domingo, 29 de setembro de 2024

As hostes do passado


Elas voltam com estranha intensidade; querem se repetir a todo custo, as ocorrências que o Tempo cuidara de transportar aos escarcéus, porém que, nalgum lugar, subsistem. Voltam, sim, nos mais diversos formados, desde visões inesperadas a cacos de louça e relíquias, prospectos de remédios, roupas aos pedaços jogadas no lixo, no entanto que repetem as velhas emoções e deixam criaturas em polvorosa, vítimas que foram daquelas imprevidências.

Assim também parecem as contradições humanas, que vêm nos campos de batalha dos conflitos indecorosos de sempre, quando os astros cruzam os céus e mexem nas consciências frustradas dos inevitáveis protagonistas de tempos atrás. Dali insistem continuar a perseguir os mesmos desavisados em suas práticas imbecis. Quais lembranças de ações indesejadas, causam os mesmos espantos na forma de agressão, isso na ânsia de meras ilusões, vidas afora.

As pessoas relembram lendas de animais agressivos e ficam tanto quanto a retalhar carnes e chão. Nem sei explicar direito o motivo das histórias abandonadas nos antigos alfarrábios descobertos na lama dos rios maiores. Só que deixaram rastros de dor marcando o sentimento de todos.

No repicar dos carrilhões, lá do passado, essas litanias absurdas de uma raça inteira, que sobra ao lombo de quantos animais. Quer-se, pois, não seja que tal, contudo igual nível de primitivismo persegue o trilho das jornadas gastas que sumiram e regressam em sessões repetitivas de velhos monstros aparentemente esquecidos naquela memória nefasta dos tempos inglórios.

Estrada estreita entre o que virá e o que sumiu, nela perseguem as gerações o seu instinto perverso de feras em experiência. Alguns, quiçá, possam crescer e desaparecer no Infinito das luzes lá no Cosmos. Todavia capengam nos barracos antigos às folhas secas das arcáicas marcas de perseguição na busca de sobreviver dalgum modo ao furor do desaparecimento, numa sede sem igual.

sábado, 28 de setembro de 2024

Coerência

Dentre as tantas histórias de Francisco Cândido Xavier, consta que, certa vez, o médium viajava de avião, na época dos resistentes DC-3, tradicionais bimotores a servir nas linhas aéreas do interior, quando a aeronave resolveu falhar um dos motores em pleno vôo, para desespero daqueles que a ocupavam.

Mobilização geral na tripulação, por si só conformada, nessas horas difíceis. Os passageiros, todavia, entraram em pânico e desalento, tumultuando de incomum agitação os céus tranqüilos das Minas Gerais.

Chico Xavier também não ficou de fora daquilo das emoções intensas do momento crítico. Entrou no clima extremoso que se configurava. Correm daqui, correm dali, braços aos ares, mãos a coçar a cabeça, gritos, aflição que tomava de conta dos protagonistas, nas ensolaradas nuvens lá longe.

Esse instante de gravidade fê-lo lembrar do seu guia espiritual, Emmanuel. Naquilo tudo, recolheu-se aos mais íntimos pensamentos, conseguiu estabelecer um contato e emitiu pedido de urgência ao bom espírito, dada a situação vexatória por demais aonde padecia.

Nesse meio tempo, o comandante estabelecera providências e buscava aeroporto próximo, a fim de realizar o pouso forçado, quando Chico avistou, deslocando-se pelo intervalo das poltronas do avião, chegando na sua direção, a figura benfazeja de Emmanuel, motivo inigualável da felicidade pura.

- Sim, Chico, me chamou? – indagou a princípio.

- Chamei, chamei – respondeu ofegante o médium mineiro.

- Pois diga lá o que com isso pretende.

- Ora, Emmanuel, não vê o que se passa aqui comigo, no meio desse sufoco? Os acontecimentos, a seguir como vão, e morreremos todos, sem qualquer apelo.

O espírito olhou em volta, prudente, reconhecendo a tensão que contagiava os ocupantes daquele vôo incerto. Outra vez, fitou Cândido Xavier e lhe disse:

- Sei, Chico, que ocorre tudo isso. Vejo o medo que lhe invade – seguiu dizendo: - Trate de adquirir calma; se comporte; controle os nervos; dê exemplo de quem sabe do outro lado da vida.

- Mas, Emmanuel, o que espera para auxiliar a gente? Não observa que posso, a qualquer momento, desencarnar com a queda do aparelho? – e, quase a chorar, acrescentou: - Vou morrer sem ver amigos, parentes...

- O que é que isso tem demais, Chico? Pois, então, domine o desespero e morra com educação. Ao menos isso, morra com educação.  

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

No seio das travessias


A dependência em relação ao objeto é total quando o sujeito não é capaz de refletir sobre si mesmo e, por conseguinte, não tem a percepção do que se passa no seu interior.
Carl Jung (Resposta a Jó)

Tal busca de perfeição, ainda que diante de todas interrogações, lhe faz andar face ao Destino, deixando marcas definitivas nas respostas restantes na alma das criaturas. De tão determinante, à força das contradições, por isso todos tocam os instintos que o são, numa clara certeza de chegar nalgum universo, nalgum lugar do porvir. Isso de persistir bem caracteriza o itinerário e as histórias, suas desavenças e prováveis acertos que defronte no inexistente, mesmo destarte, pois. Daí o vazio das ações que dominam a História.

Ser-se-ia Criador e criatura num único objeto ora visível, ora só de mistério ausente. Às apalpadelas, havemos de seguir a qualquer custo, rumo das alturas, em queda livre. E essas percepções circulam em tudo quanto compõe o drama sideral, antropóides que contêm a Luz e nela se iluminam.

Foram tantas luas até chegar aqui; largas fascinações pela ciência, marcas deixadas ao longo das mais profundas e sórdidas aventuras, no transcorre do tempo. Esse mesmo ente de infinitos sonhos equivale ao farnel que sobrevive e amargura, de questões inexplicáveis de si em si próprio. Trilhos de valores imaginários, ferem o senso da consciência através de sonhos e imaginações adormecidas nas entranhas da inexistência, circunstâncias e desaparecimentos, quais ficção de um autor desconhecido a lhe percorrer desde primórdios e alimentar o desejo de prosseguir desde sempre.

Resenha inestimável de tudo em volta, esses testemunhos dizem dos sentimentos vivos que o somos, minúsculas partículas das maravilhas através de passageiros fugazes, adormecidos pelos vagões da sorte. Daqui, e em largas proporções, todos indagam o que há de vir, cientes da imensa perfeição vinda nos sóis de todo dia. Vultos por vezes obscuros, agem feitos quem quase nada conhece do desconhecido, meros experimentos da dúvida, tais cegos em viagem pelas noites à espera dos dias abertos de uma verdade definitiva.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

O violeiro esperto

Sem mudar qualquer corda de sua viola nem quebrar um pé de verso, o violeiro sustentou por duas semanas, de rima e cantoria, toda aquela redondeza, na região dos Inhamuns. Larga maratona de intenso trabalho. Afinal vivia disso. Instalado na varanda de dona Tonica da Pitombeira, noites seguidas deslocara-se no jipe velho pelos terreiros dos sítios próximos e tome repente. A cada viagem, mais ajuntava em objetos, dinheiro ou mantimento. 

