Uma das heranças marcantes do Nordeste ainda é o engenho de rapadura, com todos os seus mistérios e segredos. Quanto passado acumulou-se entre rústicas muralhas?!
Um mundo de estórias.
Más assombrações. Gemidos de morcegos em noites profundas. Ratos a correr no
telhado, onde apodrece a poeira dos tempos. Altas cumeeiras. Linhas de carnaubeiras. Telhas coloniais. Mugidos de bois vindos da bagaceira. O bater dos cambitos
vazios de volta
ao corte. Gritos dos cambiteiros. O cheiro gostoso da fornalha.
Lá na fornalha, o mel está
sendo preparado. O paiol cheio, a garapa despeja-se pelas altas bicas do tanque,
e o batedor
de caixas não para um instante. Corre para lá e volta, trazendo a caixa vazia. O caixeador, encostado à gamela, tange os apetrechos da água para a massa,
lotando mais uma vez os espaços das formas. O mestre, de grande colher em punho, sacode o liquido fervente,
reconhecendo o ponto de transportá-lo
à outra caldeira. O tacho é de um tom vermelho cegante. A quentura abafa o ar, dificultando a respiração. A porta que dá para o bagaço está aberta. Por ela passam os filhos dos
moradores, carregando para casa latas de mel
e rapadura quente.
No bagaço está encostado o boi.
O bagaceiro, junto à forquilha, arrasta para o couro o que sobrou da cana
triturada. O capim verde, arrancado do brejo, fora colocado em frente aos animais,
a fim de evitar qualquer contratempo devido ao
barulho e a monotonia do trabalho.
Pelas bandas do Poente, as aves sentadas na jurema
seca descem aos montes de bagaço, catando algo que lhes atrai. A bagaceira é de uma amarelidão ressequida. Nela está a secar o futuro alimento da boca do fogo.
Situada de frente ao beco, entre a casa grande e o engenho, a entrada do
fogo é habitada por um único servidor sempre
a par do ponto de quentura. Sua face enegrece-se, herói, o metedor de bagaço. Não para um instante e
chega logo pela manhã, antes mesmo
do Sol surgir. A fumaça é infernal.
Mais em frente, geme a caldeira. Áspera como a
alma que a maneja; ela ruge, como querendo manter a vantagem que levou dos
bois de tempos antigos. A cana agoniza ao ritmo lento das moendas localizadas num corpo de aço, por elas arrastada.
Na moenda, debruça-se, pelo peso dos
feixes levantados do banco, o metedor
de cana. Os pesados rolos de ferro esmagam
entre si a arvore liquido. O som esparrama-se por todo o recinto lotado de cargas trazidas pelos burros. A palha
é lambida das linheiras, nodosas varas suculentas pelas mãos ágeis dos
homens limpadores. Depois jogadas em um
canto. Servirá de estrume, quando nas roças
do inverno distante.
Grande movimento do engenho. Misterioso. Cheio. Sacrifício de tantos. Alegria do Sertão. Farturoso.
Fumacento. Cruel. Criminoso, Túmulo de muitos. Felicidade mas também escravidão. Amargores de raças inteiras.
Morrem os engenhos. Poucos persistem. A civilização os consumiu.
Consumiu com ele a saudade. Vida. Famílias. Infâncias. Bons dias. Dias do fausto
de antigamente.
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