quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Irmã Santinha

Todos na cidade conheciam Irmã Santinha, guardando dela as melhores impressões, dado suceder que o nome fazia a mais correta justiça à religiosa, de conduta irrepreensível e total dedicação aos pobres, sempre disponível a quem lhe viesse pedir conselho ou reclamasse a sua caridade. Era voz geral que existindo Céu a amável freirinha lá possuiria lugar garantido.

Aconteceu, nesse tempo, que veio à presença da freira um dos homens mais ricos do lugar em busca de orientação. Noivo de bela e prendada jovem, precisava, no entanto, para decidir as núpcias, ouvir alguma conselho.

- Irmã, gosto muito da minha noiva. Ainda assim não tenho certeza de sua integridade, - esclareceu com reserva o interessado. - Por isso vim saber da senhora, pessoa virtuosa e boa, se aquela com quem pretendo casar é mesmo virgem, como tem me assegurado.

Após minutos de recolhimento, a Irmã lhe respondeu que a noiva podia ser ou podia não ser virgem.

O noivo retirou-se e pegou a matutar no que ouvira, interpretando que a religiosa dera aquela resposta evasiva por deduzir que ele não tivesse condições emocionais de ouvir de frente toda a verdade, concluindo não ser mais virgem a mulher de seus sonhos, condição inarredável para esperadas núpcias. Em face disso, contrafeito, rompeu o noivado, vendeu todo seu patrimônio e resolveu sair pelo mundo. Antes, porém, reservou uma parte dos recursos arrecadados e depositou nas mãos da Irmã Santinha.

Muitos anos se passaram. Uma década ou mais depois, o homem, enfastiado de vagar sem destino, retorna à povoação para rever antigos conhecidos. Foi, então, que soube da morte da Irmã Santinha, ocorrida há pouco tempo. De imediato, lembrou-se do dinheiro que com ela deixara e procurou o padre responsável pela freguesia no sentido de saber como agir naquela situação. O pároco desconhecia o assunto, mas sugeriu que a melhor solução seria procurar falar com a própria freira no mundo invisível:

- O senhor vai meia noite à porta da igreja e chama a chama em voz alta. Daí saberá as notícias do que pretende - afirmou.

Meia noite, na porta da igreja ouviram-se os gritos insistentes e repetidos daquele homem: - Irmã Santinha, Irmã Santinha. E ninguém lhe atendeu.

Logo cedo, no outro dia, de novo o sacerdote a receber o ex-noivo querendo ajuda para localizar a freira.

- Mas o senhor não conseguiu falar com Irmã Santinha no Céu? - admirou-se o padre. E contrafeito disse: - Pois meia noite vá ao cemitério e, de novo, faça o mesmo, em frente do portão principal, que ela deverá vir à sua procura.

Outra vez os mesmos gritos e nada... De volta ao padre, este ficou ainda mais admirado de a freira não se achar nem no Purgatório, segundo suas palavras. 

- Bom, desta vez o senhor terá o que procura - informou. - Vá meia noite à porta do mercado e chame por ela, que será respondido, porque nesse local se comunicam aqueles que vivem no Inferno, único canto que resta procurar.

Assim se deu. Uma pequena demora sucedendo aos gritos e uma voz distante a se aproximar correspondeu ao chamamento pela Irmã Santinha. Voz fanhosa, tristonha, disse onde se achava guardado o dinheiro, numa laje solta que havia sob a cama do quarto onde a freira dormia.

O homem tratou de demonstrar o seu reconhecimento pela honestidade e preocupou em saber do motivo dela ter ficado em lugar tão degradado, posto que vivera vida cheia de gestos de pura bondade.

A freira escutou sensibilizada a pergunta e demonstrando profunda infelicidade acrescentou:

- Lembra o senhor de uma consulta que me fez a propósito da virgindade da pessoa com quem, certa feita, esteve noivo? Eu não guardava a certeza da resposta e respondi com insegurança. Resultado, como a sua interpretação errada precipitou os acontecimentos e terminou prejudicando a moça, ela, de desgosto, caiu na prostituição e morreu anos depois vítima das doenças do mundo.  Quando soube disso, era tarde demais e tenho agora, para reparar o dano causado, de suportar as calandras do remorso nesse buraco perdido.

Em seguida, silêncio maduro comprimiu a noite. Cedo da manhã, o homem localizou, no ponto determinado, integral, a quantia que deixara nas mãos da freira. Num gesto de gratidão, buscou a igreja e depôs boa parte do dinheiro no cofre das almas, ocasião em que agradeceu e se despediu do padre. Gesto contínuo, sem mais demora, partiu indo embora pela estrada aonde viera. 


(Conta popular que ouvi de Manoel Ferreira da Silva (Manu).

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