Bem que a garganta resistia suficiente aos gorjeios do poeta. De quando em vez outro parceiro dava o ar da graça, com ele dividindo as funções e a festa raiava no outro dia. Animação de ninguém achar defeito.

Na hora da cota, o custo das emoções, tudo quer era de economia dos matutos impressionados vinha nas tiradas do feliz violeiro. Sabia como poucos extrair pagamento. Qualquer coisa lhe agradava, desde imagens antigas de santo até lençóis fora de uso. 

Desse jeito, cevado nos confortos e quitutes da viúva e seu galinheiro afamado, dormindo as tarde mormacentas do estio, para, depois de um banho na represa do açude, o cantador reunir boa feira nas quebradas daquele sertão. Sua fama ia longe. Poucos rouxinóis de lenda juntaram tanta riqueza num espaço de tempo tão curto.

Na segunda semana, quando as prendas começaram a rarear, certo manhã, o homem deu-se por satisfeito e resolveu bater asas. Organizou o que arrecadara em queijos, licores, roçadeiras, cordas, pavios de algodão, jóias, garrunchas, gibão de couro, mel de abelha, esporas, adereços, munição, perfumes, chocalhos, o escambau a quatro, no dizer do povo. Arrumou a mala, ensacou a viola e decidiu voltar às terras do Cariri, onde iniciara o percurso.

Da porta do jipe, com o motor funcionando, falava despedidas melosas à dona da casa, em pé na calçada, quando porca magra, seguida de vários bacorins achou de cruzar o terreiro. As vistas do cantador se alumiaram.

- Dona Tonica, a senhora nunca teve vontade de me dar um bacorim dessa ninhada?  – assuntou cuidadoso.

A bondosa senhora, meio escaldada com os interesses do malazarte, generosa no entanto, por sua vez respondeu:

- Sim, senhor, meu poeta, não seja por isso. Se quer um, pode levar.

Corre daqui e dali, arrancaram da mãe o filhote que, posto na traseira do carro, grunia de causar dó.

Saiu desse jeito na estrada. Rodou pouco o violeiro, cem braças talvez. Botou macha-ré no veículo. Chegou igual com a casa da fazenda e buzinou:

- Dona Tonica, quanto vale mesmo esse bacorim que ganhei da senhora? – quis saber da paciente viúva.

Ao ouvir o valor que ela dizia, esse preço pediu pelo bicho e fechou o negócio. No lugar do animal escolhia levar o dinheiro, que a viagem ia demorar algum tempo. Enquanto isso, esperava achar algum trabalho por onde passasse. 

domingo, 22 de setembro de 2024

A que isto se destina


Acima de toda cogitação, tocam adiante o comboio da compreensão de pessoas e lugares, num afã de causar espécie, porquanto de livre consciência todos caminham nalguma direção, fome incontida de prosseguir nessa ilha descomunal de existir e lá durante alguns instantes virem a conhecer o teto das alturas donde chegaram. Isto dito nas palavras e vivido nos pensamentos, prazo de interpretar os sentimentos, crivos da razão de estar aqui, os viventes perduram enquanto resistem ao senso da matéria, e depois vêm as tantas hipóteses por demais misteriosas quanto da distância entre as palavras e outros espaços profundos na Consciência de serem portadores ainda na época do plantio de desvendar seus segredos guardados no íntimo das humanas criaturas.

Mas bem isto de revelar a si mesmos tal que seja a fonte donde procedem os fenômenos dos quais estamos neste Chão. Por mais desejada seja a ânsia da revelação, seguimos a sós no silêncio das quantas hipóteses, face haver outras dimensões fora das reais percepções. Ali, ausência das visões atuais, percorrem os que seguem após o transe das eras. Sob tudo, tênue cortina divide os mundos e vaga solta nas filosofias, nos mitos, lendas, fábulas, orações, rituais, doutrinas, sábios, deuses, altares, cânticos, peregrinações, marcas deixadas pelos saberes humanos desde então.

Nesse estreito território das circunstâncias, fase intermediário entre a dor e a felicidade, reside o vasto Infinito dos séculos em movimento, suas determinações e justiça, verdades sem conta. Meio tempo este quando apenas notamos o som da perfeição e a beleza das artes, função de um circo imaginário aonde quase nunca ingressamos, algo semelhante ao Nada, porém ausente de palavras e desejos, nas longas noites da solidão.

Há indícios dessa rara possibilidade, contudo. Espelhos foscos de imagens raras, assim vultos encapuzados percorrem o vazio absoluto deste intervalo pouco a pouco deixado em Si às margens do rio imenso da Eternidade.

(Ilustração: Arte profunda, solidão (Freepik).

sábado, 21 de setembro de 2024

A história de padre João Sem Cuidado (Conto popular)

Certa vez, quando visitava província distante do seu reino, percebeu o soberano que as armas do padre João Sem Cuidado predominavam na maioria dos bens daquela região. Notou também que esse senhor detinha tais posses e não levantava sequer uma palha para dar de conta de suas propriedades, fazendo-se, por isso, justo merecedor do nome de Sem Cuidado sob o qual lhe conheciam.

Após investigar a situação que encontrara, achando-a deficiente, chamou aquele religioso para maiores esclarecimentos.

- O senhor possui todos esses valores e nada faz para merecê-los. Isto que dizem de V.Sa. corresponde mesmo à realidade? - quis saber o monarca.

- El Rei, meu senhor, esta é a mais pura realidade - foi respondendo o sacerdote. - Minhas propriedades cresceram e crescem independente dos meus cuidados. Entrego sempre a Deus as preocupações por esse trabalho, pois a Ele sirvo e nem confio.

Ao soberano pareceu que houvesse alguma coisa de irregular naquilo. Em consequência, decidiu impor ao súdito uma série de enigmas os quais, não fossem decifrados, o levariam, sem apelação, à forca, dentro da rigorosa autoridade do rei.

- Quero saber, pois, de sua capacidade - impôs o soberano. - Dentro de um mês, o senhor deverá comparecer ao palácio e me dizer: Quantos balaios mede a montanha mais alta do reino, qual o peso da Lua, onde fica o centro da Terra e, para completar, o que estarei pensando na ocasião do seu interrogatório.       

O padre João ficou triste com essas palavras. Recolheu-se em casa durante vários dias, examinando as questões que teria de resolver. Nisso, um dos seus irmãos, Felipe Doido, que perdera o juízo de tanto pensar nas coisas da natureza, reagiu aos enigmas e pediu a Sem Cuidado que pusesse ele no seu lugar para responder às interrogações.

