantes de evoluir diante da sociedade, da ética, da moral, dos costumes. Criar um banco de dados que possa corresponder aos programas atuais e posteriores. Ninguém, portanto, amadurece fora do prazo. 

Entre os dois programas que nos são oferecidos durante a existência, quais sejam: exercitar os sentidos e adotar o prazer por consequência, ou reconhecer através dos sentidos a necessidade progressiva da consciência rumo aos pendores de uma libertação. Isto noutros patamares além da matéria. Homem carnal versus homem espiritual. Iniciar a compreensão tão só aqui e aqui dar por terminada, ou aceitar o sacrifício qual motivo de revelar outra compreensão além da morte inapelável do corpo de carne.


Experimentar as forças do destino e poder dominá-las em prol de melhores dias, ao instante de existir. Nada, pois, entre essas duas correntezas, uma que desgasta as energias físicas e propende ao final melancólico do ente que morre, ou trabalhar a lição dos místicos, que tanto insistem no princípio da libertação da matéria, no sentido da abstração de quase tudo deste Chão.

No meio de ambas essas correntes persistirão nos seus valores, conquanto adquiridos pelo transcorrer das experiências, síntese dos princípios deste mundo e fator determinante de todo o Universo.   

(Ilustração: Colagem, Emerson Monteiro).

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

O rabi e o alfabeto

Eles, rabi e discípulo, faziam longa viagem quando foram surpreendidos por violenta tempestade às costas de uma ilha distante. Náufragos impenitentes daquele navio, quis o Ser Maior que ambos restassem vivos junto daquelas praias desertas. 

Dias passavam inclementes, alimentados que foram dos frutos de árvores e de pescar como podiam, enquanto viviam de esperar o inesperado dalguém que viesse ali existir ou passar naquelas plagas distantes. Viesse quem viesse, ora que foram, então, surpreendidos, certa noite, à luz da fogueira que lhes aquecia, por bando desalmado que os levaria prisioneiros até aldeia no interior da ilha.

Nesses instantes aterrorizantes, mestre e discípulo, atados e tocados de toscas apreensões, iniciaram diálogo que pudesse mitigar as necessidades de conforto e esperança. O discípulo perguntou ao rabi o que podiam rezar naquela situação que lhes trouxesse o socorro divino, e qual não foi a surpresa do devoto ao saber que o mestre esquecera por completo o quer que fosse de orações e litanias, porquanto apenas restos de escuridão invadira sua memória gasta de aflição.

Ao buscar também dentro de si os frutos do aprendizado que vivera junto do mestre, o discípulo logo reconheceria que de nada recordava das lições religiosas estudadas, e de imediato, mesmo naquela urgência, apegados de vez lhe foram os pensamentos.

Ainda que assim houvesse, o rabi insistiu com o discípulo que ele sendo mais jovem possuiria memória mais acesa, e que recordasse oração que pudesse revivê-los e, através de pedido sincero, merecessem do Poder a liberdade. 

De tanto insistir junto do discípulo, este disse ao mestre que de algo ainda recordava, as letras do alfabeto, apenas. Daí ambos seguiram repetindo baixinho o som das letras do alfabeto, e com isso galgariam pureza e concentração suficientes de erguer a alma a Deus e merecer a libertação, pois não tardaria a chegar expedição que ali surgira e levaria os dois de volta à civilização. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Do outro lado

As normas do destino têm disso, das outras oportunidades de encontrar a clareza dos meios que as façam apresentar face de tranquilidade, logo ou demoradamente, pouco importando os limites aparentes das ocasiões. Percursos originais formados entre o tudo e o nada, de modo exclusivo a todo vivente do Chão, sejam através dos fenômenos naturais, nos trechos íngremes das estradas, sejam nos gestos dos humanos que demonstram o que existe de possibilidades exigindo apenas iniciativa e confiança. Isto é, desesperar jamais. 

Sempre haverá formas mil de recriar os resultados das cenas, quando nisso contamos de nosso lado com a certeza das iniciativas, e que existe uma Lei universal justa e perene, queiram ou não seres pensantes por vezes afeitos aos abismos da ingrata sorte. No entanto o preço da virtude demonstra derradeiras esperanças vivas, em tudo por tudo.

Tão próximo daqui quanto a exatidão das matemáticas persiste o céu de cores que alimentam os quadros vivos do eterno sonho. Pensar em excesso, que produza negatividade, gera isso de amargura, enquanto o pensamento significa o instrumento de busca incessante, sobremodo nos grotões da alma da gente. Do jeito que pode levar ao escurecimento, também ocasiona fórmulas mágicas de nortear os passos ainda que nas ausências de solução.

Em situações as mais severas, de dúvidas e aflição, há decerto nos lenitivos dos elementos da cura, do sonho, das notas claras da salvação, o que remonta tempos humanos vindos no bojo da trajetória de nós conosco mesmos, autores do renascimento e das revelações. Porquanto bem aqui no âmbito de mim persistem laços que indicam o sentido da real definição de viver. Somos, por isto, senhores das horas e parceiros da Criação, ombros das gerações e atores e diretores de nossos filmes. A mágica de existir a tudo indica quais longas histórias produzimos e que trarão só finais felizes. 

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

As máquinas de rezar


Ainda que eu falasse a linguagem dos anjos, se não tivesse amor, seria como um sino que não tem badalo.                                                                            Paulo de Tarso.



