segunda-feira, 7 de julho de 2014

Rio Preto

Nordeste. Princípios do século XX.

Durante algum tempo no comando de quase uma dúzia de perversos capangas promovendo as piores estripulias no sertão paraibano, o facínora deixara crescer a cabeleira, tendo se homiziado em cabana do meio da mata em serra das proximidades de Pombal. Tipo cabo-verde, cor escura e cabelos retintos e lisos, merecera o cognome de Rio Preto, título que significava o maior flagelo da região.

Homens altivos, no entanto, mantinham suas posições de mando e não se deixavam abater pelos abusos, qual Padre Amâncio, a quem foram dirigidas afrontas indiretas até o dia em que os dois vierem de se deparar face a face numa variante isolada e o fora-da-lei tudo que fez foi descer da montaria para pedir a bênção ao respeitado sacerdote, fazendo lembrar o célebre episódio verificado entre Átila, rei dos hunos, e o papa Leão I.

Noutros casos, todavia, esse comportamento desatinava, causando pânico à sociedade rural da época. Sempre que casava alguma moça na redondeza, fosse de que família, o bandoleiro mandava dizer que iria buscá-la para passar uns dias em sua companhia. E desse modo se dava. Iria mesmo, e pronto, pois com ele ninguém dispunha de regulamento.

Foi sob nesse império de desordem que resolveu casar João Leite, destemido representante da mais tradicional família da localidade. A atuação do celerado pouco interferiu na decisão. O desaforo da promessa se verificou por conta de recado igual ao das outras ocasiões. Mandou dizer que aguardasse a visita de buscar a noiva, predestinada ao sórdido gesto. 

Houve o casamento, muita festa, muita pompa, dentro das formalidades usuais, porém sob o clima da afronta iminente. 

No dia seguinte, ainda no escuro da madrugada, se dirigiram os nubentes à casa do sogro do noivo, e nas mãos dele ficou recolhida. O preocupado nubente se despediu de todos e rumou de volta ao futuro lar.

Os planos haviam sido elaborados com todo detalhe. Reluzentes bacamartes boca-de-sino dormiam carregados até as bordas, no quarto dos fundos, junto de cangalhas e rolos de fumo curtidos de sol. O recém-casado e seu irmão selaram o plano extremo de defesa da honra familiar enquanto arriavam os cavalos que os levariam ao sítio do inimigo. Cruzaram nas pernas os instrumentos da luta e chisparam de pronto à serra afastada.

A casa ficava numa clareira. Na época invernosa, se via cercada de mata-pasto de meia altura, coisa normal em torno dos terreiros sertanejos. No oitão, a janela referente ao quarto onde pernoitava o temido personagem estava na mira, pois sabiam ser hábito do bandoleiro, que a cada manhã nela se debruçava e olhava o tempo, envolto na vasta cabeleira que lhe alcançava os ombros em cachos desgrenhados, contorno agressivo mais para fera do que para gente.

Quando abria a janela, nessas ocasiões matinais, dava um guincho estridente, feito de animal selvagem.

João Leite e o irmão, pressentindo os movimentos habituais, estavam postados justo em frente da janela, encobertos no trançado de arbustos, medida suficiente para não serem notados, quando o marginal botou de fora o corpanzil e liberou o guincho característico. Nisso, o noivo apreensivo disparou-lhe em cheio a descarga de bacamarte bem no meio do peito, toldando de fumaça a vegetação e, de vez, assustando a passarada.

Em face do impacto do tiro, como que por mero instinto, Rio Preto saltou a janela e correu mata adentro, indo arfante concluir o sofrimento lá no alto da serra, nas imediações do refúgio.

Segundo ouvi de meu pai, quem passasse naquelas paragens poderia identificar o morro onde existiu por décadas um cruzeiro para marcar o ponto em que vieram, depois, encontrar os restos do bandido feroz.

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