Desta forma, no dia em que se vencia o prazo estabelecido, Felipe paramentou-se todo, indo à presença solene da corte. Cumpridas as formalidades, direto chegaram ao assunto.

O rei perguntou: - Quanto mede a montanha mais alta do meu reino? Ao que Felipe Doido respondeu: - Não chega a medir um balaio dos meus.

Sem poder prever o tamanho do balaio de que cogitava, nenhuma alternativa restou ao rei inquisidor que não fosse aceitar por correta a resposta do subalterno. - Qual o peso da Lua? - quis logo saber no seguimento.

- Sete arrobas e meia - respondeu Felipe. - Caso V. Alteza duvide, pague a despesa de trazer a Lua até aqui para pesar, e eu pagarei o tanto de levá-la de volta. O rei abismado aceitava, desse jeito, a correção da segunda resposta.

- Então, agora me diga onde fica o centro da Terra.

Felipe tirou do bolso da batina um compasso, traçando com ele, no solo, círculo exato e apontou para o centro da figura geométrica dizendo estar ali o centro da Terra. Esta seria mais uma resposta que admitida pelo rei, que demonstrava contrariedade pelo sucesso do interrogado.

- Por fim, quero que o senhor me diga o que estou pensando neste momento - fixou o monarca com seriedade, acreditando impossível qualquer resposta para aquela pergunta.

- V. Alteza pensa, neste momento, que está falando com padre João Sem Cuidado, quando, na verdade, fala é com Felipe Doido, irmão dele.

Vista a sagacidade rara com que o vassalo se manifestava, o rei baixou a cabeça, conformado com a derradeira resposta; em seguida, felicitou o padre João Sem Cuidado, que chegava. A partir desse dia, com justiça, ele e sua família se transformaram em fiéis e queridos servidores da casa real.      

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Ali onde nascem os sonhos


Vastos de memórias, serras e vales, o Tempo transita suavemente às bordas do Infinito; paraísos ao Sol; luzes de firmamentos distantes; trilhas constantes a refazer o estio das longas invernadas; comboios de ciganos espalhados pelo mundo à procura da sorte; oásis férteis, floridos; longas noites a nutrir o teto das lembranças; nós, enfim, seres alimentados de certezas que fazem crescer o desejo de novas oportunidades, artesões dos destinos, uns que contemplam os demais na cintilação de novos dias, mesmo diante da dúvida, dos sentimentos ainda imperfeitos, das palavras toscas a escorrer do canto da boca, no que se viveu tantas vezes aos pés das circunstâncias imperenes.

Por isso, lá neste universo de tantos a viajar pelas horas incontidas dos finais de tarde que sacodem corações, bem nesse lugar de todos os mistérios desliza a fome de continuar, de descobrir os segredos guardados entre as luas instáveis e os pequenos rascunhos do porvir. Sei que a gente busca, frenéticos, os dias de paz, a união de quantos assim porejam no calor das existências, envoltos no manto sórdido da matéria bruta, porém à cata dos melhores momentos desde então.

No penhasco desses abismos mais profundos adormecem, no entanto, valores, experiências, vontades soltas nos prados desconhecidos de muitos em movimento. Antes de tudo, somos isto, a indagação da humana felicidade a braços com lamúrias e litanias, senhores de si na ânsia da compreensão futura. Do centro do carrossel imenso da dúvida persistirá, pois, o ímpeto de uma verdade plena, imã forte das tradições de estar aqui e viver no seio da história de que somos parte inevitável.

Espécies de seres independentes doutras razões, os sonhos sobrevêm toda vez sem trazer à alma maiores marcas senão as deixadas pelo Inconsciente, território de onde se originam. São partes nossas que perduram além do que imaginamos, as mensagens de perfeição que nos traz até aqui.

O lenhador e a morte


Quando menino, ouvi algumas vezes essa história, que permaneceu bom tempo escondida, zanzando pelas dobras da memória. Falava de um lenhador vivente de montanha afastada, onde penava teimoso a sobreviver com esposa e filhos em meio aos desafios de uma existência paupérrima, não tão longe de pequena vila. Com saúde frágil, o homem mourejava o sustendo colhendo madeira para vender nas proximidades.

Certo dia, quando cumpria seu ritual diário de trabalho, sentiu-se por demais desanimado em face do esforço e dos poucos resultados, dobrando-se sob o feixe de lenha que transportava às costas; daí, resolveu reclamar daquela rotina:

  - Chega! Quanta dificuldade tenho cruzado. Cadê a morte que nunca me aparece? – exclamou contrafeito.

Nesse desabafo, procurou expressar a impaciência de se colocar perante a vida. Abusado, pôs o fardo na terra. Coçou a cabeça, enxugou o suor do rosto e tornou a falar:

  - Dona Morte, onde andará nessas horas, minha amiga? Bem que poderias olhar por mim – lamentou insistente, repercutindo grito sentido que se multiplicou nas quebradas sombrias do lugar.

Ajeitou-se como pôde, sentado no barranco da estrada, olhos marejados de dor. Nos pensamentos, viu passar o filme de sua caminhada desde criança. Nunca conhecera grandes alegrias. Nascera de família pobre, gemera nas mãos de patrões impiedosos. E um dia, quando novo, face desaforo cometido em defesa da honra, viera se refugiar nessas lonjuras.

Mas naquela época de velhice todas as portas pareciam ainda mais fechadas.

Morrer, solução ruim. Sabia disso como ninguém – pensou cabisbaixo. Os filhos desamparados. A mulher abandonada. A casinha sem dono. E findar... que coisa sem graça.

- Venha aqui, dona Morte! – suas palavras insistentes voltaram aos lábios, contradizendo seu sentimento.

Nessa hora, notou algo mudar no tempo. Correu vento esquisito, arrepiando, nas árvores, a ramagem, enregelando forte o espinhaço do lenhador. Na estrada, se ouviu assobio fino, carregado de mal agourento. Logo depois, figura embuçada debaixo de capuz cinzento veio se aproximado; recurvada sobre o cabo longo de rústica segadeira, a Morte arrastava os velozes pés, a levantar pó e pedra no seu passo cadenciado, sinistro.

Chegou perto do homem e foi dizendo: - Aqui estou, meu amigo. Quero, sem demora, cumprir aquilo que precisar, pois lhe ouvi o chamado.

Medo descomunal quis tomar de conta do lenhador. Nisso, ligeiro, ele tratou de responder: - Sim, agora há pouco chamei mesmo, pois percebi a senhora aqui por perto, na mata. É que quero lhe pedir o favor de me ajudar a pôr no ombro esse pesado feixe de lenha para eu vender lá embaixo na vila – e foi logo se movimentando com dita finalidade.             

 

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Mãe das Dores


Neste 15 de setembro se deu mais uma festa católica de Nossa Senhora das Dores, marcada em Juazeiro do Norte, na paróquia a ela dedicada, por fortes manifestações populares em seu louvor, com a presença de algumas centenas de milhares de fiéis daqui e provenientes de tantas outras localidades nordestinas, próximas e distantes.