Máquinas de rezar, ou o risco do formalismo impuro, o que significa a mesma expressão; o sacerdotismo infiel às letras santas; a intenção de determinar o sagrado sob o mandonismo dos donatários temporais. Isso que lembra as máquinas de rezar dos templos budistas do Himalaia, onde os devotos fazem girar instrumentos que emitem sons de guizos e ficam rodando durante algum tempo enquanto dirigem o pensamento nas orações.

Depois, os profitentes das religiões que abraçam seus credos a ponto de se tornarem doutores da Lei, no entanto formalistas ao extremo, mais intelectuais do que profetas ou fieis praticantes daquilo que transmitem, às vezes com exatidão matemática, na linguagem dos anjos, talvez, sem, contudo, a prática correspondente no mundo das ações. Ter de Deus a ciência e retê-la só consigo, largando de lado a oportunidade principal do exercício na realidade dos acontecimentos.

Esses tais equipamentos de sintonizar o sagrado, ainda que humanos, de carne e osso, sujeitam ser os vendilhões do templo de almas cheias de impurezas e alvejado por fora. Silenciosamente emitem sons de guizos, porém longe de chegar aos níveis da consciência, porque a serviço da fama, da fortuna, das profissões religiosas, todavia sem o traje nupcial de que fala Jesus.

Isso impera sobremodo em tempos de muita teoria e pouca, ou nenhuma prática, das horas de uma civilização empacotada. Instrumentos de transmissão de pensamento e valores, entretanto ausentes de conteúdo, quais conhecemos nas lojas de hoje. Resta aguardar conteúdo de criatividade e bom gosto em igualdade de condições ao progresso tecnológico, quando espiritualidade há de corresponder aos avanços antes obtidos nas máquinas, e que propiciem aos povos a luz no coração.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Domar a imaginação

É bem isso, de conter o furor uterino da imaginação e conquistar o momento dos pensamentos; é centrar o pensamento num só objeto claro e preciso. Conduzir esse instinto de busca aos valores fundamentais da clareza. Aprimorar o senso da percepção da realidade imediata. Essa prática exigirá persistência a fim de permitir tocar adiante setores imperceptíveis ao próprio conhecimento. Esta a grande intenção da maioria dos peregrinos em jornadas diárias. Saber firmar o foco numa compreensão clara, precisa. 

Postulantes a saber um dia caminhar os passos que lhes convêm; deixar por vezes abandonarem-se ao movimento das ondas de tantas horas bravias, e nisso sujeitar desconhecer a força dos elementos, invés de utilizar os recursos ao seu dispor feitos joguetes da sorte vaga nas mãos do destino; correr o risco de esquecer a história a quem deve escrever o que passou. 

Já é diferente de acalmar o coração, pois imaginação funcionará sob a égide sórdida dos pássaros silenciosos nas noites abissais. Tontos de viver domínios rígidos e ânsias materiais, neurônios dispersos exigem agora a libertação e agem expandidos nas florestas escuras do Inconsciente. Presas dos princípios totalitários dos modelos prontos, eles explodirão de cores nos dias ensolarados, e determinarão o sacrifício das eras através de outros moldes criativos. Esvairão as reservas de certezas e largarão as limitações aos mantos de razão inesperada.

Deter, portanto, a nave incandescente pelos céus do Universo significará ir além das sombras e despertar os recursos que tem a Natureza de trazer meios a uma sobrevivência até então imprevisível à espécie dos homens. Virem seres desconhecidos recolher aqueles que assim o mereçam e sair daqui face dos inesperados acontecimentos porvindouros, e serem levados a outros níveis de compreensão ainda não despertados agora. Serão arrebatados a mundos exóticos, arrastados que forem na voragem dos mistérios que a raça ignorava, e para sempre desaparecer nos infinitos corredores cósmicos.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Aonde

Nessa busca de resposta os rios correm cá dentro das criaturas humanas; aonde chegar, no entanto? A que finalidade isso tudo espalhado pelo mundo invisível das horas nas emoções largadas aos trilhos e destinos individuais? Sim, dentro de toda roupa da carne habita um ser vivo, pessoa igual às demais, tangendo mesmos sonhos de sonhos e vivendo mesmos questionamentos... Alguns até respondem com alegria o crepitar dos corações, porquanto meio outro impossível seria. Que fronteiras físicas existem e são a fim de superar as distâncias, vez que somos do tanto suficiente de precisar saber aonde chegar, ali, isto, principalmente, pesa que nem dores e credos incrustados no cérebro. Nas faces as interrogações do sentimento, vez por todas revelando a si a função de pisar e sacudir a poeira dos passados de raças e culturas. 

Dúvidas persistem nesse trocar de passadas, depois dalgumas contradições, e imaginar que fosse do jeito que imaginavam, noutras avaliações e possibilidades, mas nem sempre se apresentam no horizonte e fazem um frio de silêncio a percorre de tremores o corpo, ânsias de encontrar a resposta do desejo febril nas entranhas adormecidas. Parar um pouco e estudar isso dos resultados daquilo que antes existia e agora nunca mais existirá. Examinar os movimentos internos da matéria, células, moléculas, bactérias, pensamento, que ocupam os espíritos e percorrem as florestas virgens e desconhecidas quais aventureiros da alma em crescimento. Olha daqui, olha dali, e param na face dos barrancos das rudes de jornadas heroicas, e aceitam, porquanto, nenhuma outra condição que não seja essa de apresentar alternativas nascidas no fogo dos segredos a si revelados de todos ainda somos mistérios adormecidos. 

Mudar de parágrafo e animais vivos inclementes preenchem a tela da memória e pedem compreensão a todo momento. Máquinas de pensar que, de vez em quando, também sentem, e sorriem, e amam.