As trevas da Inquisição lastravam a Europa de
terror e mártires. A Idade Média anulara os anseios religiosos da grande
população através de cruel intolerância, solapando liberdades civis qual peste
sulfurosa. Durante o século XIII, se cometeram ignomínias e atrocidades, ações
que iam do confisco de bens a execuções sumárias, torturas e castigos
inimagináveis.
No auge disso tudo, na cidade espanhola de Barcelona existia ferreiro
afamado que ganhava a preferência dos executores na confecção de instrumentos
requintados adotados pela repressão impiedosa. Suas algemas mereceriam mais
respeito face ao primoroso zelo com que as manufaturava, sem existir quem
pudesse superar na qualidade. Atendia com sobras as encomendas que viessem. De
suas produções jamais alguém escapara. Um profissional e tanto o ferreiro
daquelas peças de trancar os perseguidos da oligarquia religiosa que avassalava
esse período trágico, no combate a idéias renovadoras e no escarmento das
vítimas.
Pois bem, esse homem até se orgulhava disso: Ninguém se livraria das
suas tenazes; ninguém, quando preso, fugiria dos atrozes mecanismos. O Infinito,
porém, justo e sobranceiro, guarda lá surpresas, na ronda dos aparentes ditames
da monotonia do tempo.
Dias e noites passavam céleres, até que, durante festa de insistentes
brindes, perante vasta multidão, o ferreiro, animado além do tanto nos assuntos
do vinho, excedeu-se em palavras, deixando vazar segredos inconfessáveis aos
quais chegara por via do prestígio adquirido junto à cúpula do Santo Ofício. Na
carraspana, revelara notícias que determinariam seu próximo destino, bas armadilhas
da língua.
Coisa pior não poderia acontecer. Cairia desse jeito nas garras
mortíferas do mesmo tribunal a quem servira com esmero. A equipe dos doentes
espirituais, por meio de julgamento sumário, cuidou da sua condenação, ficando
desfeita a velha aliança de ferreiro e cliente.
Após o pesadelo das primeiras horas, ele despertou desnudo em solo
úmido de infecta masmorra, colado de frio a pedras ásperas. Sentiu preso nos
pulsos pelos crivos de metal enegrecido. Entre dormido e acordado, buscou esperanças
no manuseio profissional dos mecanismos que o retinham junto da tosca parede.
Recobrou lentamente os sentidos para perceber (qual surpresa desagradável!)
que se via atravancado nos braços e pernas por dois pares das algemas que
produzira na quase na véspera da infausta comemoração onde perdera a liberdade,
sentenciado ao merecimento torpe que antes auxiliava outros a experimentar.
Em seguida e desencantado, se rendeu a esperar o improvável, como
ocorre nas situações semelhantes, quando na
medida com que medirmos medir-nos-á também a nós.
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