O culto à santa, uma das expressões místicas da mãe de Jesus, vincula-se às tradições da gente brasileira, trazido na cultura cristã da catequese portuguesa, estabelecido nesse espírito religioso próprio das crenças ibéricas.

A Virgem prefigura, pois, os sofrimentos por que passou Maria na conta das marcas fincadas pelas agonias da paixão do Filho, assistidas no tronco da cruz, lá no alto do Gólgota.

Transpostos ao viver das populações sertanejas, tais sofrimentos indicam, na alma dessas pessoas, o espinho cotidiano das intempéries físicas do mundo de injustiças sociais e carências seculares.

Padre Cícero Romão Batista, o pároco que consagrou em Juazeiro a data, nos inícios da cidade, expressa a escolha do símbolo de mensagem transcendente da resistência aos obstáculos da vida que se vive, aqui neste chão áspero, quente, sob desigualdades, pesares, na luz da esperança em dias melhores, nos ditames de valores elevados, olhos postos nos horizontes da fé.

As condições da persistência indicam, por isso, notícias que fluem da coragem de crer e sobreviver além das limitações dos planos inferiores, bem menos reais aos fiéis do que os valores imortais de um coração religioso, resignado e temente a Deus.

A cada ano, massas humanas reúnem-se nas praças, igrejas e ruas; cantam, rezam, clamam, imploram, transpiram; alegram-se e sofrem nas despedidas; energia que circula no seio das celebrações, qual sinal infinito do amor à verdade em forma de comunhão dos que sempre voltam.

Numa transfusão suprema de bons esforços para visitar a Meca nordestina, os romeiros cumprem, há mais de século, esse itinerário que traduze seus sentimentos originais, envoltos nas dificuldades comuns. Chegam em transportes de carga, ônibus, carros menores, motocicletas, bicicletas, a pé; de todas as idades e diversos níveis. Caminham confiantes, através dos pontos históricos. Reduzem naturais obstáculos. Miscigenam culturas; fazem amizades, e por vezes ficam mais tempo, deixando expressões íntimas do mistério existencial de pessoas dignas e obstinadas, na busca dos caminhos da realização definitiva, nas estradas distantes.

Portanto, cabe aos caririenses dignificar esses lugares de que são depositários dos nordestinos que retornam sinceros para revê-los, fortes símbolos de sacralidade pura, que os alimenta no recôndito da viva imagem de Maria, também nossa Mãe das Dores.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Essas visões do Paraíso


Duendes em massa buscam invadirm o trono dos contentes, deixando atrás de si estradas largas de noites escuras, porém. Isto que hoje se vê a cada momento, nuvens de ilusão a preencher o vasto campo da percepção, clara demonstração de poder encontrar dentro de si o senso doutra consciência, até agora persiste apenas nos números de uma loteria imaginária, lendas e mitos.

Contudo lá de longe sempre chega o que antes tantas vezes viram nos pergaminhos do Destino e contaram a quem quisesse desvendar entre os algarismos da longa história. Bem o mistério que ronda silencioso as mentes dos seres vivos, mostras cabais doutras existências, doutros níveis de percepção, noutras dimensões que sejam. Vive-se disso, das folhas que enverdecem a todo ano e depois voam ao vento até desaparecem no silêncio. Nós, aparentes paisagens de tantos sonhos, desejos, vontades... Olhos que contemplam as luas, os sóis, estrelas, florestas e mares. Há de saber, no entanto, muito mais à medida do Tempo em volta.

Vemos nítidas as flores, os sorrisos, pores de sol, belos animais, pássaros mil, cânticos e suas músicas inesquecíveis, instantes sublimes, paz no pensamento, viagens encantadoras, saúde, paciência, conformação, horas felizes, entes queridos, livros geniais, filmes perenes, formas belíssimas, sons, cores estonteantes, paisagens definitivas, amizades, amores, saudades, evolução entre os povos, palavras saborosas, valores reais, tudo o que significamos de existir e criar em volta da gente quais criaturas mágicas. Um único bocado disto, pois, são vastos sinais de onde, lá certa feita, nascemos cheios de oportunidades, a braços com os desafios da espécie humana, alimárias do Destino.

Aqui junto de nós, portanto, acenderemos, nalgum instante sagrado, o crivo da certeza de viver em harmonia neste Universo de que somos parte integrante. Eis o pomo da sonhada Salvação a que viemos e que ora desempenhamos a sua realização.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Hoje em dia


Há infinitas visões do quanto acontece a todo instante. Mais e principalmente no que diz respeito aos meios de comunicação a invadir tetos e ruas, numa velocidade estonteante. De tudo, pois, aos borbotões a alma humana se despeja nos terreiros quais a desejar maior velocidade no que tange o aproveitamento do tempo que lhe resta a mergulhar nos momentos, isto numa fúria de causar espanto nesta hora. Vira-se a um lado da Terra, dali existem guerras; doutro, refugiados das mesmas guerras espalhados pelo mundo; fome deslavada de senso desnorteia multidões nos diversos campos, sejam científicos, tecnológicos; planejamentos, intenções. Um espanto só toma o lugar das possíveis oportunidades, enquanto máquinas sofisticadas invadem o mercado de trabalho e as pessoas saem às praças a pedir pão. Os líderes nem de longe correspondem ao desejado.

Vejam só, e sou otimista, que admito estarmos evoluindo do jeito atual, porquanto nunca houve tamanho desenvolvimento da Ciência e dos instrumentos em uso. Aceito bem que, à medida que esgotam os meios, novas alternativas vêm à tona, fruto da experiência e dos valores, e então são depositados na herança monumental das gerações.

A Natureza guarda sempre outro sentido além do que imaginam os humanos. Vez em quando somos surpreendidos pelas revelações do mistério do Universo, tais provenientes de uma Inteligência Maior, que toca adiante o barco da Eternidade. Nisto agora reside o reverso da medalha dos séculos, vistos os resultados obtidos. Essa margem de esgotamento das ilusões bem define o futuro da História, de certeza de largas perspectivas.

Espécie de rascunho do que virá, somos testemunhas privilegiadas do quanto veremos do que plantamos, senhores e consequência das agruras dos milênios sem fim. Face aos tantos recursos da comunicação, assistiremos de olhos bem abertos a colheita das sementes que aqui plantamos durante fase a dizer necessária ao que tínhamos de conhecer e usufruir, nós, filhos diletos da Esperança.


domingo, 15 de setembro de 2024

As manhãs de domingo


Há mil segredo nas cores espalhadas ao léu de vozes e silêncios. Viajam pelos destinos e chegam forte aos sentimentos, deixando marcas profundas no seio deles todos, perguntas vagas do que seria não as houvesse. Destarte, flutuamos ao mar dos acontecimentos, guardando em si o princípio de continuar demonstrando a nós próprios o que significa existir, diante, pois, das circunstâncias. Assim seguem as horas, nesta manhã domingueira. Instante por demais suficiente ao regresso das tantas situações quais vividas nos diferentes lugares, somos os sinceros autores das nossas histórias.

