segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Os camelos

Na feérica Bagdá das mil e uma noites reinava um califa de imenso poder e largas posses. Casado com lindas mulheres, não lhe faltavam visitas ilustres, procedentes de variados países, transformando sua corte em quermesse de luxo e prazeres fáceis.

Os amigos das festas nutriam pelo califa rumorosa devoção, quiçá devida aos bens e quitutes fartos, nos salões suntuosos, quiçá ao charme do poder, a dominar cidades e imensos territórios.

Aquela vida preencheu vários períodos embriagadores que, belo dia, chegaou ao final de jeito brusco. Então, o califa reclamou outras vivências menos vulgares, mais espirituais, deixando de lado os hábitos que alimentara durante toda uma geração. 

Daí resolveu buscar a Deus, fonte dadivosa da Eternidade absoluta.

Convenceu-se de mudar de prática e aceitar responsabilidades antes esquecidas. Mudou o comportamento. Constante, passou a comandar romarias aos lugares santos, atitude beatífica de louvor e bonomia reverente. Aproximava-se com carinho das autoridades peregrinas cheio do desejo das revelações superiores. Isso, todavia, demonstrava apenas nos ambientes públicos, às vistas das pessoas. Nas caladas da noite, prosseguia repetindo iguais libertinagens das épocas antigas. Alimentava aparências e só fingimento.

Com isso, virou foco da observação dos súditos, a lhe seguirem cada passo. Ora uns enxergavam nele o homem revelado a que não correspondia, sofrendo destarte as consequências dos propósitos bons que aceitara na duplicidade dos papéis, o que os alheios recriminavam.

Em algumas ocasiões, se viu a lutar consigo mesmo, nas guerras de conquistas que iniciava para preservar a riqueza do trono. Na angústia da dúvida, caía nos braços soberbos das damas vaidosas e lascivas, ainda nas farras monumentais. Confundia tanto as pedras do jogo da Terra com as buscas do Céu que resvalou na descrença dos súditos.

Uma madrugada dessas acordou de sonho confuso ouvindo fortes pisadas no teto da alcova real, quais vindas de multidão impaciente. Viventes em marcha forçada quebravam as telhas, causando impressão que dele cobravam o cumprimento dos votos a Deus, desprezados, no entanto, pelas suas ações contraditórias.

Ouvia vozes, e resolveu tomar providências por conta da perturbação. Saiu ao pátio externo, chamou os guardas e efetuou diligências. Descobriu sobre a coberta do palácio alguns serviçais das cocheiras munidos de cordas, à cata de camelos fugidos naquela noite.

Intrigado, aborrecido, o califa pediu explicações do modo inconveniente adotado na procura dos animais, andando pela cumeeira das casas, ao que responderam:

- Para nós, será mais fácil achar camelos neste lugar do que para Vossa Majestade encontrar Deus pelos modos indisciplinados em que vem permanecendo, assim deixando a lição que o rei bem precisava naquela oportunidade.  

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