quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A carteira recheada

Na concepção de estudiosos das ciências espirituais, a vida que se vive aqui neste chão não passa de um sonho, enquanto mundos definitivos encontram-se do outro lado das coisas aparentes, visíveis, tão logo transposta a fronteira inelutável do tempo e abertas as portas da Eternidade, viagem que, sem exceções, todos realizaremos, mais cedo ou mais tarde.

A propósito disso, existe parábola clássica de um sábio chinês que sonhou habitar o corpo de uma esvoaçante borboleta. Quando despertou, vista a contundente realidade daquele sonho, bateu dúvida atroz: Ele (ela?) seria borboleta que sonhava ser homem, ou homem que sonhara ser borboleta?

Essa história conhecida, inspiradora de uma das canções de Raul Seixas, a adotam os orientais nas meditações, mostrando, na prática, as condições precárias de avaliar a existência terrena sob o ponto de vista da permanência, porquanto evidente, porém transitória, aqui domina a ilusão da matéria.

Assim, outros momentos de observação se apresentam, em constantes repetências, chances para estabelecer conclusões e princípios, aulas nas escolas do infinito. Dentre eles, a história seguinte também fornece exemplo de observação:


Um homem atravessava momento financeiro apertado, emprego pouco e tantas necessidades, e por mais que trabalhasse, eram seus ganhos insuficientes. No íntimo, contudo, reclamava os favores da sorte, aguardando novas oportunidades.


Belo dia, se viu percorrendo lugar longínquo de estradas sombrias e glaciais. Ali avistou grudada entre pedras revestidas de gelo, uma carteira recheada de ricas cédulas. Alguém deixara o objeto e a natureza integrara no limo do campo.


Surpreso ante a descoberta, o viajante desejou resgatar a fortuna localizada no sonho, sem, contudo, logo atinar com o jeito de fazer. Observou os detalhes em volta e nada de instrumento que permitisse romper a dura camada que prendia o tesouro inesperado às pedras.


Mexeu nas folhas da imaginação e, passados alguns instantes, concluiu resolveria o problema se pondo a mijar em cima do gelo sob o qual a carteira repousava. Demorou naquela atitude, presenciando eufórico subirem os vapores do gelo a custo derretido na ação do abundante líquido que, farto, que produzia.


Nessa hora, barulho impertinente quebrou o silêncio da paragem distante, justo interrompendo-lhe a providência imaginosa.


Súbito, numa morna constatação, notou-se, de bruços, acordando lavado em extensa poça de mijo que empapava a superfície do colchão e, aos poucos, alastrava o território da cama até chegar junto da esposa que, fiel, dormia ao seu lado a sono solto. A carteira fora só um sonho; nada mais.

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