Quiséssemos e já sobreviríamos, a braços com o passar do Tempo. A conter as fúrias desse gesto de esquecer, no entanto alimentamos vasto continente de recordações doutras vezes quando, nas diversas luas, também defrontamos esse deslizar constante dos calendários. São praias imensas, a céu aberto; florestas de tantos pássaros e flores; sorrisos e abraços apertados, nas despedidas; os trilhos; as estações; as pessoas que vêm e vão na mesma intensidade.

Conquanto um vazio fulgurante esteja a par do quanto ocorre nas almas acesas pelo firmamento, ainda que tal persistirá o desejo veemente de controlar o mundo e sustentar os sabores doces que nos trazem até aqui, largados, pois, sobre escombros incandescentes, no entanto de onde se avista oásis além das guerras, dos dramas humanos, das massas adormecidas... Sombras adversas perseguem as distâncias e deixam rastros acesos nas dobras do Infinito. Das brisas suaves dessas manhãs restam, no íntimo, avisos da Criação junto da gente, na voz da Consciência. Detalhes mínimos que sejam demonstram, nisto, o poder infinito sob o Sol. Um a um penetramos nessas telas da vontade e construímos a necessidade do Ser.

De um tudo, porém, ficamos ao sabor do vento e fixamos a sorte e o sentido deste futuro já agora presente na forma de pequenos seres a catar os grãos de mistério no coração dos amores em movimento.

sábado, 14 de setembro de 2024

No circo das palavras


São atrações de não acabar mais, porquanto de tudo ali se encontra, nesse mar das tantas vidas. Picadeiro imenso, do tamanho dos pensamentos movidos a sentimentos, orquestras e sensacionalismo, visões inesquecíveis de tudo quanto há neste chão. Qual deserto ilimitado pela própria consciência, crescem de paixão toda vez, face aos sóis de luz e calor, os olhos de uma plateia embevecida.

Nisso, vêm as apresentações na forma das ideias incontáveis a fervilhar o íntimo das criaturas aos mínimos toques metálicos dos pratos e o rufar constante do furor dos músicos. Animais amestrados, quase gente, repetem as cenas premidos pelos estalidos dos chicotes pelo salão iluminado. Palhaços que titubeiam cenas adentro feitos máscaras de si mesmos, a encantar crianças e adultos, símbolos da história de todos, a meio de nenhum de nós, as caricaturas do Destino.

No alto dos trapézios, cenas arriscadas de belas atrizes que percorrem os ares nos voos inigualáveis, sacudindo de emoção as noites de festa dos expectadores abismados. Lembro sempre desse tempo a fervilhar as entranhas, incontáveis notícias das épocas antigas que permanecem fixas nas entranhas destes universos noturnos. Elas, as palavras que escorrem assim no leito das ruas, nas encostas de multidões inteiras, sinais da imortalidade em forma de criaturas humanas delirantes. Bem isto de escrever qual quem apenas escuta dalgum lugar falas misteriosas a dizer doutros mundos, a trazer quantas histórias estimáveis vividas e sonhadas pelos céus abertos do Infinito.

Enquanto isto resistem, na sequidão dos momentos sucessivos, inúmeras saudades, persistentes, imortais, pedaços dos céus na alma das pessoas em movimento constante gritam. Depois, ao andar das funções, o drama; na escuridão do palco, atores, enredos e silêncio, a tocar de vez o coração atento dos protagonistas que os assistem envoltos em sonhos ainda distantes a vagar nas folhas da imaginação.

Quando, só então, tudo acalma, e resignados todos regressam às casas, alimentados nos amores do espetáculo, a quase meia noite, instante por demais propício aos melhores segredos que levam consigo, nascidos outras ver no calor das lembranças mágicas dessas horas incontáveis da existência que continuará.

(Ilustração: Circo Americano).


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Memória afetiva


Admirável o instinto das lembranças quando querem participar das horas da gente. Chegam no mínimo que seja dos temas em volta e percorrem anos a fio, levando-nos sem querer aos mesmos lugares de sonhos e saudades que ali aconteceram, numa viagem de sobrevivência de tudo aquilo de antes experimentado. São dos mínimos sinais. Quais escondidas sob as capas do passado, elas vêm à tona, bastando só um pretexto qualquer.

Nesta quinta-feira, indo a Juazeiro e revistando os livros da Solaris, lá me deparei com uma edição elusiva ao artista plástico Carybé, argentino que viveu na Bahia na segunda metade do século. Quase sem querer, me veio de volta o tempo que passei em Salvador e trabalhava na Agência Centro do Banco do Brasil. Dentre minhas tarefas, divulgava o Cheque-Ouro entre os artistas e escritores baianos, programa dedicado a tornar conhecida a modalidade nesse segmento de destaque na cultura, entre outros.

Fiz, então, amizade com Carybé, sobremodo por quanto admirava a sua produção artística, bem disseminada em alguns prédios do centro da cidade, desse um dos quais no início da Rua Chile, defronte à Praça Castro Alves, obra de rara beleza, talhada em cimento. Sempre que precisava de resolver assuntos de depósito na agência, se dirigia ao meu setor no segundo andar e buscava meus ofícios, atendendo-o com satisfação.

Nisto, ao folhear o livro, voltaram por inteiro aqueles meus dias na Capital baiana, todo seu universo de tantas surpresas e fantasias; um tempo característico de minha vida, porquanto havia de atravessar período de lembranças fortes que levara do Cariri, dos familiares, amigos, localidades, histórias, o que hoje deparo com as marcas trazidas da época da Bahia, fazendo, dentro de mim, um festival de recordações as mais intensas. Vejam só, isto fruto de, apenas, pequeno indício do que toca minha memória de uma fase, do quanto permanecem interligados os acontecimentos através do sentimento que reúne muitos eus que me compõem, existências inteiras a bem dizer definitivas de alguma realidade sem fim que me transporta mundo afora.

(Ilustração: Héctor Carybé).

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

A bênção, liberdade


Na lenda, quando Noé recebeu a atribuição de construir uma arca e esperar que chovesse o tanto de tudo cobrir, por certo jamais imaginara vir a ser escolhido para aquela missão. No entanto, nem por isso duvidou, a despeito das polêmicas motivadas pelo assunto. Transformou fraqueza em força, animou seus parentes ao trabalho, reuniu os bichos que viviam nas imediações, acreditou (sobretudo), e ainda hoje ficamos admirados como pôde o engenho humano chegar tão longe nas fainas da sobrevivência.

A nós não compete julgar, como também a cada um não cabe duvidar que exista o Poder Supremo, fonte irradiadora de vida, essa função do Ser, do dizer para que viémos, que coisas por si só se determinam, quando muito com nossa compreensão.


