terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Escrita automática

As primeiras pisadas no chão de massapê, no outro dia do inverno, contam bem a história daquela gente, na faina de viver inscrita pelos ideogramas de um alfabeto mágico, passos inquietos dos homens em círculo; e lá na distância, o coro plástico das garças friorentas, feixe de talos secos do capim, salpicava de branco o barro melado, notas visíveis na forma de sinfonia matinal, diante da represa quase inútil.

No ímpeto de resolver as dificuldades surgidas com a fome do gado no pasto seco, todas as gamelas viram-se, de uma hora para a outra, transferidas à vazante do açude esgotado, onde o chão abria raras luas d´água, suficientes tão só dois meses, ou menos, de alimento indispensável.

Como nunca imaginar o futuro, a não ser quando Deus assim resolve, que não foi o caso, tiveram de chegar, entre pingos e lufadas de vento, escorregando aflitos no escuro, as primeiras e abençoadas chuvas do verão sertanejo daquele ano.

Grossas gotas pingaram das touceiras lavadas do mato retorcido e pássaros sacudiram as penas, nos ramos mais erguidos aos céus, telas benditas em forma de paz, aonde cercas valiam nada para reter a brisa e o sereno, que unem os tons claros da natureza, como flores grudadas nos cachos esquecidos à beira do riacho vazio.

Ouvi pela segunda vez a música esquecida, trazendo o sonho rico da memória a tardes bonitas da cidade, há três décadas, quando buscava o cinema, nos sábados, para a sessão das quatro e seus filmes raros. As ruas desertas e a chuva miúda escorriam de leve pelas calhas de tetos pintados no lodo e na cal envelhecida. Tarde solitária, de poucas almas vivas nas calçadas e pombos a voar no meio de festivas andorinhas a animarem o teto azul intenso do firmamento.

As abas da serra altiva cobriam o tom sisudo com uma paisagem pálida de mata verde escuro orvalhada de nuvens esfiapadas.

- Névoa na serra, chuva na terra. Névoa na baixa, sol que racha – lembravam os habitantes do lugar, na sabedoria temporã.

O cabelo das vovozinhas que rumavam à missa da cinco, na Igreja de São Vicente, parecia com a alvura das asas que deslizavam céleres sobre as carnaubeiras da praça em volta do Cristo Redentor, vida mormacenta, imortal, de espíritos prenhes de eternidade, após o momento único da feliz salvação.

Quando escoa o tempo, primo-irmão da matéria, também se dissolve a energia, fonte eterna do depois. O gesto espontâneo de escrever supre as atitudes funcionais para atender aos compromissos do instante presente. Vem a sede, busca-se a água. No frio, o cobertor. Na fome, o alimento. Jeito que tem jeito, como resposta de perguntas nos impulsos da necessidade. Livre de coração, erguer os olhos dos afazeres e circunscrever o fugidio, formular instantâneos abertos daquilo que contorna, qual bolha infinita, cercando de eterno as correntes alternadas e contínuas do movimento que esfarela o objeto. Daí, recolher, que nem frutos de ideias, palavras, tópicos transferidos ao papel, por vezes lidos por outros seres humanos.

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