domingo, 19 de abril de 2015

Festival de Inverno

Em julho de 1971, na companhia de Tiago Araripe, viajei para Salvador, ali permanecendo três dias. Cruzava pela primeira vez o Rio São Francisco rumo ao Sudeste. Da Bahia rumamos a Belo Horizonte e daí a Ouro Preto, onde permanecemos durante uma semana, época do Festival de Inverno, tradicional atividade de meio de ano voltada às artes e à cultura, reunindo gente de tudo quanto era lugar.

Levávamos carta de Figueiredo Filho a Antônio Pinheiro, cratense e diretor da Escola de Minas de Ouro Preto, que nos instalou numa das várias pousadas pertencentes à instituição, abrigo dos alunos no período letivo da escola.

Na antiga Vila Rica do herói de Tiradentes, nos reunimos com outros amigos de Crato, José Esmeraldo Gonçalves e Pedro Ernesto de Alencar, em plano de viagem adrede montado por Tiago.

A quem conhecia essa parte do Brasil apenas de livro, oportunidade melhor tornava-se rara. Tudo era novidade, nessa fase de intensas buscas existenciais ligadas a interesses políticos, psicodélicos, artísticos, no auge do movimento “hippie” de cunho mundial. O período Medici, no entanto, agia com força total, na fase mais repressiva dos governos militares.  

Enquanto isso, nós caminhávamos pelas ruas nubladas do Ciclo do Ouro, acesos na beleza inigualável do barroco mineiro, sua arquitetura colonial, capelas, igrejas, casario, altares ofuscantes de pedras preciosas, imagens, pinturas, monumentos externos. 

Ocorriam desencontros nas ações policiais pelas ruas e praças, impondo clima contraditório de medo entre os jovens que exibiam trajes coloridos, cabelos desgrenhados, batiam violões, pintavam, desenhavam, e viam-se proibidos de formar aglomerações ou realizar qualquer tipo de manifestação coletiva.

Nítidos paradoxos fervilhavam na quermesse de pessoas alegres, receptivas; causavam incertezas no ritmo festivos da aparente liberdade, quais lufadas de vento aziago no ar distante das serras friorentas.

Assim que chegamos, soubemos da prisão na cidade dos atores do Living Theatre, que, comandados por Julien Beck e Judith Malina, desenvolviam performances junto ao povo, espécie de vanguarda com proposta política engajada na realidade, em torno de idéias libertárias e contestatórias, os quais incomodaram o aparelho repressor, naquele momento preocupado sobremaneira com os desdobramentos do festival.

Logo em seguida, os vários artistas presos foram recambiados para Belo Horizonte, a fim responderem a inquérito por consumo de droga e atentado à imagem brasileira no exterior, sendo expulsos no dia 08 de setembro do mesmo ano; e, depois de um ano, absolvidos.

O festival de 1971 destacou na programação a figura do pintor de interiores das igrejas ouro-pretanas Manuel da Costa Athayde, gênio português motivo de cursos e mais cursos ministrados na ocasião, cujo trabalho somado ao do magistral Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa), entalhador e escultor do barroco luso-brasileiro, integra o destacado patrimônio da arte sacra no Brasil. 

Quando o termômetro atingia próximo da marca de 10oC, com possibilidades de menores temperaturas, deliberamos em qual direção seguir, entre Rio de Janeiro e Brasília. Numa das praças seculares do lugar, votamos os quatro membros do grupo e ganharam os que pretendiam conhecer o Rio, sendo que antes passaríamos por Congonhas do Campo, a fim de também visitar a bela cidade histórica que detém a obra principal do Aleijadinho, na Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, acervo composto de 66 imagens esculpidas em madeira e os 12 profetas em tamanho natural, feitos em pedra-sabão, jóias raras do período colonial brasileiro. 

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