O gesto de escrever permite que se jogue no papel os primeiros lances de sonho por vezes inatingível, onde possamos nos reunir à ficção e trabalhar as ferramentas do dizer, na intenção de fechar contatos e acender consciências. Lê quem sabe e continua quem quer. Mas o espaço tem que ser preenchido, catado de letras, sílabas, palavras, ideias, sob o pretexto de que alguém nos acompanhe.

Isto, todavia, não é o bastante para que fiquemos a observar (um observar apenas passivo) os trilhos ininterruptos da História, espalhados pelos diversos departamentos do comboio, muitas vezes perdidos nos melhores propósitos, presas de obsessões que querem a qualquer custo permanecer, mesmo sem autorização, no que pesem resoluções planejadas, recomeços, fitas, velas, enquanto prosseguímos a confundir espelho com fotografia. (O espelho inverte a imagem, equivocando, trocando os lados de nossa cara, enganando, nos remetendo de volta à caverna primitiva de onde saímos; pura irrealidade narcísica que se instala; ilusão que tritura tempo certo, até secar e cair do pé).
Escutamos que se deve suscitar resposta à nossa presença rude neste chão, que nos espreita de dentes afiados e goela escancarada. Vem aí prejuízo ou lucro na conta dos talentos recebidos. Não fazer o bem é também fazer o mal. O mal da indiferença perante a inércia do sofrimento alheio, aos borbotões.

Novos tempos, novas luzes sem mácula, horizontalizam o Céu, no respiradouro para se suportar mudanças de casa dos pouco afeitos à imposição de criar raízes, quais pedras paradas juntando lodo, atitude quase sempre de quem aceita ficar para fermento, mesmo sem condições de admitir ser a Verdade o caminho de Deus, senso fundamental, destino sadio que transmutamos em crise, recessão, sofisticada neurose depressiva.

Temos de perceber a fórmula mágica de auto transformação, reflexo contido qual direito latente sob o princípio da superação dos desafios, onde e como nos achemos, independente de esperar hora mais propositada. Noés de hoje, alertemo-nos, ligados através das parabólicas atentas nos jardins ensolarados, pois de algum lugar sopra o vento. E nossa fantasia quase se gastou dos tantos filmes repetitivos de ação, sexo explícito, muitas superproduções, sem que ainda sejamos heróis além dos banheiros, quintais, churrasqueiras, castelos confeitados, arquibancadas vazias, por nada além de l5 minutos, duração provável do sucesso, segundo rezam as estatísticas oficiais.

Nesse girar de pneus, rastros apagados e calendários vencidos, aqui vamos nós, de estômagos opressos e bocas amargas, quais robôs fora de uso. 

Estacione um pouco e sinta que a presença da luz se faz em cada criatura - conforme o faro da vontade, nos protestos imperfeitos, entre faixas, flores, sorrisos, estágios preconcebidos desta nova semente.

Nuvens e naves riscam rápidas o tapete silencioso das estrelas ainda molhadas. Fria noite do inverno sertanejo. Os animais já dormiram, obedientes. E insisto a me perguntar:

- Quanto ainda falta para outra vez nascer o Sol?...

(Ilustração: Johannes Gutenberg).

domingo, 8 de setembro de 2024

Arte da miniatura


Nesses dias, observei a exposição do escultor caririense Nélito Gonçalves, montada no interior do Shopping Cariri, em Juazeiro do Norte. A mostra se compõe de esculturas abstratas e figurações miniaturizadas de utensílios domésticos, peças confeccionadas em casca seca de cajazeira, árvore típica da flora nordestina. Vale considerar a expressiva qualidade do material exposto, feito dentro da melhor técnica, com acabamento escurecido em verniz copal.

Essa notícia leva-nos a considerar também outras manifestações artísticas e infinitas potencialidades da miniatura. A propósito, certa vez, Paulo Tasso Mendes me descreveu uma exposição que presenciou quando, nos anos 60, vivia na Europa.

Tratava-se da obra de artista brasileiro, gravador em metal, que desenhava na cabeça de alfinetes. Reproduzia as figuras mais diversas, desde paisagens naturais a monumentos arquitetônicos. Num desses trabalhos se via a Basílica de São Pedro, em Roma. Toda a exposição cabia numa caixa de fósforo e os expectadores precisavam de usar lentes para contemplar as pequenas produções do artista.

Paulo, então, me informou que, ao demonstrar-se admirado com o teor de dificuldade daquele trabalho, soube, através do artista, que existem japoneses que descem ainda mais a detalhes na técnica de gravar superfícies, utilizando o espaço existente na ponta de agulhas, através de instrumentos milimétricos e equipamentos óticos sofisticados.

A miniatura, pois, de há muito merece relevo no âmbito da cultura, sobretudo nas civilizações orientais, dadas ao esmero do reducionismo. Museus de arte chineses guardam peças dotadas de tal minudência que, por vezes, uma única delas, para se concluir, requereu a vida inteira do autor.

Isso demonstra aonde pode chegar o engenho criativo dos seres humanos, considerando-se o valor apreciável das manifestações estéticas no estudo das populações e da História.

sábado, 7 de setembro de 2024

O desafio da ilusão


Após certo dia serem felizes no Paraíso, daí vem o desafio em forma de uma serpente astuciosa, que oferece a Eva o pomo da desobediência. A isso quem haveria de defrontar o ignoto senão através do fruto da Árvore do Conhecimento? Aos moldes doutras aventuras, ver-se-iam a braços com a ilusão. Diante da dualidade, a quem obedecer? Uns, talvez, decidissem pela outra face da liberdade. Outros, porém, não o fizeram, seduzidos. Enquanto isto, aquele algoz mal versado, a cumprir ao seu jeito o papel de sedutor de toda uma raça, defrontaria o Bem nos seus primórdios, cena eterna, e os faria primatas a subir o cadafalso dos ímpios, senhores de si próprios, no entanto astutos buscadores das aventuras errantes.

Nisto, na vastidão dos primeiros céus, a História ali principia sob nuvens do mistério dos novos seres, vistos agora aos olhos da Perfeição que os criara. Matrizes da primeira chance de obedecer, ou não, acendem às luzes de palco imenso às margens desse rio caudaloso do Tempo.

Conquanto livres fossem desde então, aquele sórdido personagem vasculharia no íntimo deles o que lhes restara de aceitar, vez que, assim, perderiam os páramos celestes e tornar-se-iam meros atores do que restava de lhes acontecer. Vulneráveis ao desejo, ela daria à luz perante as dores, e ele colheria o sustento sob o suor do rosto. A serpente, à sua vez, arrastar-se-ia no pó, a juízo do que fizera.

Daquela hora adiante, o senso da busca doutra liberdade que fosse, em meio à imperfeição de querer o prazer imediato e superar o Autor de Tudo, inclusive no desalento de admitir ser vencido. Ao preço do apetite, perder-se-iam a saborear do fruto da Árvore da Imortalidade, único poder que agora existe do quanto aconteceu nos primórdios.

