sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Apólogo II

Numa dessas manhãs ensolaradas, cedo, reunida no chiqueiro da fazenda, a bicharada examinava o dia a dia depois de haver escutado as conversas ouvidas na casa grande. Assunto grave era trazido pelo carneiro, de si bem apreensivo, de que a dona da casa fora vítima da picada de um dos mais venenosos escorpiões, à véspera, e na noite ninguém conseguira pregar o olho. 

Mas os bichos analisavam a notícia com total indiferença; evitavam maiores envolvimentos naquilo tudo. Desde logo, a cabra dissera que não era consigo. Que deixassem que eles lá resolvessem os problemas da casa, e a gente resolvesse os nossos aqui.

O galo acrescentou que procurava solucionar as dificuldades do galinheiro, que deixassem situações de gentes com elas e as dos animais com eles, de si um tanto limitados que viviam nas suas ações particulares. 

- É, foi falando o jumento, bem que penso assim também. Cada macaco no seu galho. Vamos cuidar das nossas vidas, o que até facilita as ocupações do proprietário. O porco, pachorrento, largado na primeira poça de lama do inverno, ainda teve tempo de manifestar opinião igual à dos demais companheiros. 

Nessa hora, o dia foi crescendo, crescendo, e o movimento na residência do coronel ficando acelerado. Daí a pouco, saía o primeiro portador à busca de auxílio. Traria o farmacêutico e os medicamentos. Pelo início da tarde, praticamente o quadro ficaria pior. O pessoal da copa mandou de vez pegar o galo e dele preparar uma canja, a servir à enferma no jantar.

Qual o quê, na meia noite e meia, zás que a dona da casa deixava este mundo e as lágrimas tomavam por completo o seio da família.

Pelo escuro da madrugada, o capataz mandou selar o jumento e seguiu indo esperar os primeiros parentes, que vinham chegando; enquanto isto, a notícia ganhou mundo e aumentaram as precisões das panelas no vai-e-vem da residência. Tiveram de executar a cabra, no almoço do dia, antes mesmo de virem chegar os familiares doutros sítios. 

Resultado: Seguiram dias de juízo na fazenda, pois as visitas demoraram quase a semana toda e consumiram várias galinhas, dois porcos e alguns carneiros, além de uma dúzia de marrecos, quase dando cabo da reserva do criatório, face ao inesperado efeito daquele inseto peçonhento.

Ao serem levados, um a um, em estado de choque, os animais se entreolhavam aparvalhados face duas realidades. Primeira, do comodismo indiferente com que, desde o início, haviam tratado a dura ocorrência; depois, visto desconhecer quase por completo o destino que lhes defrontaria, jamais pensaram do que, dali adiante, seria o seu destino.  

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