(Ilustração: https://vocacaodejesus.com/meditacao/voce-acredita-que-adao-e-eva-existiram/)

 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

As feições do Tempo


Isto em tudo, um espelho aonde ver o fluir dos instantes aos milhares ininterruptos. De comum, são indivíduos, lugares, animais, etc. Basta simples varrer em volta, daí nos deparamos com a realidade concreta em movimento. A gente encontra gente que há tempos não víamos, e lemos as marcas fortes ali deixadas pelo escorrer das condições em volta que grifam seus frutos.

Esse esforço de deter o momento, porém, custa sentimentos, saudades acumuladas, instintos de rever, reencontrar... Inobstante, mero engano. Vem sendo assim desde sempre. Ânsias, frustrações, desenganos. A dor do desaparecimento fere, escondida no espaço entre um ser estranho face ao desconhecido que vaga no pulsar dos corações. Ninguém que obtenha êxito ao fugir de si mesmo, porém. Cercados vemo-nos diante do Infinito, ainda que aprendizes de sorte enigmática, a vislumbrar as consciências ativas.

Disso restam as lições da continuidade sob esta relação de sujeitos e circunstâncias, tal circo misterioso em constante atividade. A cada objeto, caminhos, construções, cidades, deparamos o ente que o somos, no entanto códigos a serem decifrados no tanger dos quantos dias, autores da própria compreensão e portadores desse transe resumido nos olhos e desejos, páginas abertas da individualidade voraz. Existir às margens do rio do Tempo, até também descer, tragado pelas águas turbulentas do abismo inevitável.

Nesta função de atores e expectadores do mesmo espetáculo, no circo do Destino, pois, aqui tornamo-nos parceiros uns dos outros milhões, bilhões, ao nosso lado, a ilustrar o firmamento de cores e formas, cercados de fenômenos inesquecíveis, guardados na memória. A força de continuar emite sinais em forma de apetites, apegos e visões, durante o turno das vidas, ocasionando amores, realizações sem conta, preenchimentos vagos dos turnos seguidos pelos nossos sonhos. Nas horas e nas pessoas, contudo, ficam as tatuagens dos céus em movimento na alma de todo Ser.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Severino Medeiros


Existem conteúdos de memória que fixam residência no juízo e de lá dificilmente descobrem o caminho de ir embora. Isso, de comum, tem origem nos idos da infância, quando imprimem no vazio, gradualmente, marcas a bem dizer inapagáveis.

Este senhor, Severino Medeiros, o conheci quando menino pequeno. Compadre de meu pai e proprietário do caminhão que fazia a feira de Lavras a Crato às segundas-feiras, trazendo mercadorias e gente. Era veículo de duas boleias (caminhão misto, qual denominavam), aos moldes daquele tempo dos anos 50. Na cabine dupla vinham as senhoras; os homens ficavam instalados na carroceria, no meio de caixas, sacos e outros cacarecos. A estrada era de piçarra, cheia de surpresas, onde mal dava passagem a dois carros.

Em um desses transportes fiz minha primeira viagem até o Crato, isto ainda de braços, quando minha mãe veio me mostrar aos seus familiares daqui. Nada lembro, no entanto. Adiante vim saber da aventura de sol quente e poeira, passando pela Serra de São Pedro, com ladeiras de grotões, abismos e curvas estreitas, hoje a Rodovia Padre Cícero, agora de asfalto e menos arriscada.

Ainda na década de 50, meu pai resolveria morar em Crato. Primeiro, nos deixava e vinha às segundas e retornava aos sábados, enquanto permanecíamos no Tatu. Na sequência, em 1953, viríamos em definitivo. Mesmo em Crato, seguiu administrando o sítio, pois meus avôs também se instalariam nesta cidade.

Nesse ir e vir a Lavras, quando regressava numa segunda-feira, em cima do caminhão de Seu Severino (como era conhecido), numa das curvas perigosas do trecho de São Francisco (hoje Quitaus, distrito de Lavras), sofreriam virada, o que lhe machucaria uma perna, com corte e fraturas, fazendo-o permanecer algumas semanas internado no Hospital São Francisco. Era época de seca no Ceará. Eu ia visita-lo diariamente, levando as garrafas de café, nisto atravessando a cidade inteira, e permanecendo bom tempo ao seu lado.

São tais vivências que se estabelecem nas nossas lembranças, quais peças de nossa própria existência, nítidas e fortes, calcadas de sentimentos por certo definitivos.

(Ilustração: Um misto, de Areia Branca, Rio Grande do Norte) https://areiabranca.wordpress.com/tag/caminhao-misto/).

Assunto qualquer


- Experimentar viver com disposição cada momento... um travo doce do sabor que tudo tem... essa coisa de Deus dentro da gente, sendo cada um a sua própria individualidade e ao mesmo tempo a extensão do grande Todo que vem de ser uma coisa só, na integração absoluta que perfaz o chamado Universo, visão a mais imaginável e abrangente, ainda assim de acordo com o saber humano.

- Sempre que se vivencia cada emoção, um ser maior ocupa o lugar que lhe pertence dentro das pessoas, procurando pegar na mão da alma para andarem juntos pelas estradas internas da dimensão verdadeira, diferente em quase tudo daquilo que se acha neste chão. De tal forma que todo momento é único e toda história inigualável. Porém poucos sabem disto para querer desfrutar com intensidade a própria vivência, porque o nível de compreensão das criaturas vem se desenvolvendo no decorrer de muitas vidas, as reencarnações do espírito nos muitos corpos de matéria, em momentos diversificados, noutros tempos, noutras civilizações, neste/nesta, herança definitiva somada no repontar infindável das oportunidades singulares.

(Ilustração: Caravaggio).

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Em que tudo se resume


O Tempo é a medida do movimento entre dois instantes. Aristóteles

A Via Láctea bem que significaria o espaço disto acontecer. São eles os seres em movimento sob o crivo da mais distante das interrogações, no entanto que cumpre desígnio fabuloso dentre todos propósitos de Autor monumental. Essas respostas vivem soltas pelos céus, pois. Seremos isso, meros observadores de um roteiro previamente traçado desde sempre por força de significados sublimes. No princípio, em forma das inscrições rupestres entre lápides e rochedos. Depois, os primeiros grunhidos vieram nas palavras articuladas de inteligências entre si. Só mais adiante, as cartas. Os papiros. Teatro. Circos. Livros. Jornais. Revistas. Discos. Telégrafo. Rádio. Telefone. Cinema. Televisão. Computador. Internet. Celular.

Uma espécie de solidão percorreu os caminhos deste chão nas longas horas de sono profundo de tantos, largados na busca do Infinito neste jogo entre o pensamento e o sentimento, que arrasta a aventura humana pela Terra. Nisto, ninguém há de prever nitidamente o destino do quanto existe e virá no brilho das estrelas distantes. Fôssemos anotar com clareza o sentido do quanto perfaz o simples do Universo e ter-nos-íamos face a face conosco próprios, senhores silenciosos do Absoluto.   

Quiséssemos tão só considerar o resumo de quantos acontecidos e nos depararíamos às bordas do inexplicável, do impossível de saber a quê. Enquanto isso, todos marcham irreversíveis à busca de novas interpretações, agora nascidas de dentro da Consciência que o somos. Ainda que fruto de mergulhos extremos nas ideias, nas lendas, fábulas, o senso que tudo perfaz resulta do mero andar de fenômenos e interpretações, faltos de conhecer.

Dessa interiorização inevitável de todos em si resultam valores apenas relativos da versão deixada lá nas cavernas e transpostas, depois, nas grandes navegações, no domínio do mais pesado que o ar, na sanha selvagem de sujeitar a multidão e artesanato de novas rupturas do Eterno que a tudo domina. Isto em respeito aos místicos e suas viagens transcendentais pelas lonjuras. Porém seremos estes mesmos de olhos postos na distância e sedentos de maiores sonhos.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Brejo Santo


Em dias do mês de outubro que passou, a convite de Geraldo Willian de Araújo, Secretário de Cultura e Turismo de Brejo Santo, integrei a equipe de palestrantes da I Conferência Municipal de Cultura daquela localidade.

Ocasião não poderia ser mais propícia para efetivar um retornou aonde vivi durante quatro anos, exercendo funções junto ao Banco do Brasil. No dia 27 de junho de 1967, tomaria posse como funcionário da agência de Brejo Santo e ali permaneceria até julho de 197l, quando fui transferido para a agência centro de Salvador, na Bahia.

Brejo Santo hoje representa o progresso exemplar do Cariri. Situado em área de índices pluviométricos acima da média, o município é dotado de solo favorável ao cultivo de grãos, possui fazendas de gado e indústria e comércio vicejantes, impondo sua liderança na política do Estado. Povo trabalhador e ordeiro, destaca-se pelo zelo na organização que pude testemunhar em comparação de três décadas quase de todo ausente do lugar, exceto em raras oportunidades de viagem quando por lá transitei na estrada.

Algumas avaliações se deram dentro de mim. Vi o tempo passar aos meus olhos na face de pessoas as quais nesse momento reencontrei. Dizem os filósofos que o tempo não passa. Quem passa são as coisas e as gentes, enquanto a Eternidade permanece e os entes vêm e vão, no decorrer da maré interminável das eras contínuas.

Lembrei com saudade quantas vezes percorri a distância entre Crato e aquela cidade, no auge de fase da vida cheia de ansiedade e sonhos, o período da pós-adolescência que redundava em profissionalização. Quase que permanecia pouco em Brejo, nos fins de semana. Meus pais seguiram vivendo em Crato e me impacientava de permanecer no local do trabalho. A estrada era ainda de terra. Asfalto havia até Barbalha. Naquele meio tempo, presenciei a construção dos trechos asfálticos Barbalha – Unha de Gato e a BR-116.

Nunca saiu de minha memória o dia em que cheguei para a posse no Banco. O expediente principiava às 12h30. Desde mais cedo permaneci na praça em frente da agência aguardando lhe abrissem as portas. Logo chegou um outro concursado, João Batista Carvalho de Araújo, que, como eu, também iniciaria sua jornada bancária naquela mesma tarde.

Desde Brejo Santo, acompanhei o desenrolar crítico da história das grandes transformações por que percorreu a recente humanidade. Os espasmos da juventude no mundo, a rebelião de 1968, o aceleramento das relações políticas no Brasil e a radicalização das ações militares, a Passeata dos 100 Mil, o assassinato de Robert Kennedy, Martin Luther King e Malcom X, na luta norte-americana dos direitos civis, o movimento “hippie”, o festival de Woodstock, a explosão da literatura fantástica latino-americana, o Cinema-Novo, o Tropicalismo, o exílio dos compositores da vanguarda musical brasileira, o extremismo da esquerda na guerrilha do Araguaia, The Beatles, The Rolling Stones, etc.

Numa só manhã de aparentes rotina e normalidade, espécie de cachoeira vigorosa destampou sua força na minha alma, guardados em flor os trinta longos anos de emoção acumulada na saudade de mim transposto nos acontecimentos pessoais em face de um ponto de referência inicial.

Quantos planos, tantos amores, caminhos percorridos, contradições, equívocos, a idade, a matéria, os ideais de vida, valores, grotões, pisaduras, nada melhor para dizer dos “pensamentos, demandas, propostas, necessidades e desejos da população, contribuindo para realização de um amplo diagnóstico da diversidade cultural”, conforme os objetivos da conferência registrada no programa. Grato, pois, aos seus organizadores por aquilo tudo que me permitiram no evento.

domingo, 1 de setembro de 2024

Desde sempre


Nada há de mais real do que as histórias que ouvimos quando criança, do tempo em que existe a inocência de guardá-las qual pedaços da própria vida. Isso hoje me faz caminhar no passado em galerias imensas de imaginação, tais universo de muitas cores e formas, roteiros, acontecidos, tão presentes como os trapos de realidade que transcorrem às vistas, no cotidiano apressado dos dias de hoje.

Certa vez, ouvi meu pai contar uma história de quem, vivendo em Bodocó, no Pernambuco, avistara num sonho o local, no interior de Minas Gerais, aonde descobriria raro tesouro e, nisso, ficaria rico.

Ao despertar, o homem logo decidiu mudar de destino naquele sertão seco e viajar até quando achasse o tal tesouro visto no sonho. Junto à família, explicou que precisavam procurar outros rumos, daí seguindo mundo afora.

Na fazenda em que chegaram, pediu trabalho e instalou-se com os seus. Seguiu durante alguns anos a servir naquelas brenhas sem que nada acontecesse a indicar qualquer mudança na sorte deles.

Lá belo dia, no entanto, no eito da fazenda, um dos agregados lhe contou que vira, num sonho, o nordestino regressar à sua terra e achar uma botija, enterrada de muito anos, contendo peças de ouro. Daí, descreveu em detalhes o canto disso localizar, perto da casa da mesma fazenda em que morara, debaixo de uma pedra maior, indo cavar e encontrar a preciosidade.

Assustado, já depois de vários anos fora, lembrou donde viera, sítio idêntico ao que o amigo descrevera. Daí, mais que depressa tratou de acertar as contas no trabalho e trazer de volta a família ao velho rancho em que vivera.

Reviu a todos no reencontro, e foi de morar, de novo, no mesmo canto cuja casa ainda estava vazia. E pouco a pouco, bela noite, cavaria o ponto exato de que fora avisado, adquirindo tudo o que vira no sonho antes de ter de ir lá tão longe.

Assim, de comum tudo está tão perto e se carece de ir distante buscar, e então saber que, enfim, havia junto de nós